quarta-feira, 27 de julho de 2022

A mais radical das virtudes

Filho de uma família humilde de operários, ele nasce com paralisia cerebral. Apesar de tetraplégico, aos cinco anos descobre que tem controle sobre seu pé esquerdo e usa giz para rabiscar palavras no chão. Com este único membro “ativo”, muita determinação e a ajuda da mãe, supera as limitações e torna-se pintor, poeta e autor. 

 

Eis a sinopse de My Left Foot (O Meu Pé Esquerdo), filme baseado na obra homônima do irlandês Christy Brown. Sucesso nos anos 1990, acabo de revê-lo e parei para divagar não sobre as restrições físicas do protagonista, mas sobre a circunstância de ser canhoto, tal como um de meus netinhos.

 

Dizem que cerca de 10% da população mundial é canhota, isto é, algo próximo de 800 milhões de pessoas (quase quatro “brasis”). Mesmo assim, aqueles com mais habilidade do lado esquerdo do corpo sofrem para se encaixar num mundo “feito” para a maioria destra.

 

Soa absurdo, mas, na Idade Média, mulheres canhotas foram implacavelmente perseguidas: as acusações de bruxaria se baseavam na relação estabelecida nos textos antigos entre o lado esquerdo e o pecado. Nem parece que a palavra latina sinister (esquerdo) significava “sortudo”. Tanto que italianos e franceses deram ao termo um sentido depreciativo: esquerda, na Itália, é sinistra; na França, gauche é algo desajeitado. 

 

Já na era moderna, pais e mestres forçavam as crianças a usarem a mão direita ao invés da esquerda. Caso emblemático é o do ex-jogador de futebol Romário. Quem o via concedendo autógrafos percebia que se tratava de um canhoto nato. Possivelmente foi obrigado, pelo Seu Edevair de Souza Faria, a “trabalhar” mais a perna direita e “esqueceu” a outra. 

 

Algumas teorias tentam explicar a existência de canhotos. Uma diz que o principal motivo está no ventre da mãe, e a causa seria hormonal. Outra, que se trata de comportamento de origem genética. Que além dos membros, canhotos possuem maior acuidade noutras partes do lado esquerdo, como a visão e a audição. Diz-se ainda que os canhotos possuem melhor noção espacial e são melhores com números e matemática, além de mais criativos e ousados. Da Vinci, Beethoven, Mozart, Einstein, Picasso, Fidel, McCartney, Gates, Oprah Winfrey, Senna, Obama, Fátima Bernardes, por exemplo. 

 
















Quando criança, eu quis ser canhoto ao ver craques como Gérson, Rivellino e Tostão. Já tinha ouvido de meu pai muitas histórias acerca de Pepe. Não penso mais nisso, claro, mas exceto o “maior-de-todos” (Pelé, apesar de destro, conseguia proezas com o pé esquerdo), a lista de canhotos extraordinários só aumentou de lá pra cá: Maradona, Éder, Djalminha, Rivaldo, Roberto Carlos, Alex, Messi, Griezmann, Salah, Marta, Ganso etc.
 

Pelo lado prático, nem imaginei como seria lidar com abridores de lata, maçanetas, zíperes, ou escrever sobre uma carteira escolar com a mesinha do lado direito da cadeira. Pior: teria que deitar o caderno e ficar com a mão toda suja de tinta depois das anotações. E se fosse chamado a resolver alguma questão no quadro, será que a mão viria apagando tudo o que havia escrito? 


Uma hora me dei conta de que craques e pernas-de-pau existem aos montes, destros ou sinistros. Só os obscurantistas veem sentido em aquilatar o valor de alguém a partir do lado mais ativo do corpo ou da mente.  



Marcelo, amigo meu, me contou outro dia que, quando menino, durante meses a mãe o quis ensinar a amarrar os cadarços do Kichute. Em vão. Descobriu depois que o método materno de ensino era para destros e aprendeu em cinco minutos. Simples.

 

Falou também dos transtornos até se acostumar com espirais de cadernos e tesouras. E de quando erguia a mão esquerda para traçar o sinal da cruz diante da capela do bairro ou ao ser apresentado a alguém. Era inevitável o constrangimento.

 

O embaraço persistiu ao lidar com a alavanca das colheres de sorvetes, que exige esforço adicional dos canhotos. Tal como utilizar o mouse do computador. Aliás, quando ele começou a trabalhar, vivia trocando o lado do teclado com o do mouse, com o chefe a reclamar que não estava fazendo o certo.

 

Contou ainda que até hoje “escuta” a mãe a lhe repreender em sonhos: “meu filho, Nosso Senhor nos diz, entre outras coisas, que a caridade se faz com a mão direita; quando você der esmola, que sua mão esquerda não saiba o que fez a direita”.



Pois bem. Se um de meus netinhos nasceu canhoto, preciso registrar que outro já havia nascido daltônico e não enxerga qualquer diferença entre o vermelho e o verde. E que já aprendi com eles o suficiente para entender que o lado preferido de cada um – esquerda e direita – e as cores que vestem não mudam a sua essência. 


Nesses tempos difíceis que lhes foi dado crescer e amadurecer, sei que o primeiro ar que se respira já contém as impurezas do mundo, mas torço para que preservem essa versão mais pura de encarar a vida e ser feliz, com muitas dúvidas e poucas certezas. A tolerância, afinal, ainda é a mais radical das virtudes.

 


quarta-feira, 20 de julho de 2022

Tem mau cheiro no ar

Antes que a tormenta eleitoral que vem por aí ofusque nossas preocupações particulares e coletivas, é preciso refletir sobre algumas feridas da amada pátria que ora mais parece uma carroça na chuva, descendo ladeira abaixo, sob o "controle" de um pangaré com os cascos encerados. 


