quarta-feira, 17 de maio de 2023

O povo esquece

Trouxeram até o Chefe uma mulher apanhada em adultério. Propuseram que fosse apedrejada (ou recebesse cacetadas) até a morte ou até ser desfigurada para que nunca mais despertasse, nos semelhantes (e nos diferentes também), desejos libidinosos. 

 

Reprodução/Redes Sociais

O Chefe sentiu a rapaziada disposta ao massacre. A vida daquela mulher não tinha a menor importância. Ninguém estava nem aí para as condições que a levaram a pecar. Também ninguém questionou o que a teria levado a vacilar, mesmo sabendo que a pena capital seria aplicada em caso de flagrante.

 

Nada se apurou sobre eventuais promessas feitas ao ouvido da acusada pelo corresponsável pelo crime. Talvez palavras ternas e poéticas, oferecendo o carinho e o cuidado que o marido já não oferecia. Daí, o coração gritou mais alto, quis algo que nunca experimentara e partiu com tudo para a troca de secreções e lesões corporais desejadas.

 

Agora, sem advogado de defesa para assegurar os direitos cabíveis no rito sumário instalado, ali estava diante do Chefe, abandonada, desiludida e envergonhada, na iminência de uma dolorosa morte. 

 

Embora não fosse deputado ou senador eleito pela comunidade, o Chefe surpreende a tropa, sedenta de sangue, proclamando de forma desconcertante: “Quem dentre vocês não tiver pecado que atire a primeira pedra ou dê a primeira cacetada!”

 

Para encurtar a história, uma vida foi poupada, em primeira instância, por motivos óbvios: ninguém ali era ficha limpa. Talvez tenham se perguntado: “Quem de nós, a bem da verdade, nunca pecou? Onde está o justo, o puro, o santo?” 

 

Não demora muito e aparece um espírito de porco fazendo o que se espera de quem se especializa em complicar situações ou causar constrangimentos em certas ocasiões: “Data vênia, Chefe, cabe recurso!”

 

Depois de ouvir a sentença proferida em primeira instância, o próprio espírito de porco interpõe recurso oral, já de posse de uma banda de tijolo, mirando a testa da adúltera: “Eu nunca pequei. Logo...”.

 

– Peraí! – atalha um dos comparsas da alma suína puritana – Você esquece que anda cubando as partes daquela comadre casada, né mesmo? Toda vez que o marido dela sai para fazer entregas no asfalto, lá vem você com aquela desculpa de que anda chateado, insatisfeito com o que tem pra janta dentro de casa, só de olho no cofrinho e no decote da moça, né não? 

– Opa! Sem maldade, só admirar as tatuagens não é pecado. Pra onde caminha a humanidade? – justifica-se, mas desiste do arremesso da banda de tijolo, temendo que os rumores ganhassem maior repercussão e afetassem sua amizade com o compadre.

 

Outro pega um porrete e se habilita a iniciar a execução sumária com novos e robustos argumentos:

– Nunca desejei a mulher do próximo, não matei nem roubei. Sou puro e casto como um cabritinho de dois dias.

– Por falar nisso – diz o Chefe, segurando-o pelo braço do porrete –, lembra de quando era moleque na Baixada e andou se servindo daquela cabra velha? Você, hein?! Dizia na orelha da coitada que ela merecia ganhar um presente, que só não lhe dava um par de havaianas porque os pés eram redondos...

– Eu... Eu era bem mais novo que o senhor, Chefe…

– Ah, é?! Se eu lhe mandasse comer bosta, você comeria? Larga o cacete, vai...

 

Surge um cara fortão, parecendo uma chave inglesa, pega um paralelepípedo e prepara-se para atirar na adúltera, falando grosso: “Eu nunca fiz nada disso. Não tenho o pecado da luxúria, nem da avareza, da gula, da inveja, da ira, da preguiça ou da arrogância. Pelo contrário, sempre fui humilde e generoso...

 

Silêncio geral. O próprio Chefe então toma a palavra: 

– Mas mente que é uma beleza, hein?! Pensa que não sei?

– De quê, Chefe?

– Até vir trabalhar para mim, você colecionava combos de pecados capitais. Escapava da repartição no horário do expediente para beber e fornicar de cabaré em cabaré, exigindo descontos na tabela de preços dos serviços prestados. Isso quando não pendurava a conta no cheque pré-datado! Desista...

