Quase tudo já foi dito sobre os 80 anos de Caetano Veloso, celebrados em grande estilo na noite do último domingo, ao lado dos filhos Moreno, Tom e Zeca e da irmã Maria Bethânia, no palco da Cidade das Artes, no Rio de Janeiro.
Ao assistir à live, lembrei-me de Claudionor Viana Teles Veloso, mais conhecida como Dona Canô, mãe e avó deles, que desde o Natal de 2012 virou estrelinha cintilante no céu da pequena Santo Amaro da Purificação, berço do samba de roda no Recôncavo Baiano.
Quando cheguei à Bahia para coordenar a rede de agências do Banco do Brasil, em 1999, me contaram que em algumas regiões havia pelo menos 60% de analfabetos – zona rural de Jacobina, por exemplo. Enquanto isso, dormia empoeirado na prateleira da empresa um remédio poderoso para abrandar a dor desse flagelo social: o BB Educar, programa de alfabetização de adultos, criado em 1992 pela área de RH do bancão com base no método mundialmente reconhecido do filósofo e pedagogo brasileiro Paulo Freire.
Sem as plataformas de comunicação de hoje em dia, era importante escolher uma fada-madrinha de peso (e leve, ao mesmo tempo!), para despertar o interesse geral pelo BB Educar na Bahia e esclarecer a opinião pública sobre o seu propósito, bem mais amplo do que simples retorno de imagem para o patrocinador.
Quem poderia ser essa fada-madrinha? Daniela Mercury? Ivete Sangalo? Zélia Gattai? Optamos por convidar Dona Canô, que, no entusiasmo de seus 92 anos, topou na hora: “É isso mesmo que estou ouvindo? Vocês querem que eu seja a madrinha de um programa lindo como esse?!”
No dia do lançamento, ela atiçava seus “afilhados”, a maioria na casa dos 40 anos, constrangidos por não saberem ler nem escrever: “Minha gente, vocês têm mais é que agradecer a Deus por essa oportunidade, porque quem aprende, mesmo depois de velho, deixa de tentar ‘adivinhar’ o que está escrito nos livros e nos jornais...”
Antes de pegar os 80 km da rodovia BR-420 de volta para Salvador, eu e Magdala, minha mulher, recebemos um gentil e inesperado convite de Dona Canô:
– Quero que voltem aqui na minha casa, em agosto, quando iremos comemorar o aniversário de Caetano. Posso contar com vocês?
– Claro, Dona Canô!
Seria a oportunidade de ver de perto o sorriso iluminado de sua caçula, uma abelha-rainha a cantarolar descalça, na sala ou no quintal, versos do irmão aniversariante como:
“...Eu sou o cheiro dos livros desesperados,
sou Gitá gogoia, seu olho me olha, mas não me pode alcançar.
Não tenho escolha, careta, vou descartar:
Quem não rezou a novena de Dona Canô,
Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor,
Quem não amou a elegância sutil de Bobô,
Quem não é Recôncavo nem pode ser reconvexo...”
Era a chance de conhecer de perto o cara que, quando menino, de tanto ver o rio de sua aldeia desaguar na Baía de Todos os Santos, construiu imagens de infinita beleza:
“...Reza, reza o rio, córrego pro rio, o rio pro mar.
Reza a correnteza, roça, beira, doura a areia.
Marcha o homem sobre o chão, leva no coração uma ferida acesa,
Dono do ‘sim’ e do ‘não’ diante da visão...”
“Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer...”
“Existirmos: a que será que se destina?”
“Você diz a verdade e a verdade é o seu dom de iludir”.
“O tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece...”
Imaginem só o tamanho da frustração lá em casa – quase sai divórcio... Litigioso! – quando, na véspera do retorno a Santo Amaro, tive que me desculpar junto a Dona Canô, pois teria que me deslocar a outra cidade, por força de obrigação profissional.
A verdade (no caso, o dom de me iludir!) é que ainda não chegou o dia de conhecer Caetano. Ainda bem que, feito o tempo (“compositor de destinos, tambor de todos os ritmos”), o filho de Dona Canô nunca envelhece.