Para gravar a antológica cena de “Os Caçadores da Arca Perdida” em que Indiana Jones (Harrison Ford) se vê às voltas com centenas de cobras, a produção vasculhou todas as lojas de animais exóticos nas proximidades do Elstree Studios, na Inglaterra, buscando os mais variados tipos de serpentes. Levou ao set de filmagem o máximo que conseguiu encontrar, mas o diretor Steven Spielberg achou que ainda estava distante do número ideal. Então recortou algumas mangas de camisas compridas e pernas de calças velhas, misturando-os aos répteis para alcançar o efeito desejado.
O resultado apavorou até o pessoal do Instituto Butantã, em São Paulo, que mexe com cobras, escorpiões, aranhas e lacraias. Foi elogiado pela crítica por focar no terror psicológico, que cozinha o cérebro em fogo brando, em vez de apostar naqueles sustos repentinos que alteram os batimentos cardíacos e nos fazem pular da poltrona. Sem falar nos pesadelos que, vez por outra, nos atormentam.
Lembrei-me disso na semana passada, ao abrir não uma arca perdida mas uma caixa guardada por minha mulher quando nos mudamos do apartamento em que morávamos na Asa Norte, em Brasília, a 10 minutos do trabalho, para a casa no Jardim Botânico onde agora nos acordam bem-te-vis, corujas, maritacas, quero-queros e sabiás.
Quase fui picado por mais de 40 gravatas que usei no tempo em que me fantasiava de executivo.
Como um arqueólogo, fotografei o achado, lacrei de novo a caixa e fui refletir sobre que medidas a adotar após o inesperado reencontro. Ultimamente, aliás, só tenho visto gravatas em advogados, bancários, juízes, pastores religiosos, políticos e defuntos (nesse caso, óbvio, involuntariamente).
Vem de longe essa peça do vestuário masculino. Descobri que surgiu na França no final do século 17. Os gauleses adaptaram-na de um exército croata que andou por lá em 1668. Usava-se um cachecol para manter o pescoço arejado no verão e aquecido nos primeiros dias de inverno. Quando o frio apertava, era trocada por um modelo de lã. Foi em Paris, inclusive, que recebeu o nome de cravate, ou “croata”, em francês.
Acontece que gravata é feito gato: não gosta de água. Trata-se de uma peça por natureza imunda, repleta de microrganismos ressequidos, tanto de origem do usuário quanto de seus interlocutores, evidenciando, aliás, que a expressão “babar na gravata” não surgiu do nada. Tal como certas roupas delicadas, só é lavada à mão – nunca na máquina –, estendida na sombra e guardada com uma série de cuidados. Em tese, portanto, calcinhas, cuecas e meias são bem mais limpas e cheirosas.
Mandei a imagem de meu achado arqueológico para uma amiga, pedindo sua opinião sobre o que fazer. Adiantei que meu primeiro impulso foi jogá-lo numa fogueira. Mas isso não condiz com a secura que começa a castigar a vegetação do Cerrado nesta época do ano, nem pretendo formar pastagens para rebanho bovino ou plantar soja no meu jardim, agravando o caos ambiental decorrente de queimadas.
Adiantei também que, nos tempos em que havia casamentos (talvez ainda haja, não estou bem certo disso), em especial os mais humildes, era comum recortar a gravata do noivo em minúsculos retalhos, a serem "vendidos" para os convidados, como forma de angariar uma ajuda para o novo casal. Pensei em algo nessa linha, dando um final prático e rentável para meu “serpentário”. Precisaria apenas convencer minha mulher a abrir mão da exclusividade quanto ao maridão, mas fui prontamente demovido: “A vida reprova quem erra mais de uma vez a mesma questão" – ela resumiu. Nem cheguei a explorar melhor o pensamento, que achei profundo.
Mais tarde, a amiga com quem compartilhei a fotografia me veio com esta: "Dariam pra fazer uma colcha de fuxicos". Fuxico, no caso, é um tipo de artesanato feito com tecido, agulha, linha e paciência... Muita paciência. Além de ser uma das técnicas mais conhecidas pelos brasileiros, é método de relaxamento barato que resulta em almofadas, cobertores, colchas, costurando-se pequenas e coloridas trouxinhas de pano.
