Toda paixão tem o seu calvário
O futebol tem seus momentos de profundo desencanto, como quando seu time está sofrendo uma derrota por dois a zero ainda no primeiro tempo e você está ali, acomodado no sofá, diante da TV, à espera do improvável milagre da virada. Faz sentido pessoas de todas as idades expressarem uma paixão tão arrebatadora por uma bola que simplesmente cruza a linha de gol? Que impacto isso teria em nossas vidas?
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Não posso falar pelos outros, mas, pessoalmente, percebi há décadas que, quando o Vasco entra em campo, o apito soa e a bola rola, as diferenças entre minha mulher e eu se tornam mais pronunciadas do que qualquer debate filosófico sobre a origem planetária do feminino e do masculino.
As mulheres de minha geração possuem um poder de concentração bem mais amplo que os homens e isso se aprofunda com o passar dos anos. Se estão com os filhos, o pensamento voa para o marido. Se estão com o parceiro, preocupam-se com os netos. E sempre com uma autocobrança latejando, como se nascessem com uma espécie de chip da culpa no coração.
Penso que a arte do foco múltiplo deriva do fato de a imaginação feminina ser mais rica e fértil do que a masculina. Elas são mais inquietas e vivazes. A maioria não consegue ficar horas vendo alguns marmanjos ofegantes correndo atrás de uma bola, um deles soprando um apito estridente, enquanto outros, dentro e fora do campo, especulam sobre o que poderia ter sido e não foi, como no velho filme "O Feitiço do Tempo".
Como alguém permanece diante da telinha após o fechamento da rodada, domingo à noite, revendo lances, ouvindo o choro dos perdedores ou aturando a empáfia dos vencedores? Sem falar dos “sábios”, geralmente jogadores aposentados que ficam cacarejando obviedades ou contando fatos da própria carreira que ninguém (pelo menos entre as mulheres!) quer saber.
Seja como for, minha mulher sabe que, a partir deste mês, nossa coexistência sob o mesmo teto se dará de novo em dimensões paralelas. Ela terá que se acostumar com a "criança" aqui absorta no sofá, com um punhado de bolachas ou pipocas na mão e os olhos grudados na telinha, imersa no apaixonante universo do futebol.
E se o plantão do telejornal interromper a programação para noticiar que um tsunami está se formando no Atlântico Sul, perto de onde nos escondemos, ou que a OTAN acaba de revidar um ataque chinês, norte-coreano ou russo, definindo a terceira guerra mundial como pauta jornalística da vez, não desviarei a minha atenção um segundo, sobretudo se o placar estiver zero a zero, nos quinze minutos finais, e o adversário com um jogador a menos em campo.
Ela sabe também que, se o telefone tocar e for alguma emergência em família, direi sem pestanejar: “Pede pra ligar mais tarde”. Não passará por minha cabeça que um parente possa ter tido um mal súbito qualquer – não antes de a partida terminar. Tudo tem o seu tempo!
Se a chamada for de origem desconhecida, me farei de surdo. Posso sugerir: “Veja se não dá pra gente conversar depois do jogo?” Então, ela convencerá o interessado a ligar mais tarde, dirá que é inútil insistir, pois se ela mesma se aproximar da TV, arrisca-se a ouvir algo como: ‘Minha filha, pelo amor de Deus! Logo agora que Payet vai bater o escanteio?!”
Fazer o quê? Todo vascaíno acima dos 60, órfão de Roberto Dinamite, Edmundo, Romário e Juninho Pernambucano, é assim.
Mas, reconheço, o interesse das mulheres por futebol tem evoluído bastante, tanto como fãs quanto como participantes ativas. Prova disso, a rainha Marta, seis vezes escolhida a maior futebolista do mundo, e Leila Pereira, do Palmeiras, melhor dirigente de clube brasileiro.
De forma que vou pedir a uma de nossas netas – vascaína “praticante”, sem qualquer influência minha, a esta altura mais entendida no assunto do que eu – para explicar à avó o que significa “cruzar no primeiro pau”, “cabecear no contrapé do goleiro” ou “acertar chute de três dedos na gaveta”. Sem contar o "avançar as linhas" (parece coisa de costureiro afobado!).
Afinal, toda paixão tem o seu calvário, mas nada existe de mais grandioso nessa vida, onde tudo só tem começo e meio. O fim é pra quem não enxerga recomeços e deixa a chama apagar.
👏👏👏
ResponderExcluirShow de bola, literalmente!!
Não comungo mais de tanta “fixação” pelo evento, mas não me libertei da “aflição”.
