Não posso esconder uma pontinha de inveja de alguns amigos que tiveram a sorte de crescer ao lado de um avô que não lia jornais, livros ou revistas, mas era mestre na arte de contar estórias, daquelas de arregalar os olhos e arrancar risadas, suspiros e lágrimas, até os netinhos caírem no sono, embalados pelas aventuras narradas.
Os avôs que me couberam nesta vida, dois tipos duros e carrancudos, não esboçavam um sorriso nem por decreto ou se mangassem um do outro. Mas, sendo justo, nunca se viram.
Feliz de um amigo meu que volta e meia me fala de Toim Leitão, seu avô, um cearense do Sertão dos Crateús de ascendência holandesa, voz grave, sorriso largo, olhos quase fosforescentes, com seus imponentes 185 cm de altura, corajoso e forte feito Sansão, seu cavalo alazão.
Fotografia: Álbum de família |
Agricultor e vaqueiro, Toim parecia saído das páginas do livro “Alexandre e os outros heróis”, de Graciliano Ramos, de que mais tarde Chico Anysio tiraria uma casquinha para criar o memorável Pantaleão. Mas nunca mentiu para atrapalhar ninguém, só temperava um pouco a sua versão dos fatos. Afinal, só se deve exigir a verdade absoluta das pedras e dos tolos.
Casou-se com Onédia, que já sonhava com cirurgia plástica antes mesmo de o termo virar moda, nos tempos em que Pitanguy ainda nem mexia com bisturis. Vai saber o que Toim andou cochichando no ouvido dela. Só sei que provou da pitanga antes de madura, tendo que se casar pra moça não cair na boca do povo.
Coronel Bonfim, o sogrão, tinha terras até perder de vista. Não foi nenhum sacrifício pro bonitão vestir um paletó de linho, engraxar os sapatos, pentear o topete e fazer promessas diante da paróquia. Em troca, o casal abiscoitou 1/12 avos, parte que lhe coube do latifúndio.
Daí por diante, cuidou com carinho e fervor desse quinhão de terras, onde os netos (a quem a todos chamava de “meu fi”, pois não guardava os nomes), passavam os fins de semana e as férias ouvindo estórias, banhando-se no açude e aprendendo as coisas sertanejas, como beber leite cru num curral direto de divinas tetas, com direito à trilha sonora do mugido, ao cheiro de estrume e ao risco de brucelose.
Dizem que o pai de Toim e bisavô de meu amigo, Mané Leitão, encontrou seu fim numa de suas incursões pelas matas para caçar animais silvestres. O corpo só foi encontrado dias depois, em estado de volta à natureza. Tombou enquanto tocaiava um tatu que, assustado, vendo o velho morto, e imbuído de virtudes cristãs, só deixou a toca após o enterro.
Toim virou lenda no Crateús a partir de uma farra de domingo, quando contou a alguns amigos o que acontecera com Veludo, cão de caça que sabia interpretar desenhos. Sustentou ele que rabiscava numa folha de papel o que queria (inhambu, mocó, perdiz, preá etc.) e o cachorro buscava a encomenda. Como duvidaram, chamou o bicho, desenhou uma paca bem gorda e ordenou a busca imediata.
Ilustração: Umor |
Três horas mais tarde, nada de Veludo. E os amigos, bêbados, tropeçavam de rir, o que chateou demais Toim. Anoiteceu, amanheceu... Nada! Uma semana depois, o cão reapareceu na Fazenda Cajazeiras todo latanhado, faminto, arrastando uma paca mutilada, com três patas. O dono então reviu a “comanda” guardada no bolso e percebeu o erro que cometera: não havia desenhado uma das patas do animal.
Meses depois, Toim contou aos amigos que precisou levar uma boiada até o Piauí e teve que pernoitar ao relento. No dia seguinte, ainda escuro, tentou calçar uma das botas, mas não alcançava o fundo. Com os primeiros raios de sol, notou que, por engano, tinha enfiado a perna direita, até a virilha, na boca de uma jibóia. Quase engasga a coitada.
Toim contou ainda, noutra oportunidade, que um dia bateu uma vontade doida de comer carne de tatu. Já tinha tempo que não refogava um bicho desses na panela, com alho, cebola, sal, pimenta preta e tomates. Onédia e as crianças salivavam só de pensar na iguaria saindo do fogão.