Fuxico também, como se sabe, é falar da vida alheia de forma maledicente. É bisbilhotice, cochicho, disse-me-disse, futrica, mexerico, zunzum, essas coisas de moleque de recados. E, não tenho dúvida, se minhas gravatas tivessem ouvidos, juro que teriam ficado moucas de tantas intrigas que escutaram em mais de 40 anos lidando com certas figuras ordinárias e venenosas.
Optei, então, por um funeral (apenas das gravatas, sem o pescoço, bem entendido!). Afinal, superar a perda de certas peças de estimação não é nada fácil, já que estão impregnadas de sentimentos, testemunhas silenciosas que foram de momentos importantes. Além de lidar com a dor, portanto, era necessário encontrar uma forma de curtir o luto, mesmo sem lágrimas, antes de enterrá-las.
No cair da noite, sozinhos no quintal, eu e elas (as gravatas), fizemos uma cerimônia íntima, reflexiva sobre o que experimentamos juntos. No final, antes da última pá de terra e sem qualquer espécie de nó na garganta, recitei com convicção uma quadrinha popular cuja autoria desconheço que aprendi nos tempos de menino: “Toda roupa veste um nu/Menos gravata e colete/Porque não cobrem o cacete/Nem a regada do...”
Não é de gravatas que devemos ter medo, mas de pensar nelas quando já não fazem sentido.
Muito bom. Ricardo Lot
ResponderExcluirNo tempo que era obrigado a me vestir a caráter no trabalho, tinha na gravata o acessório mais indesejável. Nunca aprendi dá o nó, a antipatia pelo "troço" era um bloqueio.
ResponderExcluirA quadra citada é de autoria do poeta Lourival Batista. Nasceu em Itapetim, morou em São José do Egito e encantou o mundo como o "Rei dos Trocadilhos". Formou uma trinca de grandes poetas com os irmãos Dimas e Otacilio.
ResponderExcluirA gravata tem suas utilidades: muitos não trocam de roupas durante a semana, apenas a gravata; identificam as preferências políticas, indicando as cores dos partidos políticos; outros esperam ser chamados de "doutor" por usarem uma. Kkkkk
ResponderExcluirTexto arretadoooooo!
ResponderExcluir👏👏👏👏👏
Dizem que gravata é igual à alface em tira-gosto. Só serve para enfeitar. Rsrs
Lendo esse texto, lembrei-me de uma música da trupe do Herber Viana:
🎵 Eu hoje joguei tanta coisa fora. Eu vi o meu passado passar por mim. Cartas e fotografias, gente que foi embora. A casa fica bem melhor assim 🎵.
A gravata rege a elegância e estilo; a liturgia do laço da gravata exige destreza mil. Sob ruminação ao espelho, ela, a gravata nos leva, num atimo à tempos imemoriais.
ResponderExcluirLindo e poético texto.
Essa bobagem nunca fez sentido, como a maioria das coisas corporativas. Há 10 anos me chamavam de doído, bicha, maconheiro por não usar e hoje, no Mundo Faria Lima, só despachante do DETRAN continua usando. Pergunto: o que fazer com o lixo psicológico dessa e de outras bobagens que acumulamos na labuta? Rir é um caminho. Dedé Dwight
ResponderExcluirA bem da verdade, Dedé, tanto você quanto eu, Abreu, Carlos Netto, Gueitiro, Lima Neto e outros cabeçudos tínhamos outro motivo para a aversão ao aperto das “serpentes”: o avantajado diâmetro do pescoço para suportar com dignidade a caixa craniana.
ExcluirTem a hora do desapegar. Na metáfora da caixa de gravatas, a busca de nossa essência. Do que realmente importa, para ser feliz. Fazer os ritos de passagem, deixando para trás coisas que já não fazem mais sentido serem guardadas, acumuladas e cultivadas, até como aquelas velhas gravatas em forma de mágoas encardidas. Adorei a poética visão de desprendimento, de um ser humano que vai ficando mais leve, dia a dia, como você. E, bora tomar uma no Libanus. Pra falar das velhas gravatas que ainda resistem ao fogo.
ResponderExcluirExcelente crônica.
ResponderExcluirTenho uma caixa cheia delas. Acho que vou fazer o mesmo. Enterrá-las.
Zezito
Muito bom. Revivi os meus tempos q também usei esse incômodo.