Deus é testemunha de que nem mesmo eu boto tanta fé em que só refletir sobre essas feridas vá resolver alguma coisa. É preciso, antes de tudo, uma improvável trégua entre lados opostos (ambos convencidos de suas verdades imutáveis), como cicatrizante das diferenças de opinião.

 

Claro que, se recebesse um mandato divino, eu mesmo sairia por aí a fazer justiça com minhas próprias mãos, distribuindo pão e terras aos famintos e mal pagos, além de compaixão e generosidade para os mais abonados, até para contradizer quem acha que Ele “é um gozador, adora brincadeira, pois pra nos jogar no mundo tinha o mundo inteiro, mas achou muito engraçado nos botar cabreiros e na barriga da miséria nascemos brasileiros”.

 

Acontece que a amada pátria, ainda estarrecida com a barbárie de dois crimes repugnantes (fadados ao esquecimento daqui a pouco), vê explodir toda semana novos mísseis devastadores, daqueles que não só destroem prédios e pontes, mas também o que resta de dignidade de uma nação.

 

Discutia-se nos bares e lares a diferença de duas abordagens policiais: a de um homem negro, pobre, que trafegava sem capacete numa motocicleta e acabou morto por asfixia no porta-malas de uma viatura em Sergipe. A outra, de um homem branco, que estuprou uma mulher em seu mais sublime momento, anestesiada – dopada talvez fosse o termo mais apropriado – durante o parto. Parecia que o segundo estava sendo convidado a tomar um chope num quiosque qualquer da Barra da Tijuca.

 

Nisso, logo após a derrota do Flamengo no jogo de ida contra o Atlético-MG pela Copa do Brasil, no Mineirão, um jogador rubro-negro, ainda no gramado, declara algo inesperado partindo de um ídolo esportivo de vulneráveis: "Lá eles vão conhecer o que é inferno!". Referia-se ao ambiente que se deveria criar no Maracanã no jogo de volta. 

 

O Galo não jogou nada e o Urubu nem precisou ser espetacular para vencê-lo: bastou empenhar-se do começo ao fim, atacando em bloco com velocidade, marcando firme e contando com mais uma atuação de gala de um uruguaio humilde e talentoso, autor dos dois gols da vitória. Mas, e se o Flamengo perdesse, como reagiria a massa contra os adversários ou mesmo em relação a seus próprios ídolos?   

 

Na noite seguinte, Cássio, 35 anos, o maior goleiro da história do Corinthians, sofreria uma voadora, pelas costas, de um torcedor santista que, inconformado com a desclassificação de seu time, invadiu o campo da Vila Belmiro. Chateado, ele repetiu numa entrevista aquilo que está cada dia mais óbvio (ululante, no dizer de Nelson Rodrigues): "Falta pouco para uma tragédia"

 









Sabe que poderia ter sido vítima fatal se o agressor estivesse com um canivete, um caco de vidro ou um pedaço de vergalhão. Vai-se ver lembrou de que em fevereiro o ônibus da delegação do Grêmio Porto-alegrense – clube onde começou sua carreira – fora apedrejado pela torcida do Internacional ao chegar no estádio Beira-Rio e alguns jogadores ficaram feridos. O meio-campista chileno Villasanti chegou a ser levado ao hospital, sob suspeita de concussão.

 

"A gente tá duvidando que isso possa acontecer", arrematou Cássio. Logo ele que, também em abril passado, teve de registrar boletim de ocorrência policial por haver recebido ameaças pelas redes sociais, num momento adverso de seu clube. O resultado das investigações? O mesmo do inquérito aberto pelo STF para investigar a existência de fake news na cena política brasileira.   

 

Quem acompanha futebol mais de perto recorda que, no começo deste ano, durante a partida entre Palmeiras e São Paulo pela Copa São Paulo de Futebol Júnior, um atleta do Verdão encontrou uma faca no gramado, invadido por torcedores do Tricolor. Claro, não era um utensílio de trabalho esquecido pelo jardineiro da Arena Barueri.

 

Esses casos estão cada vez mais frequentes e absurdamente ousados. Medidas como torcida única nos jogos mais importantes ou proibição de bandeiras nos estádios, soluções adotadas em São Paulo, mostram-se ineficazes e só evidenciam a má-vontade do poder público e dos dirigentes de clubes em resolver o problema.

 

O embrutecimento generalizado é mais preocupante porque, noutras esferas tão explosivas quanto futebol e religião, incentiva-se abertamente o clima de guerra, desacreditam-se as instituições e incitam-se potenciais criminosos por meio do afrouxamento de regras mínimas de civilidade como o controle de armas. 

 

Como o pior do clima futebolístico está presente nos aspectos mais importantes da vida nacional, recorro de novo a Nelson Rodrigues, citado por Ruy Castro na Folha de S.Paulo de 16.07.22: "Quando os amigos deixam de jantar com os amigos por causa da ideologia, é porque o país está maduro para a carnificina".

 

Cássio está certo: tem mau cheiro de tragédia no ar.  

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Botinas, afagos e batinas

Andei lendo sobre o Brasil de dois séculos atrás, nos primeiros anos de independência, quando a Igreja abriu centenas de processos com pesadíssimas acusações contra o clero e inúmeros religiosos. As denúncias mais corriqueiras eram sobre crimes de fornicação (ato sexual que acontece entre não cônjuges), concubinato (união sem reconhecimento legal) e interpretação tendenciosa das escrituras em assuntos relacionados a sexo.

 

A bagunça era tanta que um certo dom Antônio Viçoso, bispo de Mariana, Minas Gerais, só faltou ajoelhar-se aos pés de seus superiores na arquidiocese da província: “Peço o socorro de suas orações a favor de um pobre bispo que passa pela aflição de ver paróquias entregues a lobos vorazes mesmo sem peles de ovelha”. Referia-se a seu próprio rebanho: seminaristas, padres e párocos.