Na boca da noite, ele montou Sansão, chamou Veludo e partiram pra mata, buscando algum buraco com terra fresca, típico de morada recente, onde o animal espera escurecer pra cair na vida. Não demorou muito, ouviu latidos e, de cabeça baixa pra não arranhar os olhos na caatinga, encontrou o cão rosnando, gengivas de fora, com o rabo de um tatu entre os dentes.
Toim chegou a jurar que desmontou e amarrou os arreios na coleira do cachorro pra garantir a captura. Mas, naquela escuridão medonha, se distraiu com uma picada de saúva e, num piscar de olhos, viu o cavalo sendo puxado buraco adentro, ficando de fora apenas a cabeça e o pescoço.
Veludo sumiu no oco do mundo e Sansão, depois do susto, nunca mais foi o mesmo. Nem os netos de Toim Leitão, que tiveram a sorte de crescer ouvindo essas estórias fabulosas.
Causos e estórias. De que é feita a vida senão da arte de viver o real no contexto do fantástico? Os netos e as netas agradecem.
ResponderExcluirJoão Gimenez
ExcluirLembrança dos avós, mais uma crônica bacana, voltando aos melhores momentos da infância, casa dos avós! 👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluirTerta que lute para ratificar as histórias, a troca do pescador pelo caçador não reduz o tamanho do "ato criativo". Viva o Sertão.
ResponderExcluirBom demais acordar com suas crônicas !!
ResponderExcluirAmigo, a sua gentileza em retratar meu avô enche meu coração de alegria. Meu avô foi um herói para as pessoas que adoravam suas histórias e mais ainda para seus netos, nutridos de fantasia e espetáculo. Ouvi-lo era saber que tudo era possível e que existem mundos possíveis pela palavra bem dita e bem escrita, como hoje faz você com suas crônicas. Muito obrigado. Dedé Dwight
ResponderExcluirJá imaginou se Toim Leitão desconfiasse que teria um neto tão criativo e inteligente quanto você? Não teria vizinho de porteira que aguentasse os causos que ele contaria…
ExcluirToda quarta feira tenho o prazer de acordar com histórias fantásticas de Hayton, ilustradas por Uilson Morais. Parabéns. Gilton Della Cella.
ExcluirAcho que ele desconfiava. Vivia me dizendo pra tomar cuidado pra não ser fobista
ExcluirMuito bom
ResponderExcluirToim não era fácil
ResponderExcluirMagníficas sao as pessoas que deixam lembranças. Privilegiadas as pessoas que recebem esse amor de seus pais e avós!!!
ResponderExcluirViva Toim Leitão, o avô do iluminado Dedé!!!
Ricardo Lot
Sem dúvida ,Toim ganhava do Barão de Munchausen, também famoso pelos causos fantásticos, mas não mentirosos. Está crônica, de agradabilíssima leitura, me fez lembrar de um cunhado, também caçador de tatus, que após caçar os bichos , tratá-lo e colocar num freezer, teve o equipamento furado pelos bichos, segundo ele, que escaparam !
ResponderExcluirPois é, Izaias, tatu não gosta de frio abaixo de zero grau, sem gorro e casaco. Daí a escapar do freezer, vivo ou morto, é um pulinho de nada…
ExcluirBom humor e criatividade são fundamentais! Abs. Gradim.
ResponderExcluirEu acho maravilhoso poder ler ou ouvir história de nossos antepassados. Passava aa minhas férias sempre no interior, área rural, e os casos contados na crônica me fizeram voltar a infância. Os casos sempre bem contados por alguém e confirmados por outros verdadeiros ou não enriqueçam as minhas férias e preencheram a minha memória. Parabéns sempre!
ResponderExcluirSaber contar estórias é uma arte. E virar estória por saber contar estória é uma honraria pra poucos.
ResponderExcluirViva Toim Leitão!
Valeu Hayton pela crônica das fabulosas estórias de Toim Leitão.
ResponderExcluirMuito bom ler as belas Crônicas das quartas.
O Cronista Affonso Romano Santanna fala que "Somos estórias em movimento. Parábolas vivas. E quem conta estórias vive várias vidas numa só."