ResponderExcluirPois é, tem umas fantasias de gerente que depois da aposentadoria, não serve para nada.Faça uma doação numa igreja evangélica, pq tem gente que ainda usa.
ResponderExcluirEssas e tantas histórias são o que nos faz. Eu optaria pela colcha de fuxicos e, ao me deitar sobre elas, ficaria a lembrar em cada rodinha encurugida no meio, uma história. Para mim, a imagem da colcha de retalhos é muito simbólica. Como fuxiqueira que sou, no bom sentido, já costurei alguns milhares de fuxicos e tenho um cobertor a montar. Seria muito interessante ver uma colcha feita com a suavidade da seda e a guardar segredos e futricas venenosos.
ResponderExcluirQuem tiver suas caixas de cobrar pode me enviar, aceitarei as doações e guardarei segredo, caso algum físicos escape. Rs.
Deborath
Correção: [...] Quem tiver sua caixa de cobras[...]
ExcluirPois é, de vez em quando o armário nos dá um susto e nos leva a exercitar o desapego. Muito boa crônica.
ResponderExcluirHahaha se abrir uma a uma e emendar, faria pra fazer uma saia bem colorida.
ResponderExcluirDayse lanzac
Pensei com artesã
ResponderExcluirAssustador ! Todos nós temos uma caixa dessas ! Quem
ResponderExcluirNão as tem, ouso dizer, é um homem incompleto !
Gravatas sempre oprimiram, em todos os sentidos. Mesmo com elas tendendo a desaparecer, as poses e as tentativas de dominação continuam marcando presença no mundo corporativo. Seja no nome dos cargos, na linguagem empolada ou nos estrangeirismos desnecessários.
ResponderExcluirO texto faz lembrar as mudanças a que se submetem as coisas e as pessoas. É o efeito do tempo....
ResponderExcluirAcelio Jacob Roehrs
Guardo um serpentário desses no meu guarda-roupas, num gravateiro, e, se fossem reais, há teria sido picado e morto há muito tempo, e não haveria soro antiofídico que me salvasse. Você me deu uma luz sobre o que fazer com elas. Um abraço.
ResponderExcluirEsse "anônimo" acima é ÍRIO MEDEIROS DA NÓBREGA.
ResponderExcluirRindo horrores!
ResponderExcluirEste anônimo aí sou eu, didi
ExcluirBom dia meu amigo! Como falou o seu colega Marcelo! Texto arretado kkkkkkkk
ResponderExcluirTenho apenas uma guardada para eventual emergência (coisa que não aconteceu nos últimos 15 anos). Luiz Andreola
ResponderExcluirEsta crônica me remeteu à tia Creuza, que, feliz com o seu estilo de vida, nunca teve de lidar com esses conflitos.
ResponderExcluirSILAS Braga Jr.
Isso mesmo, Hayton. Elas, as gravatas, tiveram seu momento, um apogeu até. Mas, agora, estão meio deslocadas. Inserindo-se em raras ocasiões. Render glórias às peças também foi de bom tom. Elas nos viram em não sei quantos momentos, tenham sido importantes ou meramente prosaicos. Foram nossas confidentes íntimas. Sem reclamações. E ainda adicionaram um quê de estilo às nossas vidas. Sua ação nos sugere algo semelhante a fazer. Demos graças a elas, as gravatas.
ResponderExcluirTexto muito engraçado! Lembrei de quando entrei no Banco Central era obrigatório o uso da gravata, mas eu nunca aprendi dar aquele nó maluco e deixava sempre pronto ao retirar aquele peça pelo pescoço no fim do expediente. Felizmente meses depois o seu uso foi abolido em vários setores. Mas ela continua dando um ar de elegância a nós homens.
ResponderExcluirExcelente texto, Hayton.
ResponderExcluirEita que hoje sua crônica, amigo Hayton, mexeu com os brios e as lembranças de seus assíduos leitores...
ResponderExcluirEsse assessório "obrigatório", como foi dito, nos fez "doutores" e, também, em alguns momentos, "engolir sapos"... Mas usávamos...
Sem dúvida, nos fez viajar pelo passado.
Obrigado, caro amigo Hayton, por instigar nossas memórias...