 

É verdade que a própria formação do clero contribuiu para esse estado de coisas. Os seminários eram vistos pelas famílias como porteira de acesso de seus rebentos ao ensino superior e à elite. Vocação à parte, era bem mais em conta do que bancar estudos de filhos no Velho Continente.  

 

Também havia dificuldades de recrutamento por força das restrições impostas para o celibato eclesiástico. Isso levou a Igreja a afrouxar os cadarços de sua pregação moralizadora, especialmente durante os ciclos do açúcar e do ouro de nossa história. 

 

O caso de José Barradas foi emblemático. Em 1795, três padres que avaliavam o seu ingresso no seminário argumentaram que era “público e notório” que ele era “concubinário e com filhos”, além de autor de “alguns latrocínios”. No entanto, o pároco da região mineira de Mariana, João Borges, concluiu que tudo não passava de “ouvir dizer e não havia prejuízo causado a qualquer pessoa”. 

 

Difícil imaginar que latrocínio não prejudicasse alguém, mas, enfim, foi a conclusão. Parece que as águas de Mariana, impregnadas de minérios, não eram lá muito bentas. 

 

Este sobrevoo panorâmico me fez recordar de uma conversa que mantive com uma querida amiga gaúcha (já falecida) no final dos anos 1970. Ela me contou que, nos idos de 1941, dois de seus irmãos viram de perto a maior enchente do rio Guaíba, que banha a cidade onde nasceram na zona metropolitana de Porto Alegre. 


O mais velho deles, de 10 anos, saíra cedinho para ver a correnteza arrastando o que encontrava nas margens. As águas subiram rápido, a tarde esfriava e nada de o menino chegar. Em meio aos rumores de que alguns corpos foram vistos boiando rio abaixo, a família cai no choro a pedir aos céus um milagre. 

 

Nisso, o irmão mais novo do sumido aparece na sala e se habilita na possível partilha de bens: “Se ele morrer, o par de botinas é meu!”. Para sua frustração, o quase afogado surge assoviando na porta de casa, no final do dia, e a vida, feito o rio Guaíba, seguiu seu curso.

 

Anos depois, dizendo-se arrependido da falta de compaixão e fraternidade durante a infância, o quase herdeiro das botinas daria a entender que se transformara em homem digno, justo, a serviço do bem: ordenou-se padre e assumiu o trabalho pastoral na própria diocese em que fora batizado.  

 

Porém nunca conseguiu conciliar a vida celibatária com sua canalhice atávica e vocacional, perceptível até nas bochechas e nos olhos empapuçados de safadeza. 


Era daqueles cujas batinas estavam sempre amarrotadas. Vivia a afagar “sem maldade” quase todas as beatas papa-hóstias que se dispunham a auxiliá-lo nas tarefas paroquiais, inclusive uma bem robusta que, mais adiante, lhe faria arfar com a língua de fora propondo casamento, de papel passado e tudo. 

 

Para a sua irmã (a querida amiga a que me reportei), tirando a filha dela, quase todas as sobrinhas haviam sido vítimas de afagos, a pretexto de lhes avaliar o desenvolvimento de mamilos e pernas, tal como fazia com outras meninotas da comunidade, sob velada ameaça de vazamento de segredos guardados desde a primeira eucaristia. 

Ele sempre negou, jurando tratar-se de algo “cruel, injusto e desigual”, como diria meio século mais tarde um certo executivo afastado da presidência de um banco público sob a acusação de assédio sexual e moral.

 




Quanto às meninas mais recalcitrantes, no escurinho do confessionário ele oferecia drops de anis como parte da penitência, desde que elas os escolhessem com as próprias mãos nos bolsos da batina. As mais espertas pulavam de banda quando descobriam, dentre os pacotes de pastilhas, que havia algo de textura um pouco diferente.

 

Depois que largou a batina, casou-se e virou fiscal de rendas na capital gaúcha, não durou nem 10 anos. A diabetes nunca combinou com sua gulodice canina, apesar de se enxergar o próprio garoto-propaganda do Suíta (o primeiro adoçante artificial lançado por aqui, para as pessoas que queriam “entrar na linha”). 

 

Se era para o bem de todos e felicidade geral da comunidade, foi-se. Antes, contudo, teve que quitar a contragosto parte de seus pecados em módicas parcelas mensais: primeiro, foram-se alguns dedos dos pésem seguida, fatias das pernas brancas e gordas; por fim, o saldo da pança, inclusive as bochechas.


Chupando drops de anis, deve agora vagar noutro escurinho, a rever o filme de tudo sentado no colo do capeta.

 

 

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Língua solta

As saias de vinco batiam no meio das canelas das meninas e já foram de várias cores: azul, bege, marrom, vinho. Os internatos femininos dos idos de 1940 a 1970 custavam os olhos da cara. Em troca, ofereciam formação e conduta. As meninas até podiam sair da clausura, mas sob a tutela de religiosas que cuidavam desde a forma de se pentear até os centímetros da roupa.


Era comum uma moça trocar de internato se outro na região oferecesse um horário mais flexível, permitisse uma inocente troca de olhares no café ou chá de casca de laranja com um rapazote, na sala de estar. Apesar dos rigores, divertiam-se. Longe de casa, dividiam quarto com amigas de outras cidades, com quem compartilhavam cochichos de dormitório sobre namorados, virgindade e casamento. 


Soube por intermédio de meu amigo Chiquinho Neto que, certa feita, madre Perpétua do Socorro, uma paulista de Barretos (capital do rodeio), radicada no Alto Sertão cearense, diretora do internato da cidade onde ele nasceu, decidiu levar suas meninas para assistirem ao circo que acabara de chegar. Para ela, o circo era um lugar mágico, que remetia a vivências e sensações incríveis, fazendo crianças, jovens e até os mais velhos viajarem na beleza das cores, na alegria dos palhaços e nas acrobacias e aventuras dos trapezistas. 