Essas histórias fantásticas que viram lendas são ótimas e só uma crônica como essa para descrever o contador de “causos’ com perfeição. Valeu!!! Nelza Martins
ResponderExcluirEitaa como é bom passear por essas crônicas!👏😌
ResponderExcluirOs Avós eram engraçados e sábios, mesmo com pouca cultura. Tive o privilégio de conviver com os dois, materno e paterno, até os 14 anos.
ResponderExcluirHoje somos avós diferentes, pois os netos já nascem sabendo mais do que nós. Mas é gratificante.
Abraço
Valdery
Tem avós que criam memórias, eternizam momentos. Com sorrisos e braços, seu amor é gigante que nem dá pra medir, somente sentir.
ResponderExcluirNo meu Paraná, isso se chamava queimar campo. E olha que lá tínhamos concorrentes o Toim... excelente crônica.
ResponderExcluirSem dúvida, Toim Leitão foi um herói, assim como muitos outros que, na opinião dos netos, tornam-se imortais... E, ao lermos belos contos e crônicas que sugerem cenários em movimento, fazem com que a expectativa, pelo que teremos na próxima quarta-feira, um exercício criativo em nossas mentes...
ResponderExcluirJá dizia o glorioso Ariano Suassuna: “Eu minto. Nunca pra prejudicar os outros. Eu gosto do mentiroso que mente por amor à arte. O mentiroso lírico.”
ResponderExcluirParece ser o caso do nosso belíssimo personagem da crônica de hoje. Que seria de nossa vida sem as doces mentiras, sem as hipérboles?
Que figura interessante, essencial!
ResponderExcluirUm personagem com alma de Suassuna.
👏🏾👏🏾👏🏾
Somos afortunados por conhecer tantas estórias, mesmo não tendo os avós para conta-las. O Hayton as transmite de forma magnífica e as aperfeiçoa, adoça, ilustra, melhora. Enfim, ganhamos dos netos.
ResponderExcluirCausos da infância, até os assustadores, enriqueciam a nossa construção. Bel
ResponderExcluir🙌🙌🙌🙌
ResponderExcluirEstimado Hayton ao mencionar neto, vem à memória a Bíblia nos livros de salmos e provérbios:
Neto - presente, dádiva, benção, coroa 👑 dos avós.
Filho - herança de Deus.
Filho - primeiro fruto.
Neto - fruto de fruto e o perpetuar da espécie.
O Rei Davi diz : bem aventurado (Feliz) aquele que pode perpetuar a espécie humana.
”Coroa dos velhos são os filhos dos filhos; e a glória dos filhos são os pais.“
Provérbios 17:6 ARA
https://bible.com/bible/1608/pro.17.6.ARA
Que pintura, Valeu o presente, Mestre Hayton. Realmente, histórias de avô é um momento especial de nossas vidas. Se são verdadeiras, outra coisa, fizeram muito bem a alma.
ResponderExcluirVoltei ao passado ao ler essa bela crônica...lembrei dos meus avôs. Que saudade gostosa das estórias bem contadas por eles. Sempre íamos para o sítio deles nas férias e nossas noites eram fantásticas, cheias de causos e belas estórias. Obrigada pelo presente, viajei no tempo.
ResponderExcluirNobre Hayton, leio tuas crônicas, histórias e estórias das quartas mais de uma vez e sempre é um deleite cada leitura. Valeu!
ResponderExcluirMuito legal!
ResponderExcluirÉ sempre muito gostoso ouvir "causos". Nos leva a viajar para terras mágicas, onde a vida é suave, sem atribulações e preocupações. Venturosa a pessoa que teve um privilégio dessa monta. Certamente fica registrado para sempre, na alma. Só de ler sua suave crônica, meu Amigo, já me leva a uma "viagem" por essas terras encantadas. Muito bom;
ResponderExcluirAbração!!!
Mário Nelson.
Ahh... reli sua crônica que fala do Menino Maluquinho. Muito gostosa. Ziraldo é um marco. Sou fã do Saci Pererê.
Muito bom ter um avô contador de histórias! De verdade ou de Trancoso,
ResponderExcluirHabilidosamente Hayton relembra várias expressões idiomáticas da rica cultura brasileira, especialmente a nordestina. Ouvi muito meu pai, típico matuto do agreste alagoano, ordenar que na “boca da noite” todos os filhos deveriam estar em casa e prontos para o jantar.
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