Não tenho boas lembranças dessas serpentes que tanto atormentavam meu curto pescoço. Fiz uma promessa que morreria sem aprender a dar nó nessas víboras. E o texto reflete com maestria nossas agruras com essas forcas do mundo executivo. Vade retrô...
ResponderExcluirQuando tive que usar esse penduricalho, por exigência de um chefe de trabalho, sempre convivi com a sensação permanente de nó na garganta. Foi um alívio quando, finalmente, pude abandoná-lo, sem a menor saudade de sua utilização.
ResponderExcluirEm 2018, troquei minhas gravatas da "pudica" quadrinha popular por outras ainda mais indecentes, diante da quadrinha: as do estilo borboleta, acrescentando suspensórios. Recentemente, tenho abolido ambos, preguiçoso que estou de me demorar na indumentária. Quando abro o guarda-roupas e dou de cara com as gravatas, me acorre o mesmo pensamento sobre que fazer com elas. Ainda não consultei ninguém para me orientar quanto a um destino pomposo (ou não!). Não joguei búzios, nem arrisquei no tarô; tampouco me socorri no horóscopo. Sequer cogitei de soluções metafísicas! Quem sabe, agora, finalmente, tenha inspiração para uma lápide croata!
ResponderExcluirHá cerca de 6 anos o ex-Presidente Caffareli instituiu um novo dress code no BB, tornando facultativo o uso da famigerada gravata. Desde então, nunca mais pendurei esse pedaço de pano no pescoço. E olha que meu serpentário tinha coisa fina no meio, sem falar que eu dava um nó windsor como ninguém. Nada contra quem é adepto do estilo, mas, pra mim, podia fazer algum sentido lá no clima europeu, não aqui no calor tropical. Dia desses precisei tirar segunda via da minha carteira da OAB. Levei uma foto 3x4, de camisa social e paletó, mas sem gravata. Foi recusada pela atendente por falta de indumentária consentânea. Tentei argumentar que eu não seria um melhor ou pior advogado pela simples falta daquele aparato anacrônico em uma foto em que a peça mal apareceria, e que o mundo mudou e a OAB parou no tempo, e blá-blá-blá. Tudo em vão. Coloquei a gravata pra tirar nova foto? Que nada. Peguei uma velha, de uns 10 anos atrás mesmo e vida que segue.
ResponderExcluirHahahahaha!
ResponderExcluirSempre achei que gravatas não seriam muito confiáveis. Taí a prova!
Melhor erradicar o mal…
Mais uma jóia, melhor: obra de arte, desse poeta da crônica. Bem no seu estilo: leve, divertida e sobretudo elegante.
ResponderExcluirExcelente, Hayton, mais uma vez. Realizei essa sessão desapego na semana seguinte à aposentadoria. Equivaleu a uma sessão de terapia. Duas malas grandes cheias de blazers e vestidos sociais encaminhados para doação.
ResponderExcluirCaso minha vó, mamãe Rosinha, fosse viva ia pagar o Sedex e pedir para doar para ela: iria fazer uma linda colcha de fuxico. Depois de desinfetada, claro.
ResponderExcluirO belo texto me levou a minha posse no BB no longínquo Jan/1977, em Custódia-PE. O Sub-gerente só me deixou trabalhar naquele dia depois que fui no comércio comprar uma gravata pois minha camisa era de cor. Era norma da agência só trabalhar de camisa branca ou com gravata. Que lembranças!!!kkkk
ResponderExcluirO texto acima: Fernando Morato.
ResponderExcluirNão muito diferente dos caros leitores, também carrego aversão a gravata, desde os tempos do ginásio. Invejava os colegas que, com raríssima destreza, executavam os mais variados modelos de laços como um exímio marinheiro que prepara os seus belos e artísticos nós em alvos cordões de seda, que, bem distribuídos e emoldurados, mal servem para decorar algumas salas de jogos de clubes náuticos.
ResponderExcluirEssa bela narrativa do Hayton faz-me lembrar de um fato ocorrido no antigo Cesec Salvador, que me fora contado pelo próprio agente do infortúnio. Em sua primeira visita às dependências daquele Centro, no horário noturno, o recém empossado Chefe, vindo do sul do país, surpreendeu-se ao constatar que muitos funcionários não se trajavam adequadamente. Era uma variedade de cores e modelitos de causar inveja àquelas lojinhas de souvenirs do Pelourinho.