 

A história circense no Brasil se inicia no século 19, período em que muitas famílias europeias chegavam e se reuniam em guetos onde, além de compartilharem vida coletiva, demonstravam suas habilidades circenses. Também com ciganos que, nômades, se apresentavam ao público de diversos lugares mostrando algumas de suas habilidades, como o ilusionismo e a doma de animais bravos.

 

Os espetáculos eram adaptados de acordo com o gosto do público. Se alguma atração não agradava aos espectadores de certa região, deixava de fazer parte da programação para aquele local. O palhaço europeu, por exemplo, na versão original era menos falante e fazia uso da mímica como base para suas apresentações. 

 

Esse modelo não funcionou bem por aqui e precisou ser adaptado para o tipo de palhaço que todos nós estamos acostumados, principalmente aqueles que atuam em circos mambembes, sem a atração de animais: fala alto, volta e meia utiliza instrumentos musicais sem muita habilidade e tenta ser engraçado de forma chula.

 

Mas voltemos àquela tarde em que madre Perpétua em carne, véu e osso, resolve levar as suas meninas para assistirem ao circo que acabara de chegar. Todas acomodadas, algodão doce e pipocas fraternalmente distribuídas, eis que o espetáculo começa com o palhaço a toda corda. À medida que o público aplaude, sobe o tom das tiradas picantes, até descambar ladeira abaixo:

– E o palhaço, o que é? 

– É ladrão de mulher!

– E a mulher, o que tem?

– Carrapato no sedém...

 

Nos rodeios, “sedém” é uma espécie de cinta, confeccionada em lã, crina de cavalo ou espuma revestida de tecido macio, que corre entre o traseiro e a virilha do touro para estimulá-lo a escoicear cada vez mais, a desafiar o equilíbrio do peão. 

 

Talvez lembrando de sua infância em Barretos, no interior paulista, madre Perpétua trata de recolher suas pombinhas inocentes e, em comitiva, busca ajuda junto à principal autoridade da cidade, depois do prefeito, do juiz e do padre: o delegado Tonho Lapada, militar reconhecido como reserva moral nas redondezas, apesar da injustiça de seus tabefes reservados apenas aos ladrões de galinha.

 

Ao chegar à delegacia, a madre superiora foi ao ponto:

– Delegado, o palhaço tá com imoralidades lá no circo. Tive que sair de lá correndo com as moças por causa dos palavrões. Onde já se viu uma coisa dessas? 

 


Ilustração: Umor








Tonho Lapada levanta-se num pulo só, beija as mãos da freira e exprime sua mais profunda revolta com o ocorrido:

– O quê?! Aquele “filadaputa” tá faltando com o respeito ao povo daqui? Vou lá agorinha fechar aquela empanada de merda! E se ele insistir, meto o pau no rabo dele na frente de todo mundo! Será que ele tá pensando que essas divisas aqui – bate os dedos indicador e médio da mão direita sobre o braço esquerdo – foram pregadas com sebo?!


E veio uma onda de suspiros e desmaios, fingidos ou não. 

 

A língua é viva. A maneira de falar se renova mais rápido do que o modo como se escreve, porque a oralidade precede à escrita e é bem mais utilizada. Render-se às mudanças na fala e na escrita é sentir de perto o idioma em movimento. 

 

Chiquinho Neto me conta também que, pouco depois que o circo e o delegado partiram da cidade, madre Perpétua foi vista conversando com uma mocinha que chegava pela primeira vez ao internato, cheirosa e bem penteada, com a saia de vinco batendo no meio das canelas:

– Minha filha, tomara que você traga de berço um linguajar castiço, polido, porque isso aqui tá de lascar! Parece um circo!

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Pulga Prenha

Descobri que o nome “Jason” tem origem grega (vem de Iáson ou Eáson). Significa “aquele que cura”, “Deus é o auxílio”. Refere-se também a uma pessoa dinâmica, embora desorganizada, que gosta de ocupar-se com estudos e leituras, mas não tem muito tato quando expressa suas convicções.

O que conheci na segunda metade dos anos 1970 era bastante espirituoso e irreverente. Baixinho, robusto, calvo, com olhos graúdos sobre um bigode espesso. Tornou-se profissional respeitado – o escriba dos chefes! – na principal agência do Banco do Brasil em Alagoas por conta do tanto que sabia de português e inglês. 

 

Em cada pavimento que chegava mexia com um, com outro, fazendo uma zoada medonha. Nem bem me conhecia quando indagou, com a cara mais séria do mundo: “Por que fizeram isso com você, meu filho? Um nome tão britânico merecia um sobrenome decente. Mas Jurema, hein!?”. E riu de juntar gente.

 

Crítico impiedoso e mordaz de qualquer deslize gramatical que tomasse conhecimento, não raro telefonava à redação dos jornais da cidade para apontar vacilos. Fazia o mesmo quanto a instruções circulares e correspondências que a agência recebia da Sede. Acabou recebendo dos colegas de trabalho a alcunha de “Vetusto Mestre”.

 

Não gostava. Mexia com todos mas não queria que mexessem com ele.  Tentou inclusive convencer os “burros” de que o termo “vetusto” não se aplicava a pessoas. Só à museologia, pontuava. Não adiantou: teve que engolir calado até aparecer outro apelido bem mais cruel: Pulga Prenha. A barriga roliça, a careca escura e reluzente e os olhos boleados foram decisivos para a aderência da alcunha.

 

Tinha lá suas esquisitices. Algo meio aristotélico. Diz-se que não existe uma grande inteligência sem uma veia de loucura. Ou newtoniano: pode-se calcular o movimento dos corpos celestiais, mas não a loucura das pessoas.

