Terto negou até seus últimos dias que teria visto de perto o assassinato a tiros de um colega de trabalho em pleno expediente, sem esboçar qualquer reação, prosseguindo em suas tarefas de rotina como se nada tivesse acontecido.
Dizia que não foi bem assim. Não reagiu porque tomou um susto enorme quando deu de cara com o homicida ensandecido, arma na mão, ameaçando todo o mundo aos gritos, e temeu ser a próxima vítima.
Isso aconteceu na metade do século passado, na agência do Banco do Brasil em União dos Palmares, a 70 km da capital alagoana. Naquela época, alguns conflitos do mundo corporativo ainda eram resolvidos à bala ou na ponta da peixeira.
Isso aconteceu na metade do século passado, na agência do Banco do Brasil em União dos Palmares, a 70 km da capital alagoana. Naquela época, alguns conflitos do mundo corporativo ainda eram resolvidos à bala ou na ponta da peixeira.
A lenda criada em torno do assunto já dura mais de meio século e tudo não passou de conversa fiada de quem, ao vê-lo sempre concentrado naquilo que fazia, espalhou que continuara datilografando partidas contábeis, alheio aos disparos à queima-roupa e ao corpo ali estendido no chão.
Antonio Tertulino Vieira, simplesmente Tonho ou Terto (no trabalho), sempre foi muito generoso e modesto desde criança, em Quixeramobim, Sertão cearense. Tanto que o pai abria mão de sua ajuda no balcão do armazém da família porque várias vezes ele dispensara parte do pagamento de quixeramobinenses mais necessitados que não dispunham de todo o dinheiro para a compra.
Acabou ouvindo o conselho materno e ingressou no Seminário Diocesano de Quixadá, lá próximo de casa, onde chegou a usar batina e quase foi ordenado padre. Ainda bem que percebeu a tempo que sua carne era fraca e destoava do sacerdócio exigido pela Igreja Católica. Resolveu então prestar concurso para o Banco do Brasil, sendo aprovado com louvor.

Pouco depois conheceria Madalena Veras, que havia rompido seu sexto noivado. Com ele deu tudo certo. Não se sabe se a vida celibatária precipitou os acontecimentos, mas é fato que rapidamente casaram e em oito anos formavam uma família com mais três filhos — João, Fátima e Magdala, a caçula, minha futura mulher.

O carinho da família, a alimentação equilibrada, a missa nas tardes de sábado, as gargalhadas com Os Trapalhões nas noites de domingo, a prosa com cães e gatos da vizinhança e o lenço impecavelmente branco para assoar o nariz ou enxugar o suor do rosto, eram bastantes para deixá-lo de bem e em paz com a vida.
Depois que se aposentou, alguns amigos juravam que não sobreviveria muito tempo, habituado que estava à rotina de trabalho. Contrariando a todos, já vinha costurando em silêncio projeto arrojado: dar vida ao solo arenoso dos arredores da casa na Rua Goiás, 421, no Farol, a partir da reciclagem do lixo orgânico ali produzido desde 1970.

Netos agora adultos reconhecem que se tratava de um legítimo avô-raiz. Longe da vigilância dos olhos da avó, consentia pequenos delitos como alimentar animais, trepar na goiabeira, tomar banho na chuva ou acender fogueiras quando chegavam as festas juninas.
Aos 86 anos, faleceu enquanto dormia numa manhã de agosto de 2005, três décadas depois de aposentado. No seu sepultamento, tinha o rosto suave de quem fez quase tudo o que gostaria de ter feito na vida. Era um passarinho voando no rumo do céu.
Se visse a cena como eu, o poeta Manuel Bandeira (1886 — 1968) assim diria:
Terto leve,
Terto sempre de bom humor.
Imagino Terto entrando no céu:
— Licença, meu santo!
E São Pedro bonachão:
— Entra, Tertinho. Você não precisa pedir licença.
ADOROOOOOOOO, suas crônicas , principalmente qdo retrata a família!!!!
ResponderExcluirFantástico!!!
Parabéns!!!! crônicas maravilhosas!!!!
ResponderExcluirTuas histórias de vida, narradas dessa forma, são muito bacanas de ler, Hayton. Show!
ResponderExcluirMagdala. Agora dei uma volta ao passado. E lembrei nitidamente Sr.Antonio. um ser de luz. Puro inocente. Sempre tranquilo.Foi ser mais um anjinho no céu.. Saudades daqueles tempos. Bjs
ExcluirMagdala. Essa unknown. Sou eu.. Ângela maciel. É q não sei muito net. E esse nome aí. Não sei como apareceu. Bjs
ExcluirOlhos cheios d’água ao lembrar do vô.
ResponderExcluirEu sempre achei que ele era de outro planeta. Pela gratidão, transformava tudo o que tinha em suficiente.
Obrigado por reviver a memória.
E quem lhe falou que ele era deste planeta, meu filho? O barro de que ele era feito não existe na Terra. Fomos felizes em tê-lo ao nosso lado quando andou por aqui...
ExcluirCada palavra uma foto, cada frase um filme assim são suas crônicas.