Como forma de disciplinar o uso do vestuário, decretou que a partir daquela data todos deveriam fazer uso obrigatório de gravata. Ao ser indagado por um dos comissionados sobre a “absurda” exigência, o referido gestor teria bradado e limitado a afirmar: “a partir de hoje, só trabalhará aqui quem estiver de gravata. E ponto final”, no que retrucou o empregado: “Então, basta apenas a gravata?” Fez-se silêncio sepulcral no recinto. Na noite seguinte a malfadada sentença, o comissionado questionador dirigiu-se a sua mesa de trabalho trajando uma larga gravata estampada, que atraia os olhares dos atônitos subordinados, não só pela extravagância do acessório pendurado ao pescoço, pois o que mais se notava e comentava era a nudez do seu vasto peito peludo, por conta da ausência proposital da peça de vestuário que devia cobrir-lhe todo o tronco. A todo instante ele justificava o inusitado figurino afirmando: “o que fora exigido era simplesmente o uso da gravata”.
kkkkkk... mas gostei da ideia da colcha de fuxico. A gaveta ainda continua cheia, todas enroladinhas. Uma hora dessas terei de aderir a um cerimonial.
ResponderExcluirCaríssimo Hayton,
ResponderExcluirTua crônica me fez lembrar de algumas coisas e pessoas:
De meu pai, que nunca usou uma gravata, mas tinha a exata noção do que isso significava. Dizia ele em sua simplicidade: “se você chegar em uma repartição e tiver um bocado de empregados e só um ou dois deles usarem gravatas não perca tempo com os outros. Os de gravata são os que vão resolver o teu problema.” Para ele, gravata era símbolo de poder.
De um antigo chefe, que impôs a ditadura da gravata. Ao chegar e visitar as agências da Regional que administrava constatou que, com honrosas exceções, alguns poucos gerentes usavam gravatas. Talvez os das cidades de maior porte ou algum outro menos avisado.
Após alguns dias da posse daquele administrador, chegava às agências um comunicado com um desenho de um engravatado com mais ou menos os seguintes dizeres: “Você não precisa ser gerente para usar gravata. Mas, se você é o gerente, tem que usá-la”. Bancava pose de democrata, mas quem usa “tem que” fazer alguma coisa, no fundo no fundo, exerce um poder ditatorial.
A medida causou um grande rebuliço. Um disse me disse danado entre a gerentada. Já imaginou o cara que era o gerente geral de uma minúscula cidade, onde ninguém, ninguém mesmo, usava o apetrecho e nunca tinha usado uma gravata na vida, não sabia sequer como dar o nó na dita cuja, de repente, assim, do nada, ter que usá-la diariamente.
Para alguns ainda existia o problema anatômico. Nem pescoço tinham para acomodar adequadamente o apetrecho. Não houve alternativas nem concessões. Todos tiveram que se adaptar à nova regra. E foi um festival de horrores.
Primeira reunião da gerentada com o Superintendente Regional e para a cidade sede da regional todos lá se foram. Se à época a Glorinha Kalil já fosse conhecida por aquela turma, talvez alguns crimes de lesa o bom senso e o bom vestir não tivessem sido cometidos.
Imagine a cena:
Um gerente com seus quase dois metros de altura usava uma gravata que ficava no meio da saliente barriga. Um outro, com estatura do nordestino típico, e seu metro e sessenta, a usava abaixo da cintura, causando uma evidente desproporção. Um terceiro, demonstrando desconforto e uma certa desobediência, a usava com o nó frouxo o que na prática queria dizer: “Olhe eu estou usando...”
Da época da Auditoria lembro-me de algumas situações que fazem parte do folclore daquela Instituição.
Primeiro dia de trabalho dois auditores chegam à agência devidamente engravatados. Encontram o gerente da agência em mangas de camisa, no máximo uma camisa de mangas compridas. Auditor é bicho afeito a cumprir regras. Uma delas, escrita no manual secreto da Auditoria Interna diz expressamente: “em terras de sapo, de cócoras com ele”.
II - continuação.
ResponderExcluir.
Após o intervalo do almoço retornam à agência sem aquele adereço que também os incomodava. O gerente, que de bobo também não tinha nada, tinha conseguido clandestinamente uma cópia daquele manual e rapidamente se adaptou a nova situação. Buscou uma gravata, que de tanto em desuso estava quase enferrujada, e a vestiu sem se incomodar em quebrar as regras de etiqueta do mundo da moda.