 

Jason “Pulga Prenha” amava lecionar, nem tanto pelos trocados que amealhava, mas pelo gosto de compartilhar saberes. Organizava inclusive turmas de colegas para ensinar gratuitamente gramática e redação. E deixava claro na primeira aula que os exemplos conteriam expressões chulas, sobretudo as de múltiplo uso que podem servir de adjetivo, substantivo, verbo, interjeição etc. "Ninguém esquece", dizia. 

 

Uma noite, chegou do trabalho cansado e comentou com a esposa que iria tomar banho, comer alguma coisa e cair na cama. Fazia muito calor e, como de costume, espalhou pela casa roupa, gravata, sapatos e meias. Pegava o rumo do banheiro quando faltou energia. Vestiu então uma sunga e avisou que iria caminhar até a praia, enquanto a energia não voltava.

 

Saiu pelas ruas do bairro do Poço em direção à praia num breu danado. Nem automóveis circulavam. Suando muito e confiado na demora do blecaute, tirou a sunga e seguiu como veio ao mundo – talvez tenha vindo um pouco mais apresentável! – até que, de repente, a energia voltou. 


A correria foi grande até chegar em casa e passar o cadeado no ferrolho do portão. Se parasse para cobrir as partes pudendas, poderia ser apedrejado pela molecada do bairro, que gritava no seu encalço.

 

Avesso a qualquer forma de bate-boca, quando por algum motivo se desentendia com a mulher, evitava discutir na frente dos filhos. Nessas ocasiões, porém, na hora de dormir, procurava a garagem com um travesseiro debaixo do braço, colocava-o entre os eixos do carro, empurrava-o com um cabo de vassoura e ali mesmo pegava no sono até o sol raiar. 


Ilustração: Umor



Sua santa esposa sempre foi bem mais cuidadosa do que ele na administração das finanças domésticas. E com as economias de anos, comprando e vendendo confecções e bordados que trazia do Ceará, ela juntou o suficiente para adquirir um fusquinha, devidamente licenciado para uso como táxi nas ruas de Maceió.
 

Ato contínuo, combinou com um velho conhecido da família, aposentado, que passou a trabalhar com o táxi, mediante comissão. Assim, toda noite ele levava o apurado líquido do dia, além do veículo para guarda na casa da proprietária. Às sete da manhã seguinte, retomava a rotina.

 

Uma noite o motorista não apareceu. A dona relevou, segura de que poderia ter acontecido algo imprevisto. Um dia depois, a mesma coisa. No terceiro dia, de novo.  A paciência já estava no limite e o motorista não tinha telefone nem havia orelhão nas proximidades de casa. O quarto dia foi a gota d’água:

– Marido, vamos agora na delegacia! Ele roubou meu carro!

– Calma, mulher! O cara é gente boa...

– Se você não for comigo, eu vou sozinha!

– Veja... Você lembra que na semana passada eu lhe pedi para assinar um documento, dizendo que era a renovação do seguro?

– Lembro. E daí?

– Aquilo era o documento de transferência do veículo. Passei pro nome dele. O homem tá velho, cansado, criando netos, com os filhos desempregados dentro de casa...  

– Você ficou louco!?

– Só agora você descobriu?


Tinha lá seus motivos, óbvio. Mas teve também que passar nova temporada pernoitando na garagem, desviando-se de gotas de óleo queimado, a vazarem de juntas do motor mais relaxadas do que ele.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

O curioso caso de Quirino

Você já ouviu daquelas histórias que todo mundo diz que aconteceram com um amigo? A que conto aqui envolve Quirino — goleiro, dos bons, do time do meu bairro — e sua irmã de criação, Alzirinha, dois anos mais velha que ele.

 

Quirino teria não mais que 13 anos. Duas vezes por semana, por volta de quatro da tarde, ia ao banheiro, levando caderno, lápis e livros. Para Alzirinha, que vivia a espremer cravos e espinhas enquanto não estava lendo fotonovelas de Capricho, Grande Hotel ou Sétimo Céu, não era para estudar Matemática. Entre as folhas haveria algum recorte de uma revistinha sueca ou um “catecismo” de Zéfiro — pseudônimo de um comportado e insuspeito funcionário público federal —, desenhista de quadrinhos eróticos entre os anos 50 a 70.

 

Alzirinha cismou de uma vez por todas quando flagrou Quirino, no quarto, tentando reproduzir a lápis grafite a obra Êxtase de Santa Teresa (do escultor italiano Bernini), exposta na Igreja de Santa Maria della Vittoria, em Roma. A expressão do rosto, com lábios entreabertos, de fato pode levar alguns a verem uma tradução carnal ao êxtase pretensamente sagrado.

 















Andava tão encasquetada (ou com ciúmes, sei lá!) com a curiosa rotina do irmão que um dia bateu à porta e quis saber, como se já não soubesse:  

— Que diabo você tanto faz aí?

— Não é de sua conta!

— Não fale assim comigo!

— Então, cuide de sua vida.

— Vou contar a papai.

— Me deixa em paz!


Alzirinha só sossegou no dia em que conheceu o novo vizinho, um cabeludo das canelas finas que fumava igual a uma caipora, dono de um fuscão preto com as rodas largas e o cano de escape aberto. Tinha mais o que fazer.

 

Tempos depois, em seus devaneios etílicos no boteco, entre amigos, Quirino andou defendendo tese no mínimo incomum: achava que os seres humanos deveriam nascer velhinhos, decrépitos, e evoluírem na direção de uma infância plena de saúde e sabedoria. 

 

Algo parecido seria visto bem mais adiante no filme O curioso caso de Benjamim Button, inspirado na obra de Fitzgerald e lançado em 2008. A obra narra a história de um homem que nasce com a aparência de um idoso e rejuvenesce à medida que vive experiências como o amor, a solidão, a perda e o medo.

 

Para Quirino, só se deveria trabalhar após os 40. Antes disso, todos deveriam receber mesada de um certo fundo de recursos financeiros — poupança formada pelas pessoas mais idosas —, o suficiente para viver o ápice da maturidade em plena ebulição hormonal.

