quarta-feira, 24 de maio de 2023

Há rosas que falam

Conheci o cantor e compositor Zeca Baleiro há 10 anos, no CCBB Rio de Janeiro. O projeto Banco do Brasil Covers entraria em cena novamente, pelo segundo ano, com três shows inéditos, trabalhando a ideia de que os ídolos também têm seus ídolos. 

 


Na programação para 2013, além de Zeca Baleiro homenagear Zé Ramalho e Maria Gadú reverenciar Cazuza, quatro ícones do rock nativo (Dado Villa-Lobos, João Barone, Leone e Toni Platão), ao lado de Liminha, produtor musical e ex-baixista de Os Mutantes, diriam de sua devoção aos Beatles.

 


Conversava amenidades com Zeca 
quando toquei em algo que vinha me deixando intrigado: mesmo grandes letristas, ao chegarem na faixa dos 60 anos de idade, não conseguem produzir obras arrebatadoras, inesquecíveis. Não era o caso dele, claro, à época um “menino” de apenas 47 anos.

 

Referia a achados poéticos raros, sem rebuscamentos, alguns lapidados às pressas, sob encomenda, para compor a trilha sonora de um filme ou de uma novela de TV, como:

 

“... Se nós, nas travessuras das noites eternas

Já confundimos tanto as nossas pernas,

Diz: com que pernas eu devo seguir,

Se entornaste a nossa sorte pelo chão,

Se na bagunça do teu coração

Meu sangue errou de veia e se perdeu?”

(Chico Buarque, aos 36, em 1980, ano de lançamento do álbum “Vida”)


"...Um raio que inunda de brilho uma noite perdida.

Um estado de coisas tão puras que movem uma vida.

E um verde profundo no olhar a me endoidecer...

Quisera viesse do mar, e não de você.

Porque seu coração é uma ilha a centenas de milhas..."

(Djavan, aos 32, em 1981, ano de lançamento do álbum "Seduzir".

 

“... Luz do sol
Que a folha traga e traduz 

Em verde novo em folha, 
Em graça, em vida, em força, em luz.

Céu azul que vem
Até onde os pés tocam a terra,
E a terra inspira e exala seus azuis...”

(Caetano Veloso, aos 40, em 1982, ano de lançamento do álbum “Luz do Sol”).

 

Zeca Baleiro discordou. Não poderia ser diferente, pensei. A classe é meio desunida, mas nem tanto. Porém não ofereceu dados que me fizessem mudar de opinião. Nos reencontraríamos mais adiante, num show que fez em Brasília, mas não voltamos ao assunto.

 

Pouco antes de conhecê-lo, eu havia assistido ao documentário Vinícius, bela reconstituição da vida e da trajetória artística do diplomata, poeta e letrista Vinícius de Moraes, com depoimentos de alguns amigos dele, como: Tom Jobim, Chico Buarque, Francis Hime, Carlos Lyra e Ferreira Gullar. 

 

Em certo trecho, Chico recorda que, já próximo do desembarque, convidaram o Poetinha para mais uma noitada nos bares de costume. Ele recusou sob o insólito argumento de que iria assistir Baretta, um seriado policial norte-americano dos anos 1970 protagonizado por um detetive trapalhão que tinha um caso de amor com uma cacatua. Sinal de que Vinicius já não pensava em obras arrebatadoras e inesquecíveis (faleceria em 1980, aos 66 anos).

 

Domingo passado, contei essa história a um amigo, que me deixou preocupado com suas justificativas: “Tem a ver com a motivação. Quando jovens, temos muitos sonhos, muitos objetivos, muitas lutas a serem travadas e, o principal, amores em curso. Com o tempo, as emoções se acalmam, a alma sossega e a produção intelectual diminui. É substituída pela cautela, pela paz interior que antecede a morte...” 

 

Contei a outro, que foi menos fatalista, mas cruel: “Veja o caso de Roberto e Erasmo Carlos: as canções do último quarto de vida não chegam aos pés das antigas. Caetano entrou numa fase de experimentalismo com letras que parecem aqueles quadros abstratos que só o autor entende. Alceu vive do passado. Milton, nem se fala. Fagner ficou bobo e de mal com a vida. O Chico ainda faz algo bom, mas nada inesquecível...” – queixou-se.

 

Quase convencido de que sempre estive certo em minha tese de mesa de boteco, somente agora me vieram à cabeça Cartola e “As Rosas Não Falam”.

