Pequenos inventos, grandes mudanças
A gente não percebe, mas algumas pequenas invenções mudaram de forma radical a vida dos seres humanos. E quase tudo deriva do ócio em suas múltiplas formas de prostração e moleza. Para o poeta Mário Quintana, “a preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda”.
Mas não vou falar sobre a roda – presente em quase todos os avanços da inteligência humana, da tecelagem até os motores mais complexos –, que não pode ser vista como uma pequena invenção. Longe disso. Há alguns milênios, desde que se percebeu que ela servia para alguma coisa, a humanidade já deu milhões de giros até os dias de hoje, chegando a criar uma rede de comunicação instantânea que conecta os pontos mais remotos da Terra e que meus netos acham que sempre existiu.
A ideia é refletir sobre pequenos inventos, simples como a sandália de dedo, que mudaram o mundo. Ícone do bem-estar, desconheço quem nunca teve (ou não tenha) pelo menos um par. Apenas sola e correias a proteger os pés e amaciar os passos, porém cobiçada até por filhotes de cachorro. Só mesmo um inseto pré-histórico tenaz e resistente desde a origem do universo lamentou a sua criação: a barata, que usa os cantos para se proteger daquela arma letal, em sua visão.
E o que dizer do guarda-chuva? Existe coisa mais prática, antiga e moderna ao mesmo tempo? Embora seja objeto bastante útil, sobretudo nos dias em que o chuvisco da manhã pode trazer dor de cabeça pro resto do dia, foi feito para ser esquecido no táxi, no banco da praça ou na entrada da padaria. Convive bem com a ingratidão, percebe-se.
E da caneta esferográfica, corresponsável pela maioria dos deslizes humanos quando se deixa levar por mãos inescrupulosas? Quem, como eu, quando criança sujou as mãos com uma Parker, sabe do prazer que deu o aparecimento de uma bolinha de aço na ponta de uma esferográfica, distribuindo a tinta suavemente sobre o papel, feito desodorante do tipo roll-on (sem o risco de puxar um pelinho desprevenido).
Já havia experimentado outra sensação agradável quando lidei pela primeira vez com o apontador de lápis grafite, em substituição à faca ou à lâmina de barbear, que costumavam se aproveitar de minha pouca habilidade com instrumentos cortantes para produzir lacerações nos dedos. Quem não gostou da mudança, desconfio, foi o fabricante de Merthiolate.
O palito de fósforo também me impressiona desde que me entendo por gente. Infalível, não aquele feito de papelão, mas o de madeira, com o cabeção na ponta. Cheguei a pensar que surgiu antes da descoberta do fogo no período neolítico. Mas os arqueólogos revelaram que a fogueira começou mesmo a partir do atrito entre dois pedaços de madeira, depois entre pedras, e, convenhamos, faz bem mais sentido.
Louvo também a mudança trazida pelo cortador de unhas, embora não tenha ocorrido ao seu inventor torná-lo um pouco mais funcional, pelo menos em relação aos pés de barrigudos como eu. A dificuldade diz respeito ao comprimento e a curvatura necessária ao cabo. Precisava, além disso, trazer junto um periscópio.
A dentadura é outra pequena invenção que, sem trocadilho, me deixou de queixo caído. Na meninice, flagrei uma de minhas tias sem a peça, ao acordar do cochilo depois do almoço. Foi duro ver aquela boca murcha segurando o riso para não dar vexame. Só quando a chapa foi colocada no devido lugar desapareceu dentro de minha cabeça a visão do inferno que se formava.
Mas de todos esses pequenos inventos, glorifico de pé a guilhotina de papel, que para mim contém atributos quase terapêuticos. Penso até que me poupa de distribuir murros ou bater com a cabeça na parede. Quer saber como?
Arrume duas caixas de papelão. Numa, coloque papéis velhos e deixe a outra vazia. Corte os papéis em pedacinhos, atentando que lascas muito pequenas podem dificultar o processo. A cada uma, concentre-se num problema ou desafeto que lhe incomoda. Depois, jogue a respectiva lasca na caixa vazia, a ser transformada em cemitério de seus pensamentos impublicáveis.