ResponderExcluirPois é, Ademar. Uma boa imagem dispensa até legenda. Fala por si só.
ExcluirLiteralmente Deus escreve certo por linhas tortas...
ResponderExcluirMuito relembrar as historias do meu avô, ele sempre foi muito amado!!
ResponderExcluirQue história incrível, errar o estado onde deveria tomar posse, e ali ficar e encontrar seu grande amor, construir uma família e viver uma vida.
ResponderExcluirDeve ser por isso, Mário, que dizem que "enquanto os homens planejam, Deus dá risadas".
ExcluirDever ser, mesmo!!
ExcluirMais um texto impecável! Quem conheceu o protagonista, sabe que se trata de um anjo que caiu do céu, razão pela qual não precisou se identificar quando de seu retorno à casa do PAI. Parabéns!
ResponderExcluirAgostinho Torres.
lindo texto. Meu avô Paulo, seu Paneco, era um seu Terto na visa. Sapateiro de primeira, adorado pelos netos, respeitado em toda cidade de Torres RS, não havia quem nào gostasse dele. A única coisa que talvez se pudesse falar dele era que era colorado demais, tanto que torceu contra o Brasil em 70 porque o lateral era Everaldo, então jogador do Grêmio kkk.
ResponderExcluirSó fazê-lo lembrar de Seu Paneco com tanto carinho já valeu a pena ter publicado a crônica, meu amigo. Essas figuras precisam estar mais presentes em nossa vida para que a esperança no ser humano não se perca entre nós.
ExcluirDelicioso como o texto começa em close numa cena de BIP da vida bancária, para mergulhar numa história de vida tão fascinante. Quanta sabedoria neste homem.
ResponderExcluirSábio mesmo, Dedé. Nunca deixou virar adulto a criança que havia dentro dele. Por isso tanta saudade por parte dos netos.
ExcluirProvidência divina.
ResponderExcluirTem dedo de Deus em todo canto.
Imagina se ele não tivesse largado a batina e pego a condução errada, caindo de paraquedas na vida de Dona Madalena?
Seu Terto,
O vovô bonzinho dos meus primos, que sempre cedia a casa dele no Natal para papai Noel aparecer com nossos presentes. É assim que lembro dele.
Deve ser por isso que o Tio Nena comentou que ele "era um anjo que caiu do céu". Era o vovô que toda criança pedia a Deus.
ExcluirHayton,Você produz um estilo de leitura,que eu gosto de ler.Que maravilha.Agora,com o tranquilo Tertuliano, você excedeu.Colega exemplar.Continúe com o mesmo padrão.Como demonstrado nas duas crónicas,Dona Canô e Pelé,você sempre pensou grande.Com Dona Canô elevando o nome do BB,Qquando necessário.Com Pelé,relembrando nossa glória esportiva.Com o rei então,foi demais,Salete é fã número 1 do Roberto carlos,já leu a crônica várias vezes e não se cansa de olhar a sua foto com êle e a Magdala.Quando sairá a ediçao do "livro"?Você é um escritor.Um forte abraço caro amigo.
ResponderExcluirTexto e família especiais! Parabéns!
ResponderExcluirShow de bola. Eita cronista "retado", como diria os baianos.
ResponderExcluirMaravilha! Gostei demais. Tem passagens que não conhecia!!!
ResponderExcluirHayton, você tem razão:Segundo Mandamento,na prática.
ResponderExcluirTio Tonho grande homem ! Tranquilo e sábio deixou um lindo legado para toda família
ResponderExcluirA busca incessante por cargos ou poder nem sempre são relevantes pra alguns, a felicidade é um estado de espírito muito pessoal e muitas vezes uma vida simples e próxima dos seus são mais que suficientes pra valer a vida. Sr Tertulino deve ter acertado em suas escolhas.
ResponderExcluirNo final de tudo, André, penso que as escolhas foram acertadas. Se não ele ainda estaria aqui entre nós espalhando sua generosidade, seu desapego às coisas materiais, seu amor ao próximo acima de todas as coisas.
ExcluirMais um texto saboroso, Hayton. É a última vez que essa brincadeira merece virar um livro. Bancário organizado como é, você já deve estar salvando os arquivos no formato... Errei?
ResponderExcluirVocê está certo. Depois que escrever umas 150 crônicas, escolherei 50 conectadas em um mesmo eixo temático e editarei um livro por minha conta e risco. Não mais que 100 exemplares para presentear alguns amigos especiais como você, que sustentam a muito tempo que eu poderia fazer isso. Fica bom assim?
ResponderExcluirFica ótimo, meu amigo!!!
ExcluirBela narrativa, agora com viés familiar. A cada crônica vamos conhecendo mais as boas histórias do Hayton gestor, família, companheiro, colega... e que venham muitas outras referências ������������
ResponderExcluirÉ só juntar memória, imaginação e pesquisa junto a familiares que dá nisso, Gilberto. Aí bastam um laptop e uma rede de algodão numa varanda que o olho dágua começa a formar um riacho. Se um dia vira rio, só Deus sabe...
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirBelo texto! Feliz do homem que tem um genro dessa qualidade!
