— Por que será que ainda não existe remédio para acabar com um vírus que some até com água e sabão, mas que já provocou a morte de meio mundo de gente?
Regina é gente fina, disposta, curiosa e irreverente como ninguém. Teve seus dias de glória quando morava no bairro de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro, e participou como figurante de uma ponta de novela. Queria ser famosa, virar atriz ou bailarina de programas de tevê, mas não deu certo. Acabou voltando para Alagoas.
Nazareno, ex-professor de Educação Moral e Cívica — matéria que se tornou obrigatória no currículo escolar brasileiro no final dos anos 60, em substituição às disciplinas de Filosofia e Sociologia —, hoje conhecido como Seu Naza, viu no cargo de síndico do condomínio o bico ideal para complementar a renda familiar. Viúvo, ainda mantém dois filhos que se recusam a abrir mão da adolescência. O mais novo, inclusive, “rato de praia" que se vangloria de que "já pegou muitas" na área. Não se sabe exatamente a que ele se refere.
Achei que Seu Naza, autoritário e intolerante com os empregados mais humildes e subserviente com os moradores dos andares mais altos, fosse abreviar a conversa com algo assim: “E daí? Quer que eu faça o quê? Sou Nazareno mas não faço milagres, tá legal?!” Mas não. Surpreendeu inclusive ao porteiro. Prova de que existe pau que nasce e cresce torto mas se apruma antes de morrer. Ou finge para ser politicamente correto.
Próximo dali, enquanto aguardava encomenda feita à farmácia, prestei atenção quando ele começou a responder dizendo que o novo coronavírus é covarde, burro e injusto. Se não, o bicho não seria invisível nem agiria em bando, atacando os mais vulneráveis pelas costas sem lhes dar a mínima chance de defesa.
Para Seu Naza, em suas escolhas sobre quem infectar, o vírus deveria dar prioridade aos oportunistas que tentaram obter vantagens político-eleitorais com a pandemia da covid-19, influenciando seguidores fanáticos ao garantir que tudo não passava de uma virose ordinária, ou decretando a paralisação ampla, geral e irrestrita das cidades, de olho, claro, em verbas federais isentas de licitação pública.
Disse também que seria muito oportuno um olhar contagiante sobre quem agride jornalistas no trabalho ou quem tenta aplicar golpes nos autônomos e desempregados que se espremem em filas desumanas porque precisam do auxílio emergencial de 600 reais. Assim como sobre quem hostiliza enfermeiros na rua ou no ônibus, quem confisca carregamento de máscaras ou quem especula com o preço de equipamentos médicos escassos.
O vírus, para o síndico, ainda deveria reservar um abraço contaminador para quem pode ficar em casa e ser generoso e solidário com os mais frágeis, mas não é. Não se compadece com o sofrimento alheio. Ao contrário, gasta horas e horas a propagar mentira, ódio e pânico nas redes sociais, quando não está às voltas com as frivolidades de um consumismo desenfreado.
Ao perceber que eu continuava atento à conversa, Seu Naza empolgou-se e passou a filosofar, a dizer que se a natureza fosse sábia deveria expurgar inclusive aqueles que pregam “viva hoje; o passado passou e o futuro é incerto” ou “não deixe para amanhã o que pode fazer hoje”. Para ele, ninguém deveria ser egoísta e se contentar apenas com ”aqui e agora”, sem desejar resmas de amanhãs como folhas em branco onde as novas gerações possam redesenhar o mundo.
Confesso que fiquei perplexo ao ouvir esses argumentos saírem da boca de alguém que ora louva a Deus, ora venera torturadores cruéis como fontes de inspiração. Se bem que um amigo meu diz que “esse tipo de gente mente e desmente constantemente, impunemente”.
E seguiu em frente, a garantir que o novo coronavírus é miserável porque pega a todos no contrapé, sem distinção de gênero, idade, cor, classe social, crença política ou religiosa, e cozinha numa panela de pressão porções cavalares de ansiedade, medo e tédio.
Pior, ainda condena todo mundo à pena diária de assistir a milhares de mortes à míngua pelo mundo afora, sem o consolo do velório e sem a chance de um adeus nem mesmo dos parentes, reclusos na solidão de seus lares, carentes de abraços e vendo seus mortos empilhados e convertidos em reles números no meio de uma lista ou de um gráfico de barras qualquer.
De repente, o síndico se deu conta de que a faxineira poderia não ter assimilado o seu amplo discurso e resolve conferir:
— E aí, Regina, deu pra entender?
— Mais ou menos...
— O que cê não entendeu, minha filha?
— Essa máscara aí pendurada no seu pescoço, Seu Naza. Se não cobrir nariz e boca, o bicho pega. É como usar camisinha no saco. Só machuca e não resolve o problema.
— Cê tá ficando doida?!
— Tá vendo? Não posso nem abrir a boca! É pau pra comer sabão