Trocando em miúdos
Celebrou-se em Portugal, na semana passada, o aniversário de 49 anos da Revolução dos Cravos, revolta pacífica que pôs fim ao Salazarismo — governo de inspiração fascista desde os anos 1930, uma das mais duradouras ditaduras da Europa.
Coincidiu com um momento marcante na vida de Chico Buarque, autor da mais célebre canção brasileira sobre aquele evento histórico, “Tanto Mar. Quatro anos depois do seu anúncio como vencedor do Prêmio Camões, principal honraria literária da língua portuguesa, Chico pôde finalmente recebê-lo no Palácio Nacional de Queluz, em Sintra, a meia hora de Lisboa.
A recusa do ex-presidente Bolsonaro em assinar o diploma de premiação explica a demora. Quem acabou assinando foi o atual presidente Lula, que participou da cerimônia junto do presidente português, Marcelo de Sousa, e do primeiro-ministro, Antonio Costa.
O Prêmio Camões foi criado há 35 anos pelos governos de Brasil e Portugal e é escolhido por um júri composto por dois brasileiros, dois portugueses e dois representantes dos demais países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Já premiou nomes como João Cabral de Mello Neto, Jorge Amado, José Saramago, Lygia Fagundes Telles, Mia Couto, Rachel de Queiroz, Rubem Fonseca, dentre outros.
Voltei no tempo, aos meus 10 anos, mais precisamente a 1968. Apareceu na radiola lá de casa um compacto simples — pequeno disco de vinil com apenas duas músicas: de um lado, “Bom tempo”; de outro, “Ela desatinou” — de um cantor e compositor desconhecido para mim.
Meu pai falava de canções mais interessantes do que aquelas dos cabeludos da Jovem Guarda. Tive dúvidas. Eu já começara a escutar no rádio “Eu sou terrível”, “Por isso corro demais”, “De que vale tudo isso”. Mas ouvi um bom conselho e nunca mais deixei de prestar atenção no que fazia Chico.
Cresci admirando as múltiplas facetas do maior cronista-poeta musical de seu tempo.Tanto mar depois, embora Chico seja reconhecido em várias partes do mundo pelo conjunto de sua obra como cantor, compositor e escritor, com centenas de canções, cinco livros e tantas outras criações artísticas, alguns brasileiros o apedrejam nas ruas, nos bares e nas redes sociais, com a mesma intolerância e ingratidão com que se tratou Geni.
Reprodução: Redes Sociais |
Lembra as pedras lançadas sobre Pelé, nos anos 1970, porque não usava de seu prestígio para denunciar torturas que aconteciam numa certa nação do faz-de-conta. Foi apedrejado inclusive porque teria dito que seus conterrâneos não estavam preparados para votar. Ironicamente, desde lá, quem é derrotado nas eleições dá razão a Pelé.
Nos anos 1980, João Saldanha, um dos mais respeitados jornalistas esportivos, ao opinar sobre a decisão do então treinador da seleção, Telê Santana, de excluir do grupo o atacante Renato Gaúcho — o jogador caíra na esbórnia às vésperas da viagem para a Copa do Mundo —, foi taxativo: “Eu não preciso dele pra casar-se com a minha filha, mas pra jogar futebol. E esse cara joga pra burro!”.
Chico é pelé (cai bem o novo verbete incorporado ao dicionário Michaelis!) no que faz. Mas, como Saldanha, não preciso dele para ser meu genro, pai de meus netos. Nem tenho interesse em suas preferências futebolísticas, políticas, religiosas ou sexuais.
Meus netos, sim, precisam ouvir antigas estórias de um país do faz-de-conta de casas simples, com cadeiras na calçada, em que na fachada estava escrito que era um lar. Ali morava uma criança que, mesmo sem ter fé, pedia a Deus por sua gente, gente tão humilde que dava vontade de chorar.
Com o tempo, essa criança foi vista chegando suada e veloz do batente, trazendo um presente para encabular seu pai. Eram tantas correntes de ouro que faltava pescoço para enfiar. Trouxera até uma bolsa com tudo dentro: chave, caderneta, terço, patuá, lenço e uma penca de documentos pra finalmente o pai se identificar.
Criança que cresceu desiludida com o futuro da nação do faz-de-conta. Um dia, bebeu e soluçou como se fosse um náufrago, dançou e gargalhou como se ouvisse música e acabou no céu como se fosse um pássaro. Restou a seu pai uma saudade que dói mais que o revés de um parto ou arrumar o quarto de um filho que morreu.
Chico, assim como você e eu, tem o direito de fazer o que bem quiser da própria vida, inclusive de vestir a camisa que lhe pareça mais bonita e confortável. Ainda que as tribos que racham a nação do faz-de-conta só falem a mesma língua num ponto: ou se está com elas ou contra elas. Não têm adversários, têm inimigos.