Mesmo avesso a redes sociais, noto ainda assim que se cobra dos usuários uma tal de “lacração”, gíria que define aqueles que "mandam bem", "arrasam", ao postarem comentários polêmicos buscando apoio de seguidores. E se tocam em questões sensíveis para alguns ou demarcam territórios ideológicos, religiosos e futebolísticos, provocam reações de quem pensa diferente. Essa sucessão de revides alternados acaba criando um manicômio virtual estarrecedor.
Para escapar disso, prefiro o método da guilhotina de papel, que batizei de "lascação", onde mágoas e rancores podem ser reciclados de modo reservado ouvindo-se apenas o meu próprio ranger de dentes, sem despertar a fúria dos “inimigos”.
Enfim, são tantos pequenos inventos a mudarem a vida da gente, todo dia, que desafio meus leitores e leitoras a refletirem sobre o tema. Sem “lacração”, por favor!
Li outro dia que o grande compositor Herivelto Martins – autor de clássicos como “Ave Maria no Morro”, “Cabelos Brancos”, “Atiraste uma pedra”, “Caminhemos” e “Segredo” – introduziu o apito no samba nos anos 40. Parece fácil, não é? Depois de inventado.
Talvez movido pela vontade de trocar as combinações arroz com ovo e ovo com feijão por arroz, feijão e sardinha para o matuto das Varas (eu) achava o maior invento humano o abridor de lata. Seu segredo: aquela dente para prender e fazer o serviço sem esforço. Grande texto, sobre coisas pequenas.
ResponderExcluirHayton, muito legal. A parte da guilhotina foi hilária 👏👏👏
ResponderExcluirLembro de Suassuna ressaltando a genialidade de um pregador de roupa ou de um clip de papel. Já nasceram perfeitos e não precisaram de upgrades ao longo do tempo.
ResponderExcluirBom Dia, caro amigo Hayton. Pois é... Grandes inventos... Certamente, cada um tem outros a se lembrar... Por exemplo, a galocha que, depois das ruas pavimentadas, deixou praticamente de existir... Embora que, em muitos momentos, nem esse "acessório" resolve a situação, principalmente quando a "lama" é virtual... Aí, de fato, não adianta a "lacração"... Só mesmo a "lascação"... Forte abraço.
ResponderExcluirAs mudanças são surpreendentes até deixarem de ser. Depois de um tempo, as novas gerações acham que aquilo sempre existiu e que a nossa geração nada inventou, nos restando a rabugice de tentar lembrá-los do “como era no meu tempo” e o prazer de lê-las tecidas como recordação. Somos invento até sermos lembranças. Depois, nem isso.
ResponderExcluirGenial! Todos temos nossos pequenos inventos de estimação. Ganhei, certa vez, algo muito simples mas de grande utilidade: um pequeno pegador de madeira articulado para torradas, sanduíches, e outros pedaços quentes que sempre atormentavam meu filho. De todos, penso que, para levar a preguiça aos píncaros, nenhum supera o controle remoto.
ResponderExcluirExcelente. Se publicar a ideia da guilhotina na rede, vai lacrar, ou melhor, vai acabar os estoques no ano que vem.
ResponderExcluirOvo de Colombo! "Parece fácil, não é? depois de inventado."
ResponderExcluirMuito bom, todos os inventos úteis , fico com o da sandália, quando me aposentei , disse pra minhas amigas , vou comprar um par de cada cor e adeus sapatos; o da guilhotina boa terapia👏👏👏
ResponderExcluirOutro dia, um amigo conversando sobre invenções e feitos do ser humano, discutia qual teria sido a maior. Uns diziam que seria a conquista do espaço e depois de tantas citações, um senhor idoso que ouvia em silêncio, pediu licença e deu sua opinião: as maiores invenções foram o Viagra e a raquete pra matar mosquitos . Enfim, são tantas emoções….
ResponderExcluirÉ, pode ser…
ResponderExcluirMas quem inventou o guarda-chuva e o trabalho (não sei se foi a mesma pessoa) não tinha nada para fazer.
Guarda-chuva só serve para nos iludir: você pensa que está protegido e encara o temporal, até perceber que não sobra qualquer parte seca.
