quarta-feira, 24 de maio de 2023

Há rosas que falam

Conheci o cantor e compositor Zeca Baleiro há 10 anos, no CCBB Rio de Janeiro. O projeto Banco do Brasil Covers entraria em cena novamente, pelo segundo ano, com três shows inéditos, trabalhando a ideia de que os ídolos também têm seus ídolos. 

 


Na programação para 2013, além de Zeca Baleiro homenagear Zé Ramalho e Maria Gadú reverenciar Cazuza, quatro ícones do rock nativo (Dado Villa-Lobos, João Barone, Leone e Toni Platão), ao lado de Liminha, produtor musical e ex-baixista de Os Mutantes, diriam de sua devoção aos Beatles.

 


Conversava amenidades com Zeca 
quando toquei em algo que vinha me deixando intrigado: mesmo grandes letristas, ao chegarem na faixa dos 60 anos de idade, não conseguem produzir obras arrebatadoras, inesquecíveis. Não era o caso dele, claro, à época um “menino” de apenas 47 anos.

 

Referia a achados poéticos raros, sem rebuscamentos, alguns lapidados às pressas, sob encomenda, para compor a trilha sonora de um filme ou de uma novela de TV, como:

 

“... Se nós, nas travessuras das noites eternas

Já confundimos tanto as nossas pernas,

Diz: com que pernas eu devo seguir,

Se entornaste a nossa sorte pelo chão,

Se na bagunça do teu coração

Meu sangue errou de veia e se perdeu?”

(Chico Buarque, aos 36, em 1980, ano de lançamento do álbum “Vida”)


"...Um raio que inunda de brilho uma noite perdida.

Um estado de coisas tão puras que movem uma vida.

E um verde profundo no olhar a me endoidecer...

Quisera viesse do mar, e não de você.

Porque seu coração é uma ilha a centenas de milhas..."

(Djavan, aos 32, em 1981, ano de lançamento do álbum "Seduzir".

 

“... Luz do sol
Que a folha traga e traduz 

Em verde novo em folha, 
Em graça, em vida, em força, em luz.

Céu azul que vem
Até onde os pés tocam a terra,
E a terra inspira e exala seus azuis...”

(Caetano Veloso, aos 40, em 1982, ano de lançamento do álbum “Luz do Sol”).

 

Zeca Baleiro discordou. Não poderia ser diferente, pensei. A classe é meio desunida, mas nem tanto. Porém não ofereceu dados que me fizessem mudar de opinião. Nos reencontraríamos mais adiante, num show que fez em Brasília, mas não voltamos ao assunto.

 

Pouco antes de conhecê-lo, eu havia assistido ao documentário Vinícius, bela reconstituição da vida e da trajetória artística do diplomata, poeta e letrista Vinícius de Moraes, com depoimentos de alguns amigos dele, como: Tom Jobim, Chico Buarque, Francis Hime, Carlos Lyra e Ferreira Gullar. 

 

Em certo trecho, Chico recorda que, já próximo do desembarque, convidaram o Poetinha para mais uma noitada nos bares de costume. Ele recusou sob o insólito argumento de que iria assistir Baretta, um seriado policial norte-americano dos anos 1970 protagonizado por um detetive trapalhão que tinha um caso de amor com uma cacatua. Sinal de que Vinicius já não pensava em obras arrebatadoras e inesquecíveis (faleceria em 1980, aos 66 anos).

 

Domingo passado, contei essa história a um amigo, que me deixou preocupado com suas justificativas: “Tem a ver com a motivação. Quando jovens, temos muitos sonhos, muitos objetivos, muitas lutas a serem travadas e, o principal, amores em curso. Com o tempo, as emoções se acalmam, a alma sossega e a produção intelectual diminui. É substituída pela cautela, pela paz interior que antecede a morte...” 

 

Contei a outro, que foi menos fatalista, mas cruel: “Veja o caso de Roberto e Erasmo Carlos: as canções do último quarto de vida não chegam aos pés das antigas. Caetano entrou numa fase de experimentalismo com letras que parecem aqueles quadros abstratos que só o autor entende. Alceu vive do passado. Milton, nem se fala. Fagner ficou bobo e de mal com a vida. O Chico ainda faz algo bom, mas nada inesquecível...” – queixou-se.

 

Quase convencido de que sempre estive certo em minha tese de mesa de boteco, somente agora me vieram à cabeça Cartola e “As Rosas Não Falam”.