ResponderExcluirAna Sofia, no tempo certo, que dará a chance de ter um genro dessa qualidade, pra falar com carinho de sua chegada ao céu.
ExcluirExcelente!
ResponderExcluirViver é uma arte, poucos tem a sabedoria de um Tertuliano.
Esqueci de registrar que Seu Terto costumava trocar "bom dia" por "boa tarde", e vice-versa, com uma frequência acima do normal, para desespero de Dona Madalena, que se apressava em dizer às pessoas que ele era um pouco distraído. O bom velhinho só fazia sorrir, nem aí para o que os outros pensavam.
ExcluirComentar sobre suas crônicas é um ato de satisfação, pois mergulhamos na história da vida familiar e vemos cenográfica mente todas as cenas discritas com zelo mirantânico.Parabens a meu irmão!
ResponderExcluirMaravilha de crônica! Coisa boa de se lê! Parabéns, primo!
ResponderExcluirHayton despois de tanto sucesso no Bancao. Você está produzindo literatura ótima e gostosa de se ler. Parabens meu querido amigo. Precisa reunir seus escritos e editar em livro.
ResponderExcluirZ
Depois kkk.Forte abraço.
ResponderExcluirAlcione Teixeira
ResponderExcluirque bom começar o dia com essas lembranças de Tio Tonho. lembro se muita coisa (do lenço branco, jeito calmo e sorridente, o jardim quando eu ia passar férias, os cacados ...) gratidao por guardar e compartilhar suas memórias brilhantes .
ResponderExcluirLinda história, Hayton! Uma vida simples, por opção, retratada com carinho e arte.
ResponderExcluirBelo texto, cuja leitura me fez lembrar do meu avô e padrinho. Batizado como Amarílio Tomaz Gomes, todos o chamavam pela alcunha de “Pai Bondom”, por sua vontade desapego que sempre demonstrou em ajudar as pessoas. Assim como seu Terto, também não pertencia a este Planeta Terra.
ResponderExcluirLembro-me muito bem do Terto em suas visitas a União. Sempre tranquilo e com um sorriso permanente no rosto.
ResponderExcluirParabéns! Suas histórias com foco na família são escritas de forma corajosa e sincera, por isso toca profundamente o coração de seus leitores.
Um abraço do Orlando
Crônicas maravilhosas e cheias de lembranças que nos trazem grandes emoções. Abraços
ResponderExcluirLer teus escritos é tocar no melhor do humano, é degustar emoções sadias, é visitar tuas memória como se nelas habitássenos. Terto aprendeu, desde tenra idade, o que de fato tem valor na vida. Muitos Não-Terto se empanturram de poder, de consumo e dão a vida pelo acúmulo de capital. Terto não. Terto aprendeu a ser o melhor para o mundo. E não o melhor do mundo. Mais Tertos por favor.
ResponderExcluirDisse tudo, Ricardo: mais Tertos em nossas vidas, por favor!
ExcluirQue história mais linda e emocionante Hayton, me sinto honrado em ser o atual proprietário dessa casa, vou continuar o legado deixado pelo seu sogro.
ResponderExcluirQue maravilha, Luiz Carlos! Onde estiver, Seu Terto seguramente está muito feliz com sua decisão de preservar o quintal e o jardim que tanto carinho dele recebeu.
ExcluirÉ. Meu Amigo Hayton se superando a cada crônica. Muito boa leitura.
ResponderExcluirGrande Hayton,
ResponderExcluirBelo Texto, história que retrata a vida, traz ensinamentos, muito sentimento.
PARABÉNS!
Tom
Magdala deve ter adorado esse texto, a princípio despretensioso que, aos poucos, vai se adensando e chega ao auge com um boas vindas do céu.
ResponderExcluirEnquanto Seu Terto limpava as gavetas de sua mesa de escriturário para se aposentar em agosto de 1975, eu corria atrás da documentação para tomar posse no BB em setembro daquele ano.
ResponderExcluirTeste
ResponderExcluirGostei muito desa história verídica. Relembrei direitinho D Madalena e seu Terto 👏👏
ResponderExcluirLinda crônica! Parabéns, Hayton.
ResponderExcluirExcelente crônica! Dá gosto de ler, e nos emociona! Como seria bom que existíssem mais TERTOS no mundo de hoje!
ResponderExcluirParabéns Hayton!👏👏👏
Quando cheguei em União dos Palmares em 1964, fazia parte de um grupo de mais de 20 novos funcionários nomeados para aquela agência. Cedo tomei conhecimento do assassinato havido naquela agência, com várias versões. Em 1974 fui transferido para a ag. centro do Banco do Brasil em Maceió, onde o sr. Tentou trabalhava. Era de pouca conversa. Passava pelos salões onde vários colegas trabalhavam, conduzindo papéis nas mãos. Calado. Circunspecto. Quase sem se deixar ver
ResponderExcluirUm sogro e avô desses, quem não gostaria de ter?
ResponderExcluirBeleza de crônica. Sobre família, simplicidade de seu Terto, jardim, quase campesina. Lembranças sempre boas que mexem com as lembranças da gente. Abraço.
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