 

Tinha dúvida, evidente, se os suicidas não acabariam provocando o colapso do fundo, deprimidos com a proximidade da jornada de trabalho pelo resto da vida. Caso acontecesse, haveria desequilíbrio entre nascimentos e mortes e a sobrevivência no paraíso estaria comprometida.

 

Fã de O Pasquim — sobretudo de Millôr Fernandes, Ivan Lessa e Paulo Francis —, Quirino sempre embarcava com facilidade numa boa utopia. Mas um dia o porre acabou. Formou-se em arquitetura e passou a trabalhar como todo mundo, sujeito a carga horária, ao estresse de ser infalível, à raiva de ter que repassar aos governos de plantão quase 30% daquilo que ganhava.

 

Encontrei a criatura, outro dia, mais de 40 anos depois, tomando café com tapioca de coco e queijo derretido no mercado. Apesar da escassez capilar e dos quilos e rugas a mais, não foi difícil nos reconhecermos. 

 

Logo conversávamos sobre ilusões convertidas em esperanças, sobre garrafas de suor e pranto derramadas pelo caminho e sobre o receio de não conseguir tudo o que ainda sonhamos alcançar.

 

Falei de filhos e netos, de prazeres e desgostos, e de que, no derreter do queijo, me sinto bem, com as doenças sob adequada gestão. Sem os rachas de antigamente, disse-lhe que agora me distraio escrevendo crônicas sobre o que vi ou tenho diante de mim.

 

Quirino, que nunca foi de muita conversa, a não ser quando tangido pela emoção do terceiro gole — gostava de citar o personagem de Bogart, no filme Casablanca: “a humanidade está sempre duas doses abaixo do normal” —, falou de si ao recitar uma adaptação bem pessoal que escreveu de “O último poema”, de Bandeira:

 

Assim eu quis, mas nunca consegui, o meu único poema.

Que dissesse as coisas mais simples e menos intencionais.

Que fosse forte como um soluço sem lágrimas.

Que fosse belo como as flores sem cheiro.

Que tivesse a pureza da terra, do ar, da água e do fogo, no começo de tudo.

E a paixão dos que se matam por nada.

 

Perguntei de seus textos e desenhos autorais, mas ele me confessou que desistiu desde aquelas tardes solitárias em que, talvez com uma ponta da razão, Alzirinha andou desconfiando da extensão de sua pegada poética, de sua veia artística de grosso calibre. 



E assegura que o mundo, esse ingrato, perdeu um pintor ou poeta — ave rara, feito rolinha-fogo-apagou, nos dias de hoje  ainda no ninho. Nem chegou a voar. Desistiu ao levar o primeiro peteleco e se estatelar com as asas abertas e o peito no chão.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Quem souber, me conte, por favor!

Faço parte de alguns grupos de WhatsApp de ex-colegas de trabalho. Vira e mexe, dou de cara com um post anunciando o silêncio definitivo de um deles, seguido daquela fila de condolências, votos de pêsames, de uma boa passagem, de um bom lugar na eternidade. 

 

Ninguém diz, mas certamente sempre tem alguém ruminando: “Logo fulano! Por que não beltrano?”. Se algum beltrano me lê agora, peço não levar isso muito a sério. Faz parte da natureza humana.

 

E tem aquele curioso querendo saber a causa do passamento, como se isso fosse relevante àquela altura, ao que alguns se apressam em responder convictos: “infarto fulminante”, “parada cardiorrespiratória", por aí.

 

A pergunta carrega em si um pensamento um tanto egoísta e sutil: quer o inquiridor apenas  "confirmar" se estaria fora de risco. E cresce a fila de posts:

– Como foi possível? Infartou com todos os exames em dia? – indaga um.

– Parecia tão disposto… – comenta outro.

– A morte só quer um pretexto... Vai ver foi a vacina! – especula o terceiro. 

 


Desconheço o sessentão como eu que não faça uso de pelo menos uma bengala química para se manter de pé, ativo e saltitante. Exceto os mentirosos, claro, os quais nunca chegam nem aos 50.

 

Muitos subestimam os efeitos colaterais dos remédios sob o argumento de que as bulas representam apenas precaução da indústria farmacêutica, temendo processos judiciais.

 

Outros não admitem que a causa mortis pode ter sido o desencanto com a espécie humana, sobretudo com figuras próximas. Ou com as dores que toda manhã alertam para o correr dos anos. Ou ainda com a incoerência de uns que discursa sobre a ineficácia de vacinas mas que, de boné, máscara e óculos escuros, toma até as doses de reforço.

 

Não me lembro de ninguém que encerrou sua jornada neste plano que não tenha puxado uma última lufada de oxigênio, seguida de um derradeiro batimento cardíaco. Nem de quem tenha sofrido um colapso sob aviso prévio de 30 dias, datado e rubricado. Soa discutível, portanto, falar de parada cardiorrespiratória ou infarto fulminante como causa mortis depois de certa idade da vítima.

 

Parece coisa daquele velho médico, já com a bateria em petição de miséria de tanto surfar no vai-e-vem das ondas científicas, que fecha um diagnóstico (quadro febril, com enxaqueca e mal-estar) olhando para o paciente como quem acaba de descobrir o segredo da vida eterna e decreta na maior caradura: “é virose!” 

 

Bem, se virose ainda é o nome que se dá para qualquer doença ou infecção causada por vírus, sou capaz de vestir uma camisa vermelha e preta e desfilar por aí se o ilustre doutor já não soubesse disso mesmo sem se dar ao trabalho de passar anos entre graduação universitária e residência médica. Melhor servir água gelada e cafezinho e predizer: “vai passar”. De uma forma ou de outra, tudo passa.

 

Sei que pareço outro velhote desses com o combustível na reserva, aqui no balanço de uma rede na varanda, conjecturando sobre a morte e suas causas. Tudo bem, confesso, às vezes essa imagem acaba sendo bem fiel. 