Fazer o que…
Bola que segue!!
🤗🤗🤗
Na abertura da crônica, acabei sendo premonitório em relação ao vexame gremista na noite de ontem. Perdão, Bicca!
ExcluirOs craques Nelson Rodrigues, Arnando Nogueira e Sérgio Cabral estão felizes. Alguém segue falando de futebol em textos classificados colo "gols de letra". Futebol é assim une e separa como todas paixões.
ResponderExcluirDe fato. Mulher acha que maltrata homem porque não sabe o que nosso time faz com a gente. É uma paixão arrebatadora e seu parágrafo final é definitivo em explicar isso e todo torcedor empenha sua alma na possibilidade do recomeço. São muitos times e só um ganha, então o calvário é intrinsecamente matemático e a paixão absurda. Dedé Dwight
ResponderExcluirMais um para a coleção, "gol de placa"!
ResponderExcluirVocê conseguiu descrever a grande paixão da maioria dos brasileiros. Eu particularmente estou com saudades dos cavalinhos, principalmente o do Vasco.👏👏👏👍
É, Antes as mulheres ficavam alheias ao futebol, a ponto de minha tia dizer “ficam 11 homens brigando com outros 11 por uma bola, dá logo uma pra cada um que acaba a briga” quando começava discussão em campo e ela via meu primo opinando ali no sofá. Hoje muitas torcem com veemência e até jogam. Minha bisneta é uma dessas e seu time da escola foi campeão e ela ficou numa felicidade de dar gosto a bisa.
ResponderExcluirMas, como você descreveu bem, quando a bola começa a rolar no campo os casais se põem à prova. E você, esperto, passou longe do Ba-Vi pra evitar confusão por aqui.👏👏👏 Nelza Martins
Descreveu muito bem o que a paixão dos aficcionados, principalmente os vascaínos tão sofredores. Paixão é isso aí; não se explica, acontece e tira o cidadão dos eixos. Na antiguidade paixão era considerada uma manifestação de loucura. Mas nem tanto, torcer para o Vasco pode ser sofrido mas a sanidade está preservado . Ótima crônica !
ResponderExcluirMais um golaço construído com letras bem treinadas, que souberam chegar ao objetivo, tática e tecnicamente.
ResponderExcluirEmbora hoje já não acompanhe com tanta emoção meu tricolor das laranjeiras como outrora, o menino dentro de mim ainda se entusiasma quando conquistamos vitórias inesquecíveis. Felizmente minha companheira, embora demonstrando pouca atenção ao esporte, vibra junto comigo nas vitórias, sendo totalmente indiferente nas derrotas.
Como diria o saudoso Mário Vianna, a crônica foi "Gooooooool legal".
Gol de letra! Na torcida para que nosso Vascão, pelo menos este ano, nos faça sofrer menos.
ResponderExcluirVerdadeira saga. Amantes do futebol são assim mesmo. Veneram não torcem. Observam as partidas como que em transe fora do corpo. Para, de repente, explodir de alegria no momento mágico, ápice, sobrenatural do gol. Grito sai da garganta. Veias do pescoço se entumecem chegando quase a explodir. Coração vai a mil. O suor escorre em bicas. Passado o êxtase, com o gozo estampado num sorriso largo no rosto, é hora de voltar a atenção aos detalhes. Rever o lance e saborear, agora mais tranquilamente, daquela adrenalina boa que invade todo o corpo. É, Hayton, tudo isso se faz digno de uma bela e leve descrição, como a que você nos propôs. Maravilha.
ResponderExcluirTexto delicioso: esse meu amigo cronista está jogando por música, como dizem alguns narradores e comentaristas esportivos.
ResponderExcluirNa torcida pelo meu Furacão, estarei, também, cruzando os dedos pelo sucesso do seu Gigante da Colina.
Luiz Andreola
Que o Bicca não nos ouça, mas no domingo o Vasco pega uma molezinha na estreia do Brasileirão...
ResponderExcluirLuiz Andreola
O futebol continua sendo uma paixão inexplicável, onde o torcedor quer sempre crucificar o técnico ou quem falha pela derrota do time. Por desilusão, jurei e tentei não mais torcer pelo Bahia, mas parece que isso não dura mais que dois dias. No jogo seguinte, estou eu torcendo como se fosse um namorado que deu o fora na menina, mas que não deixa de pensar na danada. Gilton Della Cella.
ResponderExcluirBela crônica, Hayton. Admiro essa paixão pelo futebol envolvendo crianças, jovens, adultos, homens, mulheres, ricos e pobres; enfim, são muitas emoções envolvidos.
