Antes que a tormenta eleitoral que vem por aí ofusque nossas preocupações particulares e coletivas, é preciso refletir sobre algumas feridas da amada pátria que ora mais parece uma carroça na chuva, descendo ladeira abaixo, sob o "controle" de um pangaré com os cascos encerados.
Deus é testemunha de que nem mesmo eu boto tanta fé em que só refletir sobre essas feridas vá resolver alguma coisa. É preciso, antes de tudo, uma improvável trégua entre lados opostos (ambos convencidos de suas verdades imutáveis), como cicatrizante das diferenças de opinião.
Claro que, se recebesse um mandato divino, eu mesmo sairia por aí a fazer justiça com minhas próprias mãos, distribuindo pão e terras aos famintos e mal pagos, além de compaixão e generosidade para os mais abonados, até para contradizer quem acha que Ele “é um gozador, adora brincadeira, pois pra nos jogar no mundo tinha o mundo inteiro, mas achou muito engraçado nos botar cabreiros e na barriga da miséria nascemos brasileiros”.
Acontece que a amada pátria, ainda estarrecida com a barbárie de dois crimes repugnantes (fadados ao esquecimento daqui a pouco), vê explodir toda semana novos mísseis devastadores, daqueles que não só destroem prédios e pontes, mas também o que resta de dignidade de uma nação.
Discutia-se nos bares e lares a diferença de duas abordagens policiais: a de um homem negro, pobre, que trafegava sem capacete numa motocicleta e acabou morto por asfixia no porta-malas de uma viatura em Sergipe. A outra, de um homem branco, que estuprou uma mulher em seu mais sublime momento, anestesiada – dopada talvez fosse o termo mais apropriado – durante o parto. Parecia que o segundo estava sendo convidado a tomar um chope num quiosque qualquer da Barra da Tijuca.
Nisso, logo após a derrota do Flamengo no jogo de ida contra o Atlético-MG pela Copa do Brasil, no Mineirão, um jogador rubro-negro, ainda no gramado, declara algo inesperado partindo de um ídolo esportivo de vulneráveis: "Lá eles vão conhecer o que é inferno!". Referia-se ao ambiente que se deveria criar no Maracanã no jogo de volta.
O Galo não jogou nada e o Urubu nem precisou ser espetacular para vencê-lo: bastou empenhar-se do começo ao fim, atacando em bloco com velocidade, marcando firme e contando com mais uma atuação de gala de um uruguaio humilde e talentoso, autor dos dois gols da vitória. Mas, e se o Flamengo perdesse, como reagiria a massa contra os adversários ou mesmo em relação a seus próprios ídolos?
Na noite seguinte, Cássio, 35 anos, o maior goleiro da história do Corinthians, sofreria uma voadora, pelas costas, de um torcedor santista que, inconformado com a desclassificação de seu time, invadiu o campo da Vila Belmiro. Chateado, ele repetiu numa entrevista aquilo que está cada dia mais óbvio (ululante, no dizer de Nelson Rodrigues): "Falta pouco para uma tragédia".
"A gente tá duvidando que isso possa acontecer", arrematou Cássio. Logo ele que, também em abril passado, teve de registrar boletim de ocorrência policial por haver recebido ameaças pelas redes sociais, num momento adverso de seu clube. O resultado das investigações? O mesmo do inquérito aberto pelo STF para investigar a existência de fake news na cena política brasileira.
Quem acompanha futebol mais de perto recorda que, no começo deste ano, durante a partida entre Palmeiras e São Paulo pela Copa São Paulo de Futebol Júnior, um atleta do Verdão encontrou uma faca no gramado, invadido por torcedores do Tricolor. Claro, não era um utensílio de trabalho esquecido pelo jardineiro da Arena Barueri.
Esses casos estão cada vez mais frequentes e absurdamente ousados. Medidas como torcida única nos jogos mais importantes ou proibição de bandeiras nos estádios, soluções adotadas em São Paulo, mostram-se ineficazes e só evidenciam a má-vontade do poder público e dos dirigentes de clubes em resolver o problema.
O embrutecimento generalizado é mais preocupante porque, noutras esferas tão explosivas quanto futebol e religião, incentiva-se abertamente o clima de guerra, desacreditam-se as instituições e incitam-se potenciais criminosos por meio do afrouxamento de regras mínimas de civilidade como o controle de armas.
Como o pior do clima futebolístico está presente nos aspectos mais importantes da vida nacional, recorro de novo a Nelson Rodrigues, citado por Ruy Castro na Folha de S.Paulo de 16.07.22: "Quando os amigos deixam de jantar com os amigos por causa da ideologia, é porque o país está maduro para a carnificina".
Cássio está certo: tem mau cheiro de tragédia no ar.