Muito bom! Já comecei o dia dando risadas! Todos se inventos forak criados na hora da preguiça, louvemos a ela. E a forma como você descreve é sempre a melhor parte! Parabéns mais uma vez!
ResponderExcluirDe pleno acordo com Quintana: a preguiça me levou a optar pela fragmentadora de papéis, em vez da adorada guilhotina desse amigo cronista...
ResponderExcluirE hoje, com tantos brinquedos que incorporam altas tecnologias, minha fragmentadora é um dos brinquedos preferidos de meu neto sempre que vem me visitar. Além de curtir a fragmentação, ele adora “distribuir” pela casa os papéis picotados, utilizando-os como uma espécie de serpentinas carnavalescas. Mas sem o apito do Herivelto!
Muito interessante mesmo, refletir sobre a importância de tão simples quanto valiosas descobertas!
ResponderExcluirÓtima crônica Hayton! Parabéns!
ResponderExcluirSão inventos aparentemente simples que, às vezes, nem nos damos conta.
O palito de fósforo me marcou muito por conta de apelido recebido na adolescência tendo-o como responsável direto. O palito, além da utilidade descrita, algumas pessoas também o usam, um lado, para palitar os dentes e o outro, o do cabeção preto, como cotonete. O medo que faz é depois de tirar a cera do ouvido, esquecer e colocá-la na boca. Por ter origem no campo sou fã do papel higiênico e do "modess".
Gostei. Reflexão válida que muitas vezes passa ao largo.Forte abraço.
ResponderExcluirE tudo isso só foi possível ser criado porque um Cara, que por seis dias havia trabalhado intensamente, resolveu descansar.
ResponderExcluirE, não tendo muito mais o que fazer, criou um sujeito com "telencéfalo altamente desenvolvido e polegar direito opositor", duas invençõezinhas simples que só os humanos têm. Aí deu no que deu. Somos o que somos graças a isso. Alguns os usam bem, outros nem tanto.
Elton Medeiros que usou muito bem os dois – telencéfalo e polegar opositor -, inventou a caixa de fósforos como instrumento musical de percussão para marcar o ritmo. Foi feliz com a invenção.
Mas também há os que fizeram o guarda-chuva para sapato.
Somos ou não somos geniais?
Ou bestiais? Talvez.
Fico com a escova de dentes. Já imaginou como era o bafo de faraós, imperadores, reis, rainhas, princesas e que tais, sem uma simplesinha escova de dentes ? Moral da história: mesmo um simples invento é capaz de fazer milagres, embora não elimine as bobagens que podem sair de bocas de quem tem com cérebro de cobra. Aí não tem jeito, nem Freud resolve. Adorei a crônica.
ResponderExcluirOs pequenos inventos só nos chama atenção pela sua utilidade quando alguém nos provoca a refletir sobre sua funcionalidade ou praticidade, como agora lembrados em sua crônica. Vamos ficar por alguns dias buscando por outros objetos úteis e como diz Silas aqui acima: "O ovo de Colombo ! Parece fácil, não é? Depois de inventado."
ResponderExcluirA primeira vez que vi uma sandália havaiana - ou seria mais apropriado o nome sandália japonesa? - foi nos pés de Beline, zagueirão do Vasco e da seleção brasileira. Até então calçados entre os dedos era negócio de mulher, daí a estridente recepção (hoje seria homofobia) dos torcedores regatianos e azulinos ao verem aqueles homenzarrões do expresso da alegria
ResponderExcluirdesfilarem nas laterais do campinho da Pajuçara. Hoje, relembrando o passado, vejo que a invenção pegou e a havaiana é indispensável para nosso lazer, principalmente se for numa paradisíaca praia.
Que beleza Hayton!!! Já ouviu falar de “derivativo” de invenções? Ou invenção “customizada”? Rsssss! Um menor fazendo oitavado de A4 numa guilhotina!!! Rssss… pode até esculhambar uma invenção e usar mal outra, mas produziu oitavado!!! Rsss! Menor criativo!
ResponderExcluirMuitas recordações super interessantes que toca nossos corações princinpalmente nos meus vividos 78 anos
ResponderExcluirprincipalmente...
ResponderExcluirExcelente crônica! Sempre nos lembramos dos grandes inventos e não percebemos o quão importante são os pequenos que facilitam nosso dia a dia.
