Lembro-me de um antigo cartum, acho que publicado em O Pasquim, onde um pintor espanhol com olhos e sorriso de puro prazer se via diante de um imenso jardim com tela sobre cavalete, tintas e pincéis. Na legenda, a dimensão do desafio: “Gosto muito deste instante onde tudo ainda é possível!”.
Ilustração: Umor |
Para quem não sabe, o cartum era muito utilizado por jornais e revistas, no século passado, para sintetizar com alguns traços um ponto de vista, estimulando a reflexão e provocando riso sobre um tema qualquer da atualidade. É parecido com a charge, mas não retrata personagens conhecidos nem é ácido, irônico, com o comportamento humano e seus deslizes.
São raros os momentos em que nos deparamos, tal como o pintor, com essa situação onde é possível construir o que queremos, mesmo sem trazer à cena nossas cicatrizes ou feridas abertas. Afirmar que “tudo é possível”, na maioria das vezes, não passa de profissão de fé.
Há quem goste de frases feitas do tipo “viva o presente, pois o futuro ainda não existe e o passado já passou”. Como se pudesse matar a sede de anteontem com uma gota d’água. Nem com gatos funciona assim, dado que têm medo de água morna por conta de algum banho quente ou gelado que vivenciaram.
É difícil ater-se somente ao que se vê ou faz em determinado momento, sem recorrer à memória. É natural o sobrevoo sobre o passado para adoçar ou salgar narrativas, transformando fatos históricos naquilo que poderia ter acontecido e não aconteceu.
Não caio no lugar-comum de dizer que uma mentira bem contada tem o condão de se tornar verdade. Isso é outra coisa, típica de gente falsa, sem caráter. Não falo da mentira cruel, vil, que prejudica aos outros. Aceito apenas aquela que arredonda as quinas de um caso banal temperando-o com um pouco de humor, drama e pimenta, arte na qual Ariano Suassuna “é” mestre.
Também não quero que acreditem totalmente naquilo que acabo de escrever e tomem como sentenças definitivas. Vira e mexe discordo até de mim mesmo porque ser intransigente com o que se pensa é coisa de doido. Noutras palavras, minha versão matutina sobre algo não bate necessariamente com a vespertina e não vejo nisso incoerência alguma. É caminhando que os sapatos e os calos se entendem.
Vejam vocês como é a vida! Um dia me contaram que eu nasci no país do futuro – tropical, abençoado e bonito por natureza! – e que esse futuro não tardaria a chegar. Se chegou, ninguém sabe, ninguém viu. Reservo-me o direito, portanto, de escarafunchar as possíveis causas disso e tentar arrancar o mal pela raiz.
Retrocedo então a bobina do filme (ok, isso não existe mais!) até 26 de janeiro de 1500, e o que vejo? O navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzon desembarcando na enseada de Suape, Cabo de Santo Agostinho, litoral sul pernambucano. Três meses antes de Pedro Álvares Cabral aportar no litoral sul baiano.
Noto que a Espanha não reivindica para si a descoberta de Pindorama, registrada por Pinzon e por outros cronistas historiadores como Pietro Martire d’Ánghiera. A contragosto, imagino, respeitará o Tratado de Tordesilhas, assinado com Portugal em 1494, que dividia entre as duas Coroas as terras “descobertas e por descobrir” fora da Europa.
Algo me diz que será melhor para todos, colonizadores e nativos colonizáveis, se, como citado no início do texto, diante da fartura de recursos disponíveis e em nome da Coroa espanhola, Pinzon declarar, em alto e bom som: “Gosto muito deste instante onde tudo ainda é possível!”.
Quando decido puxar conversa sobre o assunto com Pinzon e o cacique tupi anfitrião, depois de uma caneca de cauim com ensopado de xaréu, a luz apaga – vem de longe o risco de apagões! –, o filme embaça e a noite esfria. Pegamos no sono em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo.
Ao acordar, cinco séculos depois, percebo que os espanhóis foram os primeiros europeus a se estabelecerem no território dos atuais Estados Unidos, em 1492. A diferença de oito anos para Pindorama não condiz com a disparidade civilizatória entre as duas nações, nem com um exército de desesperados que, hoje, procura dar cores dignas à vida ainda que longe daqui.
Dizem que escrever é pintar com palavras. O que faço não é pintura. Só esboço de minhas fantasias, feito um cartum, para provocar a reflexão de vocês diante da paisagem que se apresenta a nossas retinas fatigadas de tanta mentira, tanta força bruta.
E se me disserem "viva o presente, pois o futuro ainda não existe e o passado, já passou", eu vos direi, no entanto, plagiando Belchior, que enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer "não” a tudo isso que está aí, digamos. E "sim" à luta que segue, ao sentimento que não pode parar.