 

Conta-se que Dona Zica, sua esposa, ganhou algumas mudas de rosas e resolveu plantá-las no jardim. Dias depois, ao abrir a porta bem cedinho, ficou em êxtase com a quantidade de flores que desabrocharam. Chamou então o marido e quis saber:

– Cartola, por que nasceu tanta rosa assim?

– Não sei, Zica. As rosas não falam… – ele respondeu, sorrindo. 

 

E ficou mastigando a frase, como se fosse um palito. Quando faltavam três dias para completar 65 anos, nasceu a “criança”. Cartola, que faleceu em 1980, aos 73 anos, dizia que a canção havia sido presente de Deus. 

 

Sobre a obra-prima, aliás, Paulinho da Viola conta que, em 1973, quando trabalhava na TV Cultura, em São Paulo, num programa que apresentava pessoas ligadas a escolas de samba, recebeu a visita de Cartola, que lhe pediu para mostrar uma de suas composições. E comoveu-se quando ouviu, pela primeira vez, a inesquecível declaração de amor de um poeta popular sessentão:


“... Queixo-me às rosas...
Que bobagem! As rosas não falam.
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti...”

 

Da próxima vez que encontrar Zeca Baleiro – difícil, mas não é impossível –, prometo que direi que estava enganado. Ele tinha razão. 

32 comentários:

  1. Ademar Rafael Ferreira24 de maio de 2023 às 05:24

    Como diria um delegado da minha terra "Os dois têm razão". Hayton e Zeca. A seletividade natural cessa o quantitativo, mas, fonte natural sempre produz água pura, exceto quando sofre influência externa. Viva a vida com ócio e produção de obras primas.

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  2. Bom texto. Gosto de textos que nos levam a refletir.
    Creio que a arte tem muito a ver com sensações e sentimentos. É preciso um pouco da inconsequência da juventude para se permitir sentir mais. Mas não devemos generalizar, como demonstrou o nosso Cartola.
    Vou me atrever a levantar outra hipótese: essa situação de calmaria criativa parece ocorrer mais com compositores musicais e menos com a literatura e a pesquisa científica. Será porque a escrita literária seja mais introspectiva e a pesquisa exija mais paciência e concentração? Eu não saberia dizer. Por exemplo próprio, digo que a maturidade me trouxe uma tranquilidade para me permitir mais reflexão e contemplação e, imagino que aconteça tambem com outras pessoas.
    Agora me deu um nó na cabeça. A música é também poesia. Pessoas maduras e criativas teriam mais experiências, sabedoria, referências e tranquilidade para se dedicarem a escreverem mais letras musicáveis e por que não acontece? Haveria o dedinho do mercado promovendo a arte mais palatável ao consumo fast food? Talvez obras maravilhosas compostas por sessentões desconhecidos não atendam à demanda da atual juventude ou, quem sabe, um dia talvez vejamos trechos de textos primorosos estrondosos em baladas sertanejas.
    Como sou uma sessentona, não saberia dizer se a galera mais jovem está muito preocupada com a riqueza literária que embala o open bar.

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  3. Esses dias encontrei no Facebook um amigo do qual eu não tinha notícias há mais de 40 anos. Fiquei surpreso com o conteúdo que ele ainda produz aos 60 anos, cheio de poesia e esperança, como se fora ainda o adolescente letrista de músicas para festivais que conheci. Para mim, faz muito mais sentido a dedicação do poetinha ao Baretta do que um comedor de paçoca como Caetano ainda querer dizer o que é o amor e onde vai dar. Dedé Dwight

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  4. Bela crônica, os sonhos, as paixões , a busca pela liberdade, acontecem na flor da idade, será por isso que essas inspirações foram transformadas em músicas e são melhores, acho que sim , poucas aconteceram mais tarde, mas quando acontecem , são valiosas, como “ as rosas não falam…,”

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  5. Prezado Hayton, suas crônicas desmentem sua tese.
    Vejo um pouco de razão em todas estas opiniões, mas nenhuma me parece absoluta.
    Fico pensando o quanto precisamos de motivações novas que nos tirem do conforto. Preciso me incomodar mais com isso.

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  6. O próprio autor destas belas crônicas só resolveu nos beneficiar do seu talento após completados os 60 anos kkkk realmente Hayton, qndo e se encontrar novamente Zeca Baleiro, pode falar de cabeça erguida que vc estava errado.
    Fabrício Di Pace

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  7. Muito bom, mas tendo a discordar.
    Minha tese é de que quem não produziu nada relevante até os quarenta, cinquenta anos ainda vai criar alguma coisa (mas não aposto!).
    Vamos aguardar!