 

Conta-se que Dona Zica, sua esposa, ganhou algumas mudas de rosas e resolveu plantá-las no jardim. Dias depois, ao abrir a porta bem cedinho, ficou em êxtase com a quantidade de flores que desabrocharam. Chamou então o marido e quis saber:

– Cartola, por que nasceu tanta rosa assim?

– Não sei, Zica. As rosas não falam… – ele respondeu, sorrindo. 

 

E ficou mastigando a frase, como se fosse um palito. Quando faltavam três dias para completar 65 anos, nasceu a “criança”. Cartola, que faleceu em 1980, aos 73 anos, dizia que a canção havia sido presente de Deus. 

 

Sobre a obra-prima, aliás, Paulinho da Viola conta que, em 1973, quando trabalhava na TV Cultura, em São Paulo, num programa que apresentava pessoas ligadas a escolas de samba, recebeu a visita de Cartola, que lhe pediu para mostrar uma de suas composições. E comoveu-se quando ouviu, pela primeira vez, a inesquecível declaração de amor de um poeta popular sessentão:


“... Queixo-me às rosas...
Que bobagem! As rosas não falam.
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti...”

 

Da próxima vez que encontrar Zeca Baleiro – difícil, mas não é impossível –, prometo que direi que estava enganado. Ele tinha razão. 

quarta-feira, 17 de maio de 2023

O povo esquece

Trouxeram até o Chefe uma mulher apanhada em adultério. Propuseram que fosse apedrejada (ou recebesse cacetadas) até a morte ou até ser desfigurada para que nunca mais despertasse, nos semelhantes (e nos diferentes também), desejos libidinosos. 

 

Reprodução/Redes Sociais

O Chefe sentiu a rapaziada disposta ao massacre. A vida daquela mulher não tinha a menor importância. Ninguém estava nem aí para as condições que a levaram a pecar. Também ninguém questionou o que a teria levado a vacilar, mesmo sabendo que a pena capital seria aplicada em caso de flagrante.

 

Nada se apurou sobre eventuais promessas feitas ao ouvido da acusada pelo corresponsável pelo crime. Talvez palavras ternas e poéticas, oferecendo o carinho e o cuidado que o marido já não oferecia. Daí, o coração gritou mais alto, quis algo que nunca experimentara e partiu com tudo para a troca de secreções e lesões corporais desejadas.

 

Agora, sem advogado de defesa para assegurar os direitos cabíveis no rito sumário instalado, ali estava diante do Chefe, abandonada, desiludida e envergonhada, na iminência de uma dolorosa morte. 

 

Embora não fosse deputado ou senador eleito pela comunidade, o Chefe surpreende a tropa, sedenta de sangue, proclamando de forma desconcertante: “Quem dentre vocês não tiver pecado que atire a primeira pedra ou dê a primeira cacetada!”

 

Para encurtar a história, uma vida foi poupada, em primeira instância, por motivos óbvios: ninguém ali era ficha limpa. Talvez tenham se perguntado: “Quem de nós, a bem da verdade, nunca pecou? Onde está o justo, o puro, o santo?” 

 

Não demora muito e aparece um espírito de porco fazendo o que se espera de quem se especializa em complicar situações ou causar constrangimentos em certas ocasiões: “Data vênia, Chefe, cabe recurso!”

 

Depois de ouvir a sentença proferida em primeira instância, o próprio espírito de porco interpõe recurso oral, já de posse de uma banda de tijolo, mirando a testa da adúltera: “Eu nunca pequei. Logo...”.

 

– Peraí! – atalha um dos comparsas da alma suína puritana – Você esquece que anda cubando as partes daquela comadre casada, né mesmo? Toda vez que o marido dela sai para fazer entregas no asfalto, lá vem você com aquela desculpa de que anda chateado, insatisfeito com o que tem pra janta dentro de casa, só de olho no cofrinho e no decote da moça, né não? 

– Opa! Sem maldade, só admirar as tatuagens não é pecado. Pra onde caminha a humanidade? – justifica-se, mas desiste do arremesso da banda de tijolo, temendo que os rumores ganhassem maior repercussão e afetassem sua amizade com o compadre.

 

Outro pega um porrete e se habilita a iniciar a execução sumária com novos e robustos argumentos:

– Nunca desejei a mulher do próximo, não matei nem roubei. Sou puro e casto como um cabritinho de dois dias.

– Por falar nisso – diz o Chefe, segurando-o pelo braço do porrete –, lembra de quando era moleque na Baixada e andou se servindo daquela cabra velha? Você, hein?! Dizia na orelha da coitada que ela merecia ganhar um presente, que só não lhe dava um par de havaianas porque os pés eram redondos...