 

Há algum tempo estou convencido de que toda pessoa morre duas vezes, com certo espaço entre as duas. A primeira quando ganha sepultura e epitáfio para chamar de seus e a segunda quando seu nome é citado entre os vivos pela última vez. Raras permanecem na memória por séculos, como Jesus Cristo, Maomé, Beethoven e Da Vinci. A maioria não sobrevive nem mesmo na lembrança de seus descendentes, amigos do peito ou credores.

 

Mas no balanço geral, contudo, existem circunstâncias que podem melhorar o resultado da última linha. O olhar amoroso e protetor de pais e avós e a contrapartida de afeto e reconhecimento de filhos e netos, por exemplo, têm o condão de alongar a memória e retardar o esquecimento.

 

O bom da velhice? Sei lá! Quem souber, me conte, por favor. Sei é que tenho um monte de casos para contar. Posso passar o resto da vida lembrando (e recriando, do meu jeito) o tanto que experimentei, mas viver só de lembranças é coisa de velho e ficar velho é uma merda! É tolerável apenas quando penso na única alternativa que existe e opto por ficar por aqui, divertindo-me e mexendo com quem presta atenção no que escrevo.   

 

Enquanto somos lembrados, a memória respira, lateja. No jogo da vida, não existe morte súbita nem na prorrogação. Ou será que toda morte é súbita? Sei lá! Quem souber, me conte, por favor! 


Como na canção "Epitáfio", dos Titãs (ouça), contamos todos que o acaso nos proteja enquanto seguimos distraídos por aí. 

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Açoite

O trem chegou às oito e meia da noite na estação de União dos Palmares, Zona da Mata alagoana, num dia útil qualquer do final dos anos 60:

— Oxente, Açoite, o que cê tá fazendo aqui? — quis saber a dona da casa, surpresa com a inesperada visita.

— Acabei de chegar, dona Eudócia — respondeu, enxugando a testa na manga da camisa.

— Como é que cê veio?

— Tem dois dias que tô viajando.

— Quem deu a passagem?

— As irmãs do Cristo Rei.

— Tá com fome?

— Muita.

— Entre, sente.

— Tem sopa?

— Tem. Vou esquentar.


Açoite era mais um andarilho à custa da caridade alheia. Vivia entre cidades do Sertão paraibano, mas passava a maior parte do tempo deitado no terraço da prefeitura de Patos, balançando-se sob o ritmo do ranger da cabeça dos punhos da rede nos ganchos.

 

A molecada morria de medo de levar uma pedrada na cabeça, mas gostava, a razoável distância, de vê-lo a produzir com o vento um assobio ao girar uma pedrinha presa a um barbante, tirando finos cada vez mais próximos de sua própria boca. 

 

Vinha daí o apelido. Açoite (chicote, chibata etc.) é uma trança de corda ou tira de couro presa a um cabo para fustigar animais e, em certos países, para castigar seres humanos por violação de normas instituídas por eles mesmos. 

 

No auge da performance de Açoite, sempre aparecia alguém querendo quebrar o encanto: 

— Tem juízo um homem desses?!

— Tem nada! — dizia o próprio Açoite, a piscar os olhos, em tique nervoso — Mas é melhor ser doido em Patos do que prefeito em Piancó.

E quando estava em Piancó ou Conceição, só “recalculava a rota” de seu GPS. Sobrava então para o prefeito de Patos.

 

Tinha outros problemas de saúde, claro, mas também foi diagnosticado como epiléptico pelo único médico da cidade de Patos. Na época, a epilepsia ainda era associada à loucura e até a possessões demoníacas. Com esse estigma, as crises convulsivas de Açoite — que não tinha meios para uso regular de remédios — assustavam a criançada no meio da rua. 

 

Havia algumas mulheres que se aproveitavam desse temor para ameaçar os filhos: “Fique quieto, danado, senão eu chamo Açoite para te pegar!”

 

Quando dona Eudócia soube disso, teve pena e assumiu com Açoite o compromisso de lhe fornecer o remédio todo mês, além de garantir um prato de comida no almoço e outro no jantar, como já vinha acontecendo. “Ele chegou a engordar um pouquinho”, ela me contou. 

 

Um dia dona Eudócia foi embora com seus filhos, acompanhando o marido, que fora nomeado subgerente do Banco do Brasil em União dos Palmares (AL), a 430 km do Sertão paraibano. 

 

Açoite sentiu. Mas poucas semanas depois procurou a agência do banco em Patos para saber o paradeiro do marido de sua protetora. Em seguida, foi ao Colégio Cristo Rei, onde convenceu algumas freiras a arranjarem o suficiente para pegar o trem para Recife e, de lá, para Maceió. Assim, ficaria fácil chegar ao destino pretendido, a 70 km da capital alagoana.


Ilustração: Umor

 









Naquela noite, depois da sopa e do banho com sabonete “de gente”, como dizia Açoite, pediu rede e lençol para dormir. Antes que caísse no sono, dona Eudócia quis saber:

— Gostou da sopa?

— Oh! Já tô pensando no pão com manteiga e café amanhã bem cedinho.

— Teve saudade da gente, foi?

— Foi.

— Por quê?

— A senhora cuida de mim. E os meninos não têm medo.

 

Uma semana depois, Açoite deve ter lembrado do balanço de rede no Sertão paraibano e ficou amuado pelos cantos da casa. Foi quando, com a ajuda de sua protetora, pegou de volta o trem, levando, além de um trocado, algumas caixas de Gardenal.