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  8. No mundo da música sou levado a concordar com sua tese. Mas, como diz o conhecido dito popular "Toda regra tem sua exceção (ou exceções)".

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  9. Meu querido amigo,
    Voto com o relator, para dizer que Cartola era uma exceção, assim como Cora Coralina, que editou seu primeiro livro de poesias aos 76 anos, e o próprio Vinicius, que com mais de 60 anos se reinventou na parceria com Toquinho, o que rendeu uma série de pérolas musicais, e uma obra-prima, a música Aquarela.
    O segredo é buscar motivação, seja dentro de vc mesmo, seja em algo que o inspire. No caso de Vinicius, a juventude e o entusiasmo do parceiro, com a Cora, as lutas que travou contra o preconceito, e no de Cartola, o imenso amor que dedicava à Dona Zica, esse sim, fonte eterna das obras-primas dessa legião de poetas de todas as partes do mundo.
    Robertão

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  10. Ah! Bom!!! Quando eu já ia pensando em dizer que você estava flertando com o etarismo você se redimiu no final!! Ainda bem!!! Diniz.

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  11. A poesia enebria.
    Quem constroi um poema, texto ou canção,
    uma imagem, seja quadro ou fotografia
    Uma peça em tri-dimensão
    Uma peça num palco de teatro
    Um filme em sala de exibição.
    A esses, a poesia enebria primeiro
    Ao seu público ela, aí, se oferece,
    Multiplicando-se quanto mais é consumida.
    Aos que se embebedam de inicio
    Chega um tempo em que basta
    Flutuar sob o efeito de seu vício.
    Deleitar-se na beleza de sua obra
    E deixar-se à fluência de seu ócio.

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  12. Acho que um não está errado mas o outro também não está certo. Mesmo jovens criamos coisas que não são lá tão apreciáveis. Quando já lapidados pela idade, muito fácil a gente se acomodar. O pensamento continua voando, a chama do encanto precisa ser atiçada. Mas tenho certeza que, pela manhã, para muitos o sol nasce com força.

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  13. Amigo Hayton,
    Cartola e outros poucos, ultrapassaram os 60 com inspirações que se eternizaram!!
    Como Músico, comentamos em rodas de conversas sobre esses sinais. O que acontece com a ausência de inspiração nessa faixa etária?
    Mas onde estão as novas gerações? Muito pouco consigo apurar no ouvido, algo que mereça guardar na memória!!
    Por que será?🎼

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  14. Quem "matou a pau", a charada, foram Fabrício e Otaviano em seus comentários aí acima.
    Amante do vinho, posso afirmar, de "cátedra", não ser verdadeira a afirmação de que ele, "quanto mais velho, melhor". Não é verdade, ele também perece.
    Então, concordo um pouco com sua tese, são poucos, raros até, os que conseguem manter a produção intelectual na plenitude, quando atingem a última "puberdade".
    Exatamente por isso minha solidariedade a Fabrício e Otaviano, a quem não tenho o prazer de conhecer, mas de quem já me declaro admirador.
    Realmente, você nem é minoria, acho que é exceção mesmo, já que não para de brilhar cada vez mais, está sempre nos surpreendendo, por mais que esperemos uma produção sempre entusiasmante.
    Em razão disso, acho que este espaço aqui está pequeno pra você, ouse mais. Qualquer produtor da área de intelectos, com certeza vai querer difundir suas brilhantes produções.
    Gostaria até de saber a opinião sobre isto, de outros leitores seus que comentam aqui.
    Vá em frente.

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    1. Concordo inteiramente. Inclusive já recebi comentários de amigos com quem compartilho textos de Hayton nesse sentido.

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  15. Hayton, mais uma excelente reflexão. Que sai do meio artístico e envereda pelas vidas de reles e comuns mortais. Faz todo o sentido, perceba. Tem muito a ver, penso, com as fases de tudo que está no mundo: um dia nasce, depois cresce e, inexorávelmente se vai. Impossível fugir desse corolário máximo. Confesso, ainda, que gostei deveras da explicação ou definição, não sei ao certo, do seu primeiro amigo a manifestar-se. Muito bem estruturada. Como Cartola, deve ter havido alguns. Que já na maturidade deram luz a coisas magníficas. Mas são as exceções. Sugiro que você não ceda. E, no próximo colóquio com Balero, você ratifique sua opinião alicerçada que é pelas evidências. De novo, faz todo sentido.
    Roberto Rodrigues