– Eu... Eu era bem mais novo que o senhor, Chefe…

– Ah, é?! Se eu lhe mandasse comer bosta, você comeria? Larga o cacete, vai...

 

Surge um cara fortão, parecendo uma chave inglesa, pega um paralelepípedo e prepara-se para atirar na adúltera, falando grosso: “Eu nunca fiz nada disso. Não tenho o pecado da luxúria, nem da avareza, da gula, da inveja, da ira, da preguiça ou da arrogância. Pelo contrário, sempre fui humilde e generoso...

 

Silêncio geral. O próprio Chefe então toma a palavra: 

– Mas mente que é uma beleza, hein?! Pensa que não sei?

– De quê, Chefe?

– Até vir trabalhar para mim, você colecionava combos de pecados capitais. Escapava da repartição no horário do expediente para beber e fornicar de cabaré em cabaré, exigindo descontos na tabela de preços dos serviços prestados. Isso quando não pendurava a conta no cheque pré-datado! Desista...

 

E pinta mais um justiceiro, de cassetete na mão, que também desiste ao ser devidamente lembrado de que, alguns anos antes, fora vítima de acusação “sem provas” (corrupção ativa e passiva, charlatanismo, emprego irregular de verba pública, falsificação de documentos, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, leniência e prevaricação), a qual o levaria ao corredor da morte se a sentença não tivesse sido anulada pelos tribunais superiores por conta de deslizes formais nas etapas preliminares do processo.

 

Quando a turba começa a se dissipar, de mansinho o ajudante-de-ordens consulta o Chefe:

– Que lição a gente pode tirar disso tudo, meu iluminado guru?

– Não se deve fazer julgamentos precipitados.

– Sei…

– Bem, se a tentação for grande, também não se deve resistir. Ela pode não voltar. Mas jogue o celular no vaso e dê descarga. 

– Só?

– E negue, negue tudo. O povo esquece logo. 

quarta-feira, 10 de maio de 2023

O “bem-amado” e as comadres

Ela e ele (um ex-parlamentar, por sinal, muito bem de vida) moram em Curitiba-PR, onde criaram os filhos, os netos crescem e a vida segue, só lhes restando agora, aposentados, implicar um com o outro o dia todo, todo dia. 


Esta semana retomaram uma briga antiga. Diz ela que ele vive dando em cima das mulheres mais jovens que frequentam um pub aconchegante e descolado, com decoração vintage, que serve uns coquetéis e petiscos maravilhosos. Ele nega. Garante que ela está ficando louca, vendo tranças e chifres em cabeça de pulga.

 

Ontem, ela buscou um ombro amigo numa videochamada para sua comadre Márcia, mulher de meu amigo Luizão, que a tudo ouviu porque o tom da prosa foi tão alto que o impediu de cochilar seus 20 minutos pós-almoço.

 

– Ele pensa que sou besta! – dizia ela. – Sou feito aquela que cantava "sinto quando alguém te interessa, mesmo quando finges que não vês..." 

– Calma, comadre! – ponderava Márcia –. Vai me dizer que nunca olha pra ninguém além de seu marido? Olhar não arranca pedaço de ninguém. Lembra quando você me disse que era difícil admitir que Harrison Ford ronca, que Richard Gere arrota, que Brad Pitt peida?

– Epa! Assim, não! Artista não conta...  

– Vai me dizer então que não existe nenhum gatão grisalho no seu prédio? Você não fala nada pra não desagradar o compadre, não é?

– Desagradar, não. Se eu elogiar alguém, na primeira bunda que aparecer na nossa frente ele vai esquecer que estamos juntos há mais de 40 anos. O bicho é safado mesmo. E quanto mais velho, mais sem-vergonha fica!

 

E veio à tona o estopim da encrenca: o noticiário sobre o imbróglio envolvendo o prefeito da cidade de Araucária-PR, que, no frescor de seus 65 anos, acaba de se casar com uma moça de 16. Dois dias antes do casório, ele havia nomeado a mãe da noiva como secretária de Cultura e Turismo. 

 

Imagem: Reprodução/Instagram 

Deu nos jornais que se trata do quinto casamento do insaciável alcaide. Reeleito com 47 mil votos, o bem-amado teria recentemente declarado à Justiça Eleitoral dispor de mais de R$ 14 milhões de patrimônio. Nada mal pra quem está começando uma nova vida a dois.