 

E pinta mais um justiceiro, de cassetete na mão, que também desiste ao ser devidamente lembrado de que, alguns anos antes, fora vítima de acusação “sem provas” (corrupção ativa e passiva, charlatanismo, emprego irregular de verba pública, falsificação de documentos, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, leniência e prevaricação), a qual o levaria ao corredor da morte se a sentença não tivesse sido anulada pelos tribunais superiores por conta de deslizes formais nas etapas preliminares do processo.

 

Quando a turba começa a se dissipar, de mansinho o ajudante-de-ordens consulta o Chefe:

– Que lição a gente pode tirar disso tudo, meu iluminado guru?

– Não se deve fazer julgamentos precipitados.

– Sei…

– Bem, se a tentação for grande, também não se deve resistir. Ela pode não voltar. Mas jogue o celular no vaso e dê descarga. 

– Só?

– E negue, negue tudo. O povo esquece logo. 

33 comentários:

  1. Eu ri alto aqui com a história das havaianas e dos pés redondos. Complementando Caetano, acho mesmo que cada um sabe a dor e a delícia de ser (e dever) o que é. Dedé Dwight

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    1. Seu comentário me lembra a impagável paródia de Rita Lee para "I Wanna Hold Your Hand", dos Beatles. Na versão brasileira, "A Cabra e o Bode", a frase que dá título à canção, que dizia "quero segurar sua mão", virou "a cabra gritou mé". Um cearense porreta como você sabe o que isso significa.

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  2. Como sempre seus textos, engraçados e inteligentes, nos remetem a outras situações de triste memória. Neste caso específico, uma certeza, que a lista de pecados e pecadores é imensa. Grande abraço meu querido amigo.

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  3. Esse seria um enredo de filme melhor que o Alto da Compadecida. Sensacional!

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  4. Ademar Rafael Ferreira17 de maio de 2023 às 06:35

    Texto digno de moldura, "combo de pecados" terá quem não ler e degustar. Viva a criatividade.

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  5. Como sempre texto delicioso, engraçado, real e bíblico. Gostei dos pecados ingênuos. Acho até, que lá no interior, cometi alguns. Pena que não podia comprar as havaianas, mas que merecia, ah, sim. Abraço VM.
    Abraço. Valdery

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  6. Uma interessante história que, a partir de uma passagem bíblica, nos leva a muitas reflexões sobre julgar e condenar, macaco que senta no próprio rabo. Hoje, num mundo de imagem e hipocrisia, a palavra pecado perde a função quando se refere ao eu, só cabe ao outro. O PowerPoint só coloca o outro no centro e quando somos nós o protagonista central, as setas sempre apontam em sentido contrário - para os outros. Um dia, numa discussão sobre pecados capitais descobri que o pecado mais dissimulado é a inveja e, talvez por isso mesmo, seja mola propulsora para os demais. Os que apontam os dedos, geralmente sentem inveja dos que tiveram a coragem de pecar.
    Adorei... não fosse a ponta de inveja que senti por não ter sido eu a escrevê-lo, posso assumir que me diverti muito. Textos bons são aqueles que tratam questões sérias de forma leve. Acertou na mosca. Que atire a primeira pedra aquele nao riu...

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    1. Excelente comentário! A referência a PowerPoint, muito oportuna, veio a calhar no dia de hoje! Todas as quartas-feiras, também fico com uma pontinha de inveja por não ter a mesma capacidade do autor de contar histórias de uma forma tão leve e criativa!

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  7. A grande certeza é que tudo, um dia, é descoberto. Mas os grandões (e os pequenos também) não aprendem e continuam achando que podem cometer seus pecados, bancarem os santos e que não vão receber nenhuma pedrada. Marina.

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    1. Sobre a dica do Chefe no desfecho do caso (“jogue o celular no vaso e dê descarga”), lembrai-vos de que já faz um bom tempo que o brinquedinho tem sido o principal elemento de evidências de malfeitos.

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  8. Belíssima crônica Hayton! Como diriam os jovens: desenhou!

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  9. Inspiração e clareza em textos leves e profundos!!! Fantástico, Hayton!!! 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼

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  10. "E assim caminha a humanidade" ...

