Nem Sivuca, Dominguinhos e Gonzagão, com seus contatos celestiais, conseguiram evitar o aborto do que poderia ter sido mais uma estrela a brilhar na constelação da música instrumental brasileira. Pena!
Nezin dos Anjos andava exultante. Depois de mais de três décadas de trabalho em um grande banco, havia aposentado e iria realizar o sonho de sua vida: aprender a tocar sanfona para poder cantar o melhor da discografia de seu ídolo Luiz Gonzaga, o Rei do Baião.
Nezin disse que andava se sentindo leve, outra pessoa. Falou do bem que lhe fizera a visita aos familiares em sua terra natal e da expectativa de poder, finalmente, realizar o antigo desejo de aprender a tocar sanfona. Queria mostrar pros amigos que existem sutis diferenças entre baião, forró pé-de-serra, xaxado e xote.
Só não imaginava o que alguns ex-colegas de trabalho (Pacheco, Bené e Tonha) seriam capazes de fazer com a informação ingenuamente fornecida sobre sua meta para os próximos meses.
Na tarde daquele mesmo dia, devidamente pautado, Pacheco ligaria para Nezin (de telefone fixo para fixo, para escapar do identificador de chamadas), modificando a voz ao puxar pelo sotaque carioca para não ser reconhecido:
– Mermão, na moral, você não vê que essa parada tá enchendo o saco dos vizinhos aqui no prédio?! Todo mundo tá ficando meio bolado.
– Me desculpe... Tô começando a tocar hoje. É meu primeiro dia...
– Caraca, você chama isso de tocar? Procure uma escola, pô!
– Desculpe...
Outra ligação não demorou meia hora, agora do gremista Bené, que também disfarçou a voz:
– Mas bah, fiquei sabendo pelo carioca do 305 que tu andas tocando gaita aqui no prédio. Isso é trilegal, tchê!
– Mas ainda estou aprendendo...
– Que nada, tchê! Deixe de modéstia! Que tal no próximo sábado irmos pro salão lá na cobertura, de bombacha, chapéu e lenço no pescoço, assar uma costela e tocar alguma coisa de Borguettinho?
– Mas eu ainda não sei tocar... Nem acabei a primeira lição...
De noite, Nezin procurou Cabeção, que fez “cara” de surpresa, claro! Preocupado com o rumo dos acontecimentos, contou ao amigo o que se passava:
– Ainda bem que joguei duro com aquele carioca do 505! Fui logo dizendo pra ele: aqui na minha casa, mando eu. Não vou parar de tocar de jeito nenhum!
– Sei... sei...
– E amanhã, logo cedo, vou dizer pro gaúcho: nada de churrasco no sábado! Só quando estiver me sentindo à vontade com a sanfona... O que você acha?
– Certíssimo, Nezin, bote para quebrar com essa gente! Onde já se viu querer se meter na vida alheia! Acha que de Minas pra cima só tem besta!
Mais confiante, Nezin retomou os estudos no dia seguinte, logo após o café da manhã. Só parou pra descansar quando Lacinha serviu o almoço. Mas antes da primeira garfada, o telefone tocou novamente: era Tonha, mineirinha muito ligada às práticas religiosas, também do “grupo teatral”, com sua fala caipira.
– Ó, moço, tô sabendo que meu marido ligou procê ontem. Doidimais! Ele é folgado como todo carioca, mas tá ficando pior depois de velho!
– Não tiro a razão dele, minha senhora. Eu ainda não toco direito. Deve tá muito chato me ouvir nesse começo...
– Procevê, ele não gosta de música e saiu de casa dizendo que vai reclamar no síndico... Ai que vergonha que tô dele... Podeixá que resolvo isso assim que voltar da igreja!
Nas 48 horas seguintes aconteceram mais uns dois ou três telefonemas dos envolvidos, cada qual torrando ainda mais a paciência do esforçado aprendiz, que a esta altura era o retrato do desencanto com o universo musical.
Fulo da vida, Nezin chamou Lacinha e os dois filhos na sala de jantar, tomou o Rivotril do dia, abraçou o instrumento e decretou em alto e bom tom:
– Se for preciso, a gente muda daqui! Eu vendo esta bosta deste apartamento mas não vendo minha safona!
Só no terceiro dia, ao tomar conhecimento da "performance do grupo teatral”, Vera, mulher de Cabeção, cobrou do “diretor da peça” que acabasse com aquela molecagem, poupando o coração do velho amigo.
Cabeção relutou. Queria que a “peça em cartaz" pelo menos por uma semana, inclusive com a introdução de novos personagens, mas acatou o pedido e ligou para Nezin:
– ... É tudo brincadeira da turma, sem maldade. Eu, Pacheco, Bené e Tonha... Aconteceu assim, assim... Mas como Vera gosta muito de você, pediu pra gente parar.
Nezin, que estudava bem baixinho para não incomodar a vizinhança, emudeceu com o que ouviu e desligou o telefone, antes de explodir na gargalhada. Em seguida, largou a sanfona no sofá, foi ao banheiro, sentou sobre a tampa do vaso e, aliviado, gozou da imagem que viu no espelho:
– Tu és um nezin mesmo, hein?!
Logo depois lembrou que precisava ligar com urgência pro Correio Braziliense e pedir pra cancelar o anúncio de venda do apartamento que mandara publicar. Balançou a cabeça conformado quando abriu uma cerveja pra relaxar, ligou o som e a primeira canção que escutou foi “Amigo é pra essas coisas”, interpretada pelo MPB-4.
Lacinha, que havia saído para comprar umas pamonhas pro lanche do final da tarde, mal abriu a porta de casa e o marido contou a novidade:
– Mulher! Que Nossa Senhora me defenda dos amigos, que dos inimigos me defendo eu...
Há quem diga que Nezin empacou de um jeito que não mais quer saber da sanfona, embora jure de pés juntos que "não dá, não vende nem troca". Os amigos, velhos parceiros de copo e de cruz, não acreditam nisso!
Que ninguém se surpreenda se qualquer dia desses ele deixar a moita onde ensaia escondido e brilhe como um dia cintilaram Sivuca, Dominguinhos, Gonzagão... e até mesmo a estrela solitária do Botafogo.