  

Aqui, legalmente é possível se casar aos 16 anos com autorização do responsável – a menina completou a idade mínima quatro dias antes de se casar. “Mas a ONU considera casamento infantil qualquer união com menor de 18”, argumenta a comadre de Márcia e Luizão. “Isso é uma violação de direitos. Pedofilia, falando português mais claro”, afirma.

 

A suposta prática de nepotismo é que deu visibilidade nacional ao caso. Após a repercussão, o prefeito se viu emparedado e cuidou de exonerar a sogra com menos de duas semanas após empossá-la no cargo.

 

Luizão me conta que, surfando no noticiário enquanto as comadres conversavam, descobriu que o Ministério Público do Paraná investiga a denúncia de nepotismo. Também existe uma análise sigilosa – seja lá o que isso significa – sobre o casamento.

 

O viril burgomestre concedeu entrevista ao jornal "O Popular do Paraná" declarando que o casal está bastante feliz. "Minha esposa me faz muito bem, e eu faço bem a ela...”. Nas redes sociais, ela retribuiu: disse não se importar com a repercussão do caso. "O que importa, sinceramente... É que não nos importamos!".

 

Ai de quem duvidar desses corações apaixonados que decidiram ficar juntos! Arrisca-se, no mínimo, a ser processado por preconceito contra idosos. Afinal, o etarismo (palavrinha na moda, hein?!) pode ser enquadrado como crime de injúria, quando alguém com mais de 60 anos tem a sua honra ou dignidade ofendidas.

 

A mídia, arvorando-se no papel de termômetro social, avalia a temperatura de uma possível investigação por exploração sexual, mas só na hipótese de o Ministério Público encontrar indícios robustos – de novo, seja lá o que isso significa. 

 

Uns dizem que, apesar de esse tipo de união ser legalmente permitido no Brasil, uma menina de 16 anos sequer tem o corpo (e a mente) completamente formado e, por isso, não há que se falar em consentimento. Outros defendem que não se pode acusar de ambição material uma criatura inocente, sem maldade.

 

Mas para a comadre de Márcia, no entanto, "houve, sim, jogo de interesses, pois a mãe da ninfeta foi nomeada pouco antes do casamento. E se o sujeito recompensou a mãe por autorizar a filha a se casar, teve exploração sexual..."

  

Ao perceber que meu amigo Luizão estava acordado, ouvindo o desenrolar da prosa, Márcia tenta envolvê-lo:

– E você, meu bem, o que acha disso?  

– Sei lá! Não vou me meter em conversa de comadres, mas...

– Mas o quê?

– Pode atrapalhar os planos do compadre. Outro dia ele me contou que será candidato a prefeito, aqui na região metropolitana, nas próximas eleições...

– Só capando aquele velho safado! – despediu-se a comadre, lacrando a videochamada. 


E Luizão, enfim, pôde cochilar. 

terça-feira, 2 de maio de 2023

Trocando em miúdos

Celebrou-se em Portugal, na semana passada, o aniversário de 49 anos da Revolução dos Cravos, revolta pacífica que pôs fim ao Salazarismo   governo de inspiração fascista desde os anos 1930, uma das mais duradouras ditaduras da Europa. 

Coincidiu com um momento marcante na vida de Chico Buarque, autor da mais célebre canção brasileira sobre aquele evento histórico, “Tanto Mar. Quatro anos depois do seu anúncio como vencedor do Prêmio Camões, principal honraria literária da língua portuguesa, Chico pôde finalmente recebê-lo no Palácio Nacional de Queluz, em Sintra, a meia hora de Lisboa. 

 

A recusa do ex-presidente Bolsonaro em assinar o diploma de premiação explica a demora. Quem acabou assinando foi o atual presidente Lula, que participou da cerimônia junto do presidente português, Marcelo de Sousa, e do primeiro-ministro, Antonio Costa.

 

O Prêmio Camões foi criado há 35 anos pelos governos de Brasil e Portugal e é escolhido por um júri composto por dois brasileiros, dois portugueses e dois representantes dos demais países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Já premiou nomes como João Cabral de Mello Neto, Jorge Amado, José Saramago, Lygia Fagundes Telles, Mia Couto, Rachel de Queiroz, Rubem Fonseca, dentre outros.

 

Voltei no tempo, aos meus 10 anos, mais precisamente a 1968. Apareceu na radiola lá de casa um compacto simples — pequeno disco de vinil com apenas duas músicas: de um lado, “Bom tempo”; de outro, “Ela desatinou” — de um cantor e compositor desconhecido para mim. 