ResponderExcluirEu, particularmente, abandonei o oficio de torcedor desde o famoso jogo em 1998 entre Brasil e França, quando perdeu a competição por 3x0. Pense na decepção.
Nelson Rodrigues, já dizia:
Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos.
Bora simbora, e viva a paixão nacional.
Muito boa crônica
ResponderExcluirFutebol é paixão. Eu como vascaino convivi com um irmão também vascaino, mas daqueles extremamente fanático. Quando o Vasco perdia, os amigos já conhecendo a figura, começavam a ligar. Ele já sabia e dizia para a esposa; NÃO ATENDO NINGUÉM, e se trancava no quarto com um mal humor de lascar.
ResponderExcluirCaro Hayton, gostei de saber um pouco mais sobre a natureza feminina, que você bem explica.
ResponderExcluirTodavia, sobre paixão pelo esporte, sou mais adepto do basquete, um esporte mais dinâmico, não tem empate, traz emoção a cada 24 segundos com pontuação ou tentativa, você assiste o espetáculo mais próximo do jogo e os ginásios estão quase sempre vazios.
Mas tudo é uma questão de gosto, né?
Hayton, você definiu bem as mulheres: quando não estamos pensando no parceiro, são os filhos ou neto. Quanto a futebol, realmente, não me ligo nesse esporte que arrebata as massas, a não ser se for o Brasil jogando e olhe lá! Fico tão nervosa vendo jogo, que prefiro cuidar de outras coisas. Concordo, entretanto, que é uma paixão nacional!
ResponderExcluirComo mulher de torcedor do Flamengo, já passei pela mesma situação da sua esposa amigo. Pense no tanto que pegava ar. Resolvi largar de mão.
ResponderExcluirMagistral! Uma pintura, senhoras e senhores! É pra ficar na história das crônicas. Belo texto, bem alinhavado e arrematado. Fez o que quis com a bola...ops... com as palavras no campo branco da tela, que chegou a pegar uma corzinha por inveja. Uma exibição pneumática, se o assunto fosse tênis. Goleou sem levar o "de honra". Agora, seus leitores estamos prontos para a peça sobre a conquista do título sonhado ou da derrota imposta ao arquirrival, se é que já não existe. Parabéns, Hayton, crônica de mestre.
ResponderExcluirGolaço, Hayton. Logo recomeça a minha agonia com meu querido Sport. Mas sempre confiante!
ResponderExcluirGol de placa essa crônica! Pegou na veia!
ResponderExcluirAdmiro as paixões! A sua, Hayton, pelo futebol, digo, pelo Vasco; a do Bicca, pelas estradas; a do Oceano, por caminhadas. Oficialmente, sou Gremista, mas só fiquei sabendo do Hepta pelas "trolagens", nos grupos, aos colorados. Que, agora, devolveram, porque o Grêmio não "Achou o Pato". Antes, eu não era assim. Mas, os famigerados 7x1... prefiro não comentar! Ainda bem que as mulheres existem. São mais centradas, multifocadas e mais atentas. Sem falar do "jeitinho feminino", em contraponto ao "jeitão grosseirão masculino". Digo por mim. Lá se vão 50 anos, sendo quarenta e sete de casados...
ResponderExcluirÀs vezes sou tão prolixo que me perco. Ainda bem que você se deu conta de que no último parágrafo do texto eu já não me refiro apenas à paixão pelo Vasco.
ExcluirPerfeito!
ResponderExcluirA paixão por esse esporte não resistiria a uma análise racional.
Mas a vida seria muito chata se o racional fosse a regra, sempre.
Seguir torcendo para um aglomerado que tem um dono, com um bando de botinudos incapazes de dar dois dribles, só pode ser masoquismo.
E a gente segue…
Caro amigo, expressou com excelência a paixão pelo futebol. Como sou da geração mais antiga nada entendo de futebol , mas quando me perguntam digo que sou vascaína. Influência de amigos de adolescência que me levaram a um jogo do Vasco no Maracanã.
ResponderExcluirNo caso dos atleticanos e atleticanas, não são torcedores… são doentes e sofredores que sempre acreditam ; os tricolores das laranjeiras são guerreiros apaixonados; e, uma casa repleta desses habitantes é um caldeirão onde a chama nunca se apaga!