Em tempos de indigência cultural, com tantas obras descartáveis despejadas sobre nós, essas tribos insistem nesse espetáculo dantesco de “olho por olho, dente por dente” que transforma a nação do faz-de-conta num sanatório geral de banguelas e caolhos.
Trocando em miúdos, estou vendo a hora de Chico pedir para deixarem em paz o seu coração — hoje, um pote até aqui de mágoa! — apagar a luz, bater o portão sem fazer alarde e sumir no mundo sem nos avisar. E aquela esperança de tudo se ajeitar... Pode esquecer.
Defendo a tese de que a arte não pode sem deve ser avaliada pelos parâmetros da ideologia, ela é universal. Chico Buarque é a tradução perfeita dessa universalidade.
ResponderExcluir"A recusa do ex-presidente Bolsonaro em assinar o diploma de premiação explica a demora. Quem acabou assinando foi o atual presidente Lula,..."
ResponderExcluirA recusa do ex-presidente foi a segunda grande homenagem que Chico recebeu;. esta crônica, a terceira!
Perfeita análise!
ExcluirComo já dito, a recusa do ex-presidente Bolsonaro foi um grande prêmio para o nosso querido Chico!
ExcluirBelaniza Maciel.
Chico é gênio da raça.
ResponderExcluirAmou daquela vez como se fosse a última
ResponderExcluirBeijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido... Construção de um país que detonaram.
Chico, avesso a holofotes, nega-se à imortalidade da ABL. Sua obra não perde o valor. De tão numerosa e de qualidade ímpar, só deveria almejar a glória do jaquetão. Mas o mestre segue encantando. Difícil encontrar quem o minimize. É impossível. O seu legado já é uma grande bênção para o "país do futuro". Quem dera houvesse uma meia dúzia de Chicos por aqui. Talvez o povo saísse mais influenciado a partir das letras, do pensamento estético e contestador, do belo em si. Que não se mexa num baluarte. Ao contrário, deixe-o livre para simplesmente compor peças as mais lindas e significativas possíveis. Nós todos agradecemos. As letras o agradecem.
ResponderExcluirRoberto Rodrigues
Há coisas inexplicáveis, como diria Fernando Pessoa. Não alcançar a grandeza da obra e da figura de Chico Buarque é até compreensível, em certos casos; mas não admitir sua dimensão extraordinária é de dar pena. É algo de uma pequenez assustadora.
ResponderExcluirChico Buarque é simplesmente magnífico, incomparável, indescritível.
Que coisa boa o grande Hayton render mais uma entre tantas homenagens. Todas as palmas serão poucas pra aplaudir Chico Buarque.
Como disse Caetano, “que o Chico Buarque de Holanda nos resgate”. Dedé
ResponderExcluirLindo texto Hayton! Perfeito para ilustrar a dimensão de Chico Buarque (e de sua família) para a cultura do Brasil! Bravo!!!!
ResponderExcluirBeto Barretto
Essa crônica é uma homenagem à genialidade de Chico e nos convida gentilmente a retomar nossa lucidez deixando paixões ideológicas para absorver a riqueza que só o olhar de Chico nos dá. Perfeito!
ResponderExcluirNum tempo, página infeliz da nossa história, passagem desbotada na memória das nossas novas gerações vai passar e a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que é subtraída em tenebrosas transações, vai passar.
ResponderExcluirMerecida homenagem.
Sensacional. Parabéns
ResponderExcluirAplausos de pé! Bravo!
ResponderExcluirÓtima crônica, Hayton. Chico Buarque sempre nos trouxe com muita sensibilidade a crueza de nossa pátria nem sempre distraída.
ResponderExcluirAbração.
Gradim.
Canções pra posteridade. Falas nem tanto
ResponderExcluirVoto com o relator Gibba.
Excluir‘Falas nem tanto’? O melhor das músicas do Chico, são as letras geniais! Não entendi o comentário! Ou entendi? Se é o que penso, sorry periferia mas LAMENTÁVEL!
ExcluirChico é gigante.
ResponderExcluirExcelente crônica.
Concordo que música deveria ser apartidária. Muitas são as obras clássicas que traduzem o sentimento de quem produziu o poema, sem que isso seja "tomar partido". Mas, nessa república do "faz de conta" ou do "pão e circo", tudo se associa a ideologia política, infelizmente...
ResponderExcluirLinda e merecida homenagem ao extraordinário Chico!
ResponderExcluirLuiz Andreola
Genial, meu caro Hayton. Parabéns pelo texto.
ResponderExcluirPode esquecer. Mesmo. Ele voltou! O Boêmio voltou novamente, e bem Curtido. Com açúcar , com afeto e muita disposição para continuar na Luta.
ResponderExcluirAdoro a forma como Hayton entrelaça trechos de música em suas crônicas. E esta ficou um primor de homenagem a quem merece muito: Chico.