Não existem gravatas sem que existam nós.
Bem, uma pequena reflexão sobre o nó da gravata. Como o próprio nome sugere, nó é algo que amarra, que aperta, que restringe, que sufoca. No caso específico da gravata ela te amarra pelo pescoço.
Em inglês, a mesma palavra (tie) que se usa para gravata é a mesma que também se usa para nó. Uma está amarrada à outra.
Essa relação de poder e elegância foi algo que sempre procurei usar com algum comedimento. O poder que pensas que tens, na realidade é falso, é pseudo poder. Basta esperar um ano após a aposentadoria. Nem é preciso tanto. Os telefonemas escasseiam, as visitas diminuem, o aniversário é esquecido, etc. etc.
Quanto à elegância. Essa pode ir para o beleléu se a gravata for usada com as combinações inadequadas, causando efeito contrário ao que se pretendia. Nessa área, não tive muitos problemas. Sempre contei com a valiosa consultoria da dona Marta que sempre escolhia o combo completo: gravata, camisa, calça. Aí não tinha como errar.
Assim, tanto de um, - do pseudo poder e das gravatas - quanto de outro, eu fui me despedindo aos poucos. Um ano antes de me aposentar comecei a me desfazer das muitas gravatas que a contragosto usei. De uma vez só mandei para a igreja onde frequentei na juventude uma dúzia delas. As outras, eu fui doando aos poucos. Uma a uma.
Terminado o expediente, escolhia um colega de trabalho e perguntava: Causa algum constrangimento ou te incomoda vestir uma gravata que já foi usada? A resposta sempre era não. Desfazia o nó da gravata que estava usando e presenteava o colega.
Olhando para trás, vejo que essa foi uma forma inteligente de “ir passando o poder”, que eu sabidamente não tinha, para as novas gerações que hoje o detém. Ou pensam que tem. Aos poucos, me livrei de quase todos os nós que me apertavam.
Não sinto falta deles: nem das gravatas nem do pseudo poder.
Porque é oportuno:
ABAIXO A DITADURA QUE AOS POUCOS ESTÃO TENTANDO NOS IMPOR.
Comparando o momento que estamos vivendo, a ditadura das gravatas até que foi suave.
Excelente, Hayton! Entendi totalmente a solenidade do momento. Rsrs
ResponderExcluirExtrapolando como sempre a arte - sim, a arte - de brilhar em uma crônica, você aborda um tema que bem poderia ter provocado uma guerra. Afinal, a gravata sempre foi e nunca deixará de ser um dos mais contundentes instrumentos de tortura.
ResponderExcluirGosto tanto dela que em meu casamento me recusei radicalmente a usá-la - usei um blazer, camisa social, mas rigorosamente sem gravata.
Intimamente, ficava me deliciando olhando os "babacas" - era meu sentimento, confesso - engravatados...
Lembro-me quando cheguei em Brasília em 1994 e comprei a primeira gravata, com zíper. Fui repreendido por um colega dizendo que um homem que não sabe dar o nó na sua própria gravata não chegaria a lugar nenhum numa empresa…. E olha que hoje estamos sem usar gravata a tempos no trabalho e algumas que sobram nas gavetas do escritório são para nos salvar de alguma audiência que ainda exigem a endumentária. Mas que fica elegante, não podemos negar.
ResponderExcluirAbraço meu querido Hayton!!!
Amigo Hayton. Excelente texto. A gravata fez parte de nosso meio de trabalho. E quando combinado com a camisa e o terno indicava o AP do bancário. Mas o problema maior não estava na indumentária, mais sim no caráter do cidadão que a usava. As minhas doei sem dó e não sinto falta. Um abraço
ResponderExcluirRi muito com o trecho: "Quase fui picado por mais de 40 gravatas que usei no tempo em que me fantasiava de executivo. Tive a sensação de que algumas se mexiam, cada uma com seu chiado próprio, ameaçando-me a qualquer momento um bote no pescoço.". Lembrei-me dos filme do Harry Potter. Ri mais ainda no final da crônica: "“Toda roupa veste um nu/Menos gravata e colete/Porque não cobrem o cacete/Nem a regada do...” Excelente!
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