ResponderExcluirAssim como suas crônicas, o futebol mexe com nossas almas rsss
Apesar de o cronista anunciar, em mais uma ótima crônica, a felicidade pela chegada de mais um “Brasileirão”, o ano novo do futebol começou bem antes, com a tradição dos estaduais e, para nós nordestinos, a Copa do Nordeste. E aqui em casa a torcida é de casalzinho, nem sempre torcendo pelo mesmo time. Ele, fiel; eu, pelo time que jogar bonito. Adoro futebol, desde os meus sete, oito anos quando meu pai, botafoguense doente, ligava o rádio e eu ficava fascinada com aquela velocidade nas falas e uma vivacidade que, para mim, nenhum outro narrador televisivo conseguiu alcançar até hoje: Waldyr Amaral, Jorge Curi, Mário Vianna. De arrepiar.
ResponderExcluirNão bastasse a excelência do texto, você ainda transita por um tema que tem a capacidade de tocar fundo em praticamente qualquer brasileiro, e aí verdadeiramente extrapola.
ResponderExcluirÀs vezes você cria personagens, ou então se inspira em alguns que conhece ou conheceu, relatando acontecimentos vividos ou protagonizados por eles, mas de uma forma que os eterniza em nossas mentes.
O futebol é apaixonante, sobre isso não cabe dúvida. Mas consagra a sabedoria popular que o poeta ou cronista se inspira mesmo é com o sofrimento, nunca com a alegria ou conquistas.
Só por isso, não posso desejar que seu Vasco passe a lhe dar muitas alegrias, vem em mim o medo de que percamos as pérolas semanais com que você nos brinda em forma de crônicas.
Você é um sacana de marca maior! Não perde oportunidade de esculachar, de tripudiar sobre o fosso abissal que se abriu entre o seu e o meu time.
ExcluirMas não desejo o pior pro seu time. Quero que ele consiga em 2024 tanto quanto obteve no ano passado.
Você é imbatível.
ExcluirSacaneei de propósito, sabia que viria uma resposta que muito me ensinaria. Sua praga já prevaleceu no campeonato carioca, vi lá...
Escrever sobre futebol já é difícil. Há risco de ser passional, chato ou repetitivo.
ResponderExcluirEscrever sobre as mulheres é sempre arriscado: pode ser superficial, preconceituoso, deselegante, incompreendido.
Hayton resolveu escrever sobre os dois assuntos de uma só vez. O resultado foi capturado pelos comentários anteriores ao meu: um texto leve, delicioso e ao mesmo tempo profundo.
Assino embaixo sem pestanejar!
ExcluirShow de bola...
Parabéns estimado Hayton pela excelente crônica e minhas saudades vascaínas.
ResponderExcluirRogamos a Deus que dê espírito de sabedoria e revelação ao filho Rodrigo Dias, a fim de que ele e toda sua equipe, aproximada 300 pessoas atletas e funcionários, ter um bom desempenho, revelando excelentes e talentosos atletas na base do Vasco, proporcionando muita alegria a torcida Vascaína .
Forte abraço
Que Deus nos abençoe.
Paixões que fazem o mundo ser a própria bola, ora saindo pela linha de fundo, ora atrapalhando as boas intenções de quem quer sair vitorioso ou, ainda, acertando a cabeça oportunista que se converterá em gol...
ResponderExcluirOs interesses são vários, inclusive daqueles que torcem para que haja guerra de verdade...
Imagina se a gente interferisse no salão onde ela está pintando a unha... pior é quando resolvem vir trocar ideia na hora de um ataque perigoso e ainda ficam na frente da TV. Se imaginassem o risco que correrm, fariam do mesmo jeito. Mas, como tudo tem um começo que venha de novo a guerra...
ResponderExcluirMais um belo texto. Desta vez sobre futebol. Melhor, com ênfase no Vasco. Na qualidade de torcedor do referido time, fiquei contente e por isto dou os parabéns. Obrigado. Até a próxima.
ResponderExcluirMelhor assistir às competições esportivas que às guerras. No fundo, tudo se resume em saber quem vence.Quem tem razão. Quem e o melhor.
ResponderExcluirEssa realidade, Hayton, também se faz presente aqui em casa… Aberta a temporada do futebol pela TV a disputa aqui é pela maior televisão da casa. E com um agravante: além do Brasileirão, ainda acompanharei a Libertadores e a Copa do Brasil. É jogo praticamente dia sim outro também…
ResponderExcluirBeto Barretto
Você, toda a Galera estará na mesma sintonia, com certeza, alguns ou muitos contra o Vasco. A beleza do futebol, cada um com sua paixão.
ResponderExcluirOpa! No cardápio cabe uma gelada, drink e vinhossss.