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  11. Um belo enredo de Brasil, mais familiar do que nunca!

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  12. Que atire a primeira pedra, quem não tiver pecado!! 😉 Belaniza

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  13. Sensacional! Talvez valesse alguma referência a episódios em que o próprio juiz abre mão de seu papel sagrado e se alia à parte acusadora! Kkkkk
    Ou à utilização de arautos lacaios que condenam e execram antes de qualquer acusação e julgamento formal! E depois, pilhados na injustiça, não se sentem na obrigação moral de pedir desculpas públicas! Rsrs

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  14. Retrato do Brasil, em um texto envolvente, leve, esclarecedor. Lembrei de uma cantoria de Zé Ramalho, que apos descrever fatos, expressa assim: "é o Brasil".......vida de gado.. ...

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  15. Muito bom. Sensacional! Espirituoso!

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  16. Excelente crônica, muito apropriada para este momento em que um grupo de não isentos de pecados promoveu um linchamento político ! Não titubearam nas pedradas e pauladas . A história é assim, cheia de linchamentos !

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  17. Fantástico... Como foi dito nos comentários, "desenhou"...
    Outra "obra-prima" foi o comentário da amiga Deborah Almeida. Sem dúvida, o pior pecado é a inveja, pois esta desencadeia os demais.

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  18. Arretado demais

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  19. Só agora consegui ler o seu texto da semana. Apesar da linguagem simples, o leitor tem que ter um conhecimento maior do que muitos experientes no universo subjetivo. Viajei bastante na vaselina. O fato, porém, não desmerece a criatividade do texto, pela necessidade de não se envolver em comprometimento na abordagem interpretativa. Desta forma, entendeu melhor quem tem mais traquejo no gênero. Quem não tem, tem que se conformar com suas limitações. Pior ainda se for idoso, onde tudo cai, principalmente a memória e o traquejo no conhecimento geral. Sendo assim, tem que se conformar e ficar contente com a coragem de enfrentar o desafio com serenidade. Parabéns por mais um legado.

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  20. Que autoridade do Chefe! Porreta! Acho que o autor pensou no mínimo no Chefe do PCC ou do Comando Vermelho ( não o da torcida do CRB) para descrevê-lo. Por minha conta, garanto que o cronista não personificou a figura do Chefe naquele careca fortão, cabeça de ovo, pois se assim fosse a adúltera já estaria sob sete palmos de terra mais rápido que imediatamente.
    Hayton, essa você mandou bem demais.

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  21. Sempre me identifiquei com filmes e textos sobre Julgamentos, notadamente, pelas revelações expostas no decorrer das sessões. Show de bola!!!

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  22. Sentar em cima do próprio rabo e ficar olhando os dos outros... ah, não é só o celular que tem que ir pro vaso. Existem muitos políticos e autoridades que merecem o mesmo rumo.

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  23. Agostinho Torres da Rocha Filho18 de maio de 2023 às 17:16

    Ótimo texto! É preciso muita habilidade para traçar o paralelo entre um trecho bíblico e o cotidiano dos mortais. E não se trata apenas de políticos e magistrados. O boné cabe na cabeça de qualquer ser humano. Parabéns!

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  24. Tendo acesso a esse texto, não tenho dúvida de que o Papa Francisco, a quem costumo me referir como "GRANDE CHICO", com certeza teria comichões de mandar reescrever a consagrada história de nossa criação, tão profunda emoção e reflexão sua obra lhe causaria.
    Agora, cá pra nós - "troca de secreções e lesões corporais desejadas" o fariam corar e certamente desejo de lhe aplicar uns cocorotes.
    Belíssima produção, você brilha mais a cada dia...

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  25. *corrigindo* - "certamente teria desejo de lhe aplicar uns cocorotes"...

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  26. Texto primoroso. Algo mais que se acrescente é redundância, querer agradar ao "chefe" ou encher linguiça.

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  27. Caro Hayton, beleza de texto.
    Essa lição de Jesus é primorosa.
    Obrigado.

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  28. Seria tão bom que todos tivessem essa capacidade de olhar para si mesmos e refletir, mas infelizmente a boa e velha hipocrisia não deixa!

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