 

Meu pai falava de canções mais interessantes do que aquelas dos cabeludos da Jovem Guarda. Tive dúvidas. Eu já começara a escutar no rádio “Eu sou terrível”, “Por isso corro demais”, “De que vale tudo isso”. Mas ouvi um bom conselho e nunca mais deixei de prestar atenção no que fazia Chico. 


Cresci admirando as múltiplas facetas do maior cronista-poeta musical de seu tempo.Tanto mar depois, embora Chico seja reconhecido em várias partes do mundo pelo conjunto de sua obra como cantor, compositor e escritor, com centenas de canções, cinco livros e tantas outras criações artísticas, alguns brasileiros o apedrejam nas ruas, nos bares e nas redes sociais, com a mesma intolerância e ingratidão com que se tratou Geni.

 

Reprodução: Redes Sociais

Lembra as pedras lançadas sobre Pelé, nos anos 1970, porque não usava de seu prestígio para denunciar torturas que aconteciam numa certa nação do faz-de-conta. Foi apedrejado inclusive porque teria dito que seus conterrâneos não estavam preparados para votar. Ironicamente, desde lá,
quem é derrotado nas eleições dá razão a Pelé.

 

Nos anos 1980, João Saldanha, um dos mais respeitados jornalistas esportivos, ao opinar sobre a decisão do então treinador da seleção, Telê Santana, de excluir do grupo o atacante Renato Gaúcho — o jogador caíra na esbórnia às vésperas da viagem para a Copa do Mundo —, foi taxativo: “Eu não preciso dele pra casar-se com a minha filha, mas pra jogar futebol. E esse cara joga pra burro!”.

 

Chico é pelé (cai bem o novo verbete incorporado ao dicionário Michaelis!) no que faz. Mas, como Saldanha, não preciso dele para ser meu genro, pai de meus netos. Nem tenho interesse em suas preferências futebolísticas, políticas, religiosas ou sexuais. 


Meus netos, sim, precisam ouvir antigas estórias de um país do faz-de-conta de casas simples, com cadeiras na calçada, em que na fachada estava escrito que era um lar. Ali morava uma criança que, mesmo sem ter fé, pedia a Deus por sua gente, gente tão humilde que dava vontade de chorar.

 

Com o tempo, essa criança foi vista chegando suada e veloz do batente, trazendo um presente para encabular seu pai. Eram tantas correntes de ouro que faltava pescoço para enfiar. Trouxera até uma bolsa com tudo dentro: chave, caderneta, terço, patuá, lenço e uma penca de documentos pra finalmente o pai se identificar.

 

Criança que cresceu desiludida com o futuro da nação do faz-de-conta. Um dia, bebeu e soluçou como se fosse um náufrago, dançou e gargalhou como se ouvisse música e acabou no céu como se fosse um pássaro. Restou a seu pai uma saudade que dói mais que o revés de um parto ou arrumar o quarto de um filho que morreu.

 

Chico, assim como você e eu, tem o direito de fazer o que bem quiser da própria vida, inclusive de vestir a camisa que lhe pareça mais bonita e confortável. Ainda que as tribos que racham a nação do faz-de-conta só falem a mesma língua num ponto: ou se está com elas ou contra elas. Não têm adversários, têm inimigos.

 

Em tempos de indigência cultural, com tantas obras descartáveis despejadas sobre nós, essas tribos insistem nesse espetáculo dantesco de “olho por olho, dente por dente” que transforma a nação do faz-de-conta num sanatório geral de banguelas e caolhos. 

 

Trocando em miúdos, estou vendo a hora de Chico pedir para deixarem em paz o seu coração — hoje, um pote até aqui de mágoa! — apagar a luz, bater o portão sem fazer alarde e sumir no mundo sem nos avisar. E aquela esperança de tudo se ajeitar... Pode esquecer.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

O espírito das coisas

Admiro as pessoas que simplificam hábitos e pertences ao estritamente necessário. Não sou minimalista, longe disso, mas já renunciei a muitos bens materiais e tento tocar a vida mais centrada em experiências com poucas coisas.

 

De novo, não sou minimalista. Ainda estoco comida e parte acaba no lixo, fora do prazo de validade. Isso é loucura num país onde um terço da população não faz três refeições por dia, mas já estou quase curado. Talvez o mal remonte aos períodos de escassez de meus ancestrais, mistura caboclo-indígena que sobrevive desde o Brasil colônia.