ResponderExcluirParabéns por mais um texto. Grande abraço.
ResponderExcluirQue maravilha de homenagem. Só não reconhece o valor do Chico para nossa história quem não tem olhos para ver, ou não quer ver. Sigamos amando o nosso Chico.
ResponderExcluirCBH tem talento de sobra, inesgotável. O cronista segue a mesma trilha. Mais uma da série "Porreta".
ResponderExcluirHayton tem inúmeras e evolutivas qualidades como escritor. Uma das que mais gosto é essa interseção entre prosa e verso, realidade crua e poesia!
ResponderExcluirConcordo com o Silas: se Chico já agradeceu as duas homenagens anteriores (o prêmio Camões e a ausência da assinatura de certa pessoa no diploma), alguém precisa avisar ele que tem essa terceira e monumental homenagem: a crônica haytoniana!!!
Essa crônica tem que chegar ao homenageado! Didi Cordeiro
ResponderExcluirParabéns, Hayton.
ResponderExcluirCrônica engenhosa, inteligente e com a elegância que já se tornou uma identidade em sua escrita. O Chico é muito merecedor dessa homenagem. Afinal, ele, como poucos, soube fazer da sua inspiração um poderoso veículo de denúncia das nossas mazelas sociais, econômicas e culturais, além de uma voz sempre ativa e indignada frente às ameaças à liberdade. E de sobra com poesia e beleza sonora de inquestionável refinamento.
Caberia ao final de sua crônica, a exemplo de toda sentença bem elaborada, um “publique-se, registre-se e cumpra-se” para que chegue ao conhecimento do interessado (homenageado) e do público em geral.
Prezado Hayton
ResponderExcluirGosto de ver que você colocou sua sensibilidade literária a reverenciar o genial Chico Buarque! E, com criatividade e precisão, garimpou pertinentes versos da obra do próprio artista para homenageá-lo.
Penso que o Chico é daqueles brasileiros que nunca perdem a esperança de tudo se ajeitar. E isso tem a ver com a camisa que ele escolheu vestir e que, achou eu, não pode ser distanciada de seu posicionamento social e político expresso em suas antológicas canções.
Abraço
Artur Roman
Perfeito, irretocável!
ResponderExcluirUm lampejo a colocar luz sobre um renitente obscurantismo.
Parabéns!
Crônica maravilhosa! Coloca as coisas no seu lugar! Chico é um gênio!
ResponderExcluirParabéns pela magnífica crônica que retrata na plenitude, esse brasileiro ímpar e gigante, que é Chico Buarque de Holanda.
ResponderExcluirMaravilha, ter o prazer de degustar uma crônica desta qualidade e conteúdo, ressaltando uma personalidade diferenciada, que Nos presenteia com aprendizado e cultura. Parabéns
ResponderExcluirPerfeito!! Fui representada em cada palavra!! Viva o Chico Paratodos!!
ResponderExcluirEspetacular! Uma verdadeira obra de arte, escrita sob a forma de narrativa, crônica e poesia, em homenagem ao maior cantor, compositor, dramaturgo e escritor brasileiro, Francisco Buarque de Hollanda. Parabéns!
ResponderExcluirChico é um pelé.
ResponderExcluirAmigo, eu estava até agora sem ter convicção do que postar aqui, você já está "abusando" de "nosotros", nos faz sentir baqueados culturalmente.
ResponderExcluirSem conclusão do que realmente era mais importante e impactante em meu sentimento, concluí que era a emoção muito forte que me bloqueava, então teria que esperar a recuperação dos outros sentidos pra me pronunciar.
O Sérgio Riede faz uma afirmação definitiva aí em seu comentário, você realmente brinca com as palavras, consegue misturar, de forma brilhante e única, poesia e prosa.
Silas também foi "cirúrgico', realmente a homenagem a Chico que você faz em sua crônica é, com certeza, uma homenagem singular. Talvez eu discorde um pouco dele no que se refere a ser a "terceira". Acho que abstraindo o prêmio "Camões", nenhuma outra homenagem sequer chega perto da sua. Fico a imaginar a felicidade dele, se dela tomar conhecimento, talvez componha outra pérola, aí pra lhe agradecer e ressaltar seu talento.
Enfim, fico por aqui, já extrapolei o direito de comentar.
Só de uma coisa tenho certeza - além de vontade de assistir -, você ainda será laureado, nos maiores meios intelectuais de Pindorama, como um de seus mais consagrados contistas.
Como diz um grande jornalista amigo meu - " a conferir"...
O ex-presidente Bolsonaro foi coerente em em não assinar o diploma de premiação do cantor comunista. Por que ele se submeteria a isso, já que Chico, assim como seu ídolo Lula, são apoiadores de ditaduras.
ResponderExcluirFantástico!
ResponderExcluirMuito bom, Hayton!
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