 

Como tantas outras pessoas que cruzam o nosso caminho, do jeito que apareceu, sumiu. Nunca mais se ouviu falar dele.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Sem nó na garganta

Para gravar a antológica cena de “Os Caçadores da Arca Perdida” em que Indiana Jones (Harrison Ford) se vê às voltas com centenas de cobras, a produção vasculhou todas as lojas de animais exóticos nas proximidades do Elstree Studios, na Inglaterra, buscando os mais variados tipos de serpentes. Levou ao set de filmagem o máximo que conseguiu encontrar, mas o diretor Steven Spielberg achou que ainda estava distante do número ideal. Então recortou algumas mangas de camisas compridas e pernas de calças velhas, misturando-os aos répteis para alcançar o efeito desejado. 

 

O resultado apavorou até o pessoal do Instituto Butantã, em São Paulo, que mexe com cobras, escorpiões, aranhas e lacraias. Foi elogiado pela crítica por focar no terror psicológico, que cozinha o cérebro em fogo brando, em vez de apostar naqueles sustos repentinos que alteram os batimentos cardíacos e nos fazem pular da poltrona. Sem falar nos pesadelos que, vez por outra, nos atormentam.

 

Lembrei-me disso na semana passada, ao abrir não uma arca perdida mas uma caixa guardada por minha mulher quando nos mudamos do apartamento em que morávamos na Asa Norte, em Brasília, a 10 minutos do trabalho, para a casa no Jardim Botânico onde agora nos acordam bem-te-vis, corujas, maritacas, quero-queros e sabiás. 


Quase fui picado por mais de 40 gravatas que usei no tempo em que me fantasiava de executivo. Tive a sensação de que algumas se mexiam, cada uma com seu chiado próprio, ameaçando-me a qualquer momento um bote no pescoço. Refuguei no avanço exploratório para avaliar melhor o que fazer. Vi que nem aquelas que mais me custaram valem agora a cueca que me protege do frio que faz em Brasília neste atípico mês de maio.

 

 

Como um arqueólogo, fotografei o achado, lacrei de novo a caixa e fui refletir sobre que medidas a adotar após o inesperado reencontro. Ultimamente, aliás, só tenho visto gravatas em advogados, bancários, juízes, pastores religiosos, políticos e defuntos (nesse caso, óbvio, involuntariamente).


Vem de longe essa peça do vestuário masculino. Descobri que surgiu na França no final do século 17. Os gauleses adaptaram-na de um exército croata que andou por lá em 1668. Usava-se um cachecol para manter o pescoço arejado no verão e aquecido nos primeiros dias de inverno. Quando o frio apertava, era trocada por um modelo de lã. Foi em Paris, inclusive, que recebeu o nome de cravate, ou “croata”, em francês.

 

Acontece que gravata é feito gato: não gosta de água. Trata-se de uma peça por natureza imunda, repleta de microrganismos ressequidos, tanto de origem do usuário quanto de seus interlocutores, evidenciando, aliás, que a expressão “babar na gravata” não surgiu do nada. Tal como certas roupas delicadas, só é lavada à mão – nunca na máquina –, estendida na sombra e guardada com uma série de cuidados. Em tese, portanto, calcinhas, cuecas e meias são bem mais limpas e cheirosas.

    

Mandei a imagem de meu achado arqueológico para uma amiga, pedindo sua opinião sobre o que fazer. Adiantei que meu primeiro impulso foi jogá-lo numa fogueira. Mas isso não condiz com a secura que começa a castigar a vegetação do Cerrado nesta época do ano, nem pretendo formar pastagens para rebanho bovino ou plantar soja no meu jardim, agravando o caos ambiental decorrente de queimadas. 


Adiantei também que, nos tempos em que havia casamentos (talvez ainda haja, não estou bem certo disso), em especial os mais humildes, era comum recortar a gravata do noivo em minúsculos retalhos, a serem "vendidos" para os convidados, como forma de angariar uma ajuda para o novo casal. Pensei em algo nessa linha, dando um final prático e rentável para meu “serpentário”. Precisaria apenas convencer minha mulher a abrir mão da exclusividade quanto ao maridão, mas fui prontamente demovido: “A vida reprova quem erra mais de uma vez a mesma questão" – ela resumiu. Nem cheguei a explorar melhor o pensamento, que achei profundo.

 

Mais tarde, a amiga com quem compartilhei a fotografia me veio com esta: "Dariam pra fazer uma colcha de fuxicos". Fuxico, no caso, é um tipo de artesanato feito com tecido, agulha, linha e paciência... Muita paciência. Além de ser uma das técnicas mais conhecidas pelos brasileiros, é método de relaxamento barato que resulta em almofadas, cobertores, colchas, costurando-se pequenas e coloridas trouxinhas de pano.

 

Fuxico também, como se sabe, é falar da vida alheia de forma maledicente. É bisbilhotice, cochicho, disse-me-disse, futrica, mexerico, zunzum, essas coisas de moleque de recados. E, não tenho dúvida, se minhas gravatas tivessem ouvidos, juro que teriam ficado moucas de tantas intrigas que escutaram em mais de 40 anos lidando com certas figuras ordinárias e venenosas.

 

Optei, então, por um funeral (apenas das gravatas, sem o pescoço, bem entendido!). Afinal, superar a perda de certas peças de estimação não é nada fácil, já que estão impregnadas de sentimentos, testemunhas silenciosas que foram de momentos importantes. Além de lidar com a dor, portanto, era necessário encontrar uma forma de curtir o luto, mesmo sem lágrimas, antes de enterrá-las.

 

No cair da noite, sozinhos no quintal, eu e elas (as gravatas), fizemos uma cerimônia íntima, reflexiva sobre o que experimentamos juntos. No final, antes da última pá de terra e sem qualquer espécie de nó na garganta, recitei com convicção uma quadrinha popular cuja autoria desconheço que aprendi nos tempos de menino: “Toda roupa veste um nu/Menos gravata e colete/Porque não cobrem o cacete/Nem a regada do...”  

 

Não é de gravatas que devemos ter medo, mas de pensar nelas quando já não fazem sentido.