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  16. Hayton, já fiquei aqui fazendo buscas para para encontrar outros nomes que se juntassem ao inesquecível Cartola. Não encontrei nada parecido com a magnitude daquela canção. Encontrei, porém, sessentões, setentões e oitentões com o entusiasmo e a energia de meninos: Tom Zé, Caetano, Ney Matogrosso, Paul McCartney… Estão deslumbrantes. E concordo com as afirmações de vários de seus leitores aqui: suas produções literárias são tão bem elaboradas quanto prazerosas de se ler. Acho que já seriam assim se você as tivesse escrito antes dos quarenta, porque lá atrás sua fama de escriba exigente e primoroso era fato conhecido e comentado no ambiente corporativo do Banco do Brasil, de norte a sul.

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  17. Devo-lhe confessar que ao ler seu texto, acabei por me deter nessas tão belas poesias transmutadas em canção. Cada uma mais genial que a outra e assim me perdi nas lembranças que elas me causaram.

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  18. Creio que é como diz o livro do Eclesiastes, "Há um tempo..." Estes bloqueios criativos ocorrem também en Compositores jovens. Veja o caso do Tiago York. Mas, após belas produções, cantadas de decantadas, creio que os poetas se dão direito de momentos de outono. Talvez o que ocorre é que, como diz Camões, tudo no tempo é mudança, assumindo a coisa mudada novas qualidades. Então a produção vai ficando sendo revisitada, vai se tendo a impressão de que tudo já fora dito, e a pessoa se permitir contemplar de outras prumadas o seu papel e jornada. Talvez o compositor da partitura do tempo acalme o vulcões expressos em belos arranjos de letrinhas. E no lugar deles, um sussurrar de sons do silêncio passando a fazer mais sentindo.

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  19. Estou com a tese do Hayton, mas como toda regra tem exceções, fica a reflexão . Caprichada crônica.

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  20. Já defendi esse argumento. Chico Buarque e tantos outros já foram mais criativos na juventude para escrever poesias musicais. Há exceções, lógico, mas raras.

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  21. No mundo das artes, a inovação, a genialidade, a novidade, a estupefação, como atributos da alma do artista em todas as fases de sua vida, parece-me exigir um tipo de sinapse em constante ebulição. Alinho-me, em grande parte, com a ponderação do amigo domingueiro, seja porque interesses outros passam a existir, seja por conta das sinapses que entram em outra "vibe". Nas atividades que demandam o gênio criativo, o tempo talvez seja um carrasco e "cada ser em si carrega [ou não!] o dom de ser capaz", conhecendo as manhas e as manhãs! Diz-se que para toda regra, há exceção. Sim! Sempre haverá "outliers". Porém, por imperativo estatístico, procuro identificar se estou lidando com "outliers" ou se realmente é o caso de uma "distribuição normal". Para tanto, é necessária uma amostra relevante. No caso em tela, careço de amostra estatística que possa confirmar a discordância (empírica?) do Zeca. Finalmente, meu registro de mais uma perda irreparável para a música, com a partida da rainha do rock internacional, a guerreira Tina Turner.

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  22. Comentar, depois de muitos e bons comentários, é bom, porque se percebe que cada tem seu jeito próprio de ver as coisas...
    Toda crônica tem esse objetivo, ou seja, permitir que se acrescentem novos elementos que são levados à degustação...

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  23. Esse gajo já conta uns 60 e produz muitas reflexões. Mire-se no seu exemplo!...rsrsrs

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  24. AdilsonCordeiroDidi, seu discípulo

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  25. Mais um belo texto, excelente reflexão para os caminhos e fases da vida. Fazemos o que quisermos dela.

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  26. Ah, as rosas não falam. Que primor de um sessentão. Adorei.

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  27. Volto ao prefeito. Por ter motivação é um grande compositor, e o que ele certamente diz no ouvido da amada de 16 anos, talvez, impublicáveis.

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  28. Ótimo texto sobre medalhões da MPB. Muito bom saber de certos detalhes sobre momentos de suas vidas. "As rosas não falam" virou uma espécie de hino.

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  29. Cada vez que escuro isso paralisou.

    “... Se nós, nas travessuras das noites eternas

    Já confundimos tanto as nossas pernas,

    Diz: com que pernas eu devo seguir,

    Se entornaste a nossa sorte pelo chão,

    Se na bagunça do teu coração

    Meu sangue errou de veia e se perdeu?”

    (Chico Buarque, aos 36, em 1980, ano de lançamento do álbum “Vida”)

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