ResponderExcluirExcelente!
ResponderExcluirAinda bem que o autor não tem preguiça de escrever crônicas e publica toda quarta feira, religiosamente de madrugada para alegrar os admiradores (que deixa a preguiça de lado pra ler e curtir). Abraços!
As grandes invencoes pra mim são invenções simples. Como sempre tive medo do escuro, nunca cansei de admirar aqueles lampiões de querosene, protegidos com vidro para não apagar com o vento. Poder conduzir a luz pela minha casa, num Sítio lá em Assis (SP), era simplesmente genial.
ResponderExcluirCoisas maravilhosas, meu amigo. Mas certa vez, comentando isso com um velho amigo da roça, sobre inventos maravilhosos, obtive dele um desabafo fenomenal: é... depois que inventaram a debulhadeira de milho, não duvido de mais nada.
ResponderExcluirBela crônica! O texto nos remete a uma descontraída reflexão sobre a importância dos pequenos inventos. Certamente, a bola de gude, o pinhão de massaranduba e a pelota 'dente de leite' revolucionaram minha infância, moldando a personalidade do adulto em que me transformei. Mas há quem dê valor apenas aos grandes inventos. Em 1876, Graham Bell inventou o telefone e quando o conectou pela primeira vez, já havia quatro chamadas perdidas de sua esposa...
ResponderExcluirDiante de tantas invenções maravilhosas, só me pergunto por que "desinventaram" o quebra-vento,aquele ventilador ecológico (de serie) dos carros até os anos 90.
ResponderExcluirTema muito instigante! Crônica mais ainda!
ResponderExcluirPensei nos ”profetas do acontecido”. Lembrei do colega que logo após minha posse no BB mandou eu pegar no “almox” o envelope redondo pra carta-circular…
Só falta agora alguém pensar num aparelho de encantar doido que reúna, num retângulo de poucos centímetros de área e de menos de 1 cm de espessura, máquina de escrever, rádio, tv, bússola, gravador, máquina fotográfica, filmadora, relógio, despertador, agenda telefônica, agenda de compromissos, livros, jornais, revistas, biblioteca, vitrola, caixinha de música, gps, mapa de todos os lugares do mundo, álbuns de fotos, scanner, aparelhos de controlar a saúde, telex, telégrafo e tantos outros, inclusive o que faz menos sucesso e é menos utilizado, o telefone!
Os comentários são muitos, e ótimos, não li todos , lembro-me do equipamento de sismógrafo, para tirar cópias, usava eternidade, foi a primeira chorada que dei, uma viagem. Isso foi antes do lança perfume
ResponderExcluirmimeografo e não sismógrafo, como ficou escrito.
ResponderExcluirGostei muito da parte da barata que não gostou da invenção da sandália de dedo e da outra que uma das tias estava sem: "uma visão do inferno" kkkkk. Texto divertidíssimo!
ResponderExcluirVocê consegue proezas inimagináveis com seus escritos. Conseguir introduzir a barata ao falar da invenção da sandália de dedo é verdadeiramente impagável.
ResponderExcluirNão tenho dúvida de que cada um dos inventores dos objetos aí referidos, se tivesse a oportunidade de ler essa crônica, ficaria feliz e recompensado ainda mais com sua invenção.
Sensacional Hayton!!!
ResponderExcluirMais uma excelente crônica! Obrigada. Me pego imaginando o que seria de nós sem tais invenções. Fralda descartável é a minha escolhida para ser exaltada.
ResponderExcluirCaríssimo Hayton,
ResponderExcluirQue pérola essa sua crônica! Apreciei cada realce e importância dada por você a cada invento que nos surpreendeu ao longo da vida. Parabéns! AGENOR SANTOS - Salvador-BA.
Hayton Rocha, boa noite!
ResponderExcluirComo é bom ler as suas crônicas.
Como foi bom relembrar e materializar cada invento, inicialmente pequeno que provocaram (e continuam provocando) grandes mudanças. Me fez lembrar o sucesso de uma marca (Pequenas Empresas & Grandes Negócios - Revista e programa de TV) que se mantem implacável mesmo depois de três décadas.