Fotografia: Dedé Dwight

A esta altura da travessia, deve-se levar no “barco” apenas a carga leve das paixões que vêm de dentro, como diria o menestrel de São Bento do Una. No meu caso, eis aqui o espírito das coisas:


Óculos – Primeira que pego ao acordar e última que largo na cabeceira antes de dormir. Ninguém consegue mantê-los limpos por mais de 10 minutos. Desconfio de que minha cabeça cresceu em torno deles e que a única utilidade prática das orelhas foi servir de suporte para a armação. 

 

Escova dental – Quando criança me ensinaram que sua função seria evitar cáries e remover a placa bacteriana. Mais tarde, que não deveria ser usada com movimentos bruscos, sob pena de remover inclusive os heróicos cacos da resistência. Nunca aprendi direito como usá-la. Aliás, aprendi que só em filmes e novelas os casais se beijam de língua assim que acordam e não engulham.

 

Chinelo de dedo – Mais que um calçado despojado para se usar em casa ou na praia, vejo com prazer que vem ganhando adeptos, sobretudo nas regiões tropicais, porque arejam os pés, diminuindo o risco de chulé e frieiras. Ando pensando seriamente em usá-lo com paletó e gravata no próximo casamento que for convidado. Em último caso, um par de alpercatas cai bem em qualquer situação.

 

Bermuda de cordão – Até agora não se descobriu nada que se ajuste melhor às oscilações da bolsa (abdominal, bem entendido!), nesse vaivém doido dos ponteiros da balança, tentando administrar uma barriga com mais de meio século rendida ao pecado da gula. 

 

Liquidificador – Se o café da manhã não incluir vitamina de abacate ou banana, alguma coisa está fora da ordem mundial, diria o poeta. O hábito vem do tempo em que minha mãe abastecia até a tampa o tanque de combustível dos filhos antes de irem à escola, alguns ainda lambendo os bigodes leitosos.

 

Tablet – Para mim, tão multifuncional quanto um computador. Já esqueci até que escrever um texto exigia papel, caneta, mesa, cadeira etc. Correm agora sério risco de extinção aparelhos de TV, boa parte dos álbuns de fotografias e livros que nunca reli.


Celular – Complementa o tablet como tapioca e queijo. No meio da rua, serve de bússola e de bloco de anotações. Mesmo que eu já não faça (ou receba) nem meia dúzia de ligações ou mensagens por dia.  

 

Cortador de unhas – Passei a valorizá-lo ainda mais desde a partida de um amigo, vítima de AVC, que tentava aparar as unhas dos pés. Pena que o inventor da “coisa” não a concebeu mais funcional, pelo menos em relação aos pançudos. A dificuldade no manuseio está no comprimento e na curvatura, em relação ao cabo. Precisava ter acoplado um periscópio.  

 

Ar-condicionado – Há quem duvide da existência do ser humano sobre a Terra antes do surgimento desse aparelho mágico, tanto mais quando recordo, vagamente, de que já usei terno completo, camisa de mangas compridas, gravata, cueca, meias e sapatos. Inclusive no trânsito engarrafado, ao meio-dia, nas ensolaradas Maceió, Recife e Salvador.


Rede de dormir – Desaparece com minhas dores lombares em questão de minutos. Com suas indiscutíveis propriedades anestésicas, substitui com vantagens não só anti-inflamatórios, como colchão, poltrona e cadeira de balanço, trazendo, no meu caso particular, relaxamento e completa indiferença ao que se passa nos arredores.


Tapa-olhos – Já se foi o tempo em que a escuridão me metia medo (o obscurantismo, sim, ainda me assusta). Dormir sem penumbra absoluta, agora, não é de todo repousante. Sou dos que acreditam que a diminuição da luminosidade induz a produção de melatonina, o hormônio do sono. Tanto que o cochilo à tarde pode ser reparador, mas é outra coisa quando se usa tapa-olhos e cpap (do inglês, significa pressão positiva contínua nas vias aéreas).

 

Cpap – É um troço utilizado no tratamento da apneia do sono para impedir a obstrução das vias respiratórias e evitar o ronco. Exalto-o (em nome inclusive de todos os usuários que conheço) pelo sacrossanto resgate do direito de voltar a sonhar durante o sono, de sobrevoar de novo a infância e até mesmo antigos ambientes de trabalho. Quem usa sabe que nem copo d’água gelada depois de uma colher de doce de leite dá tanto prazer. É viciante.

 

E você, já parou pra pensar na lista de coisas realmente indispensáveis no seu barco a essa altura da travessia? Só de pensar, acredite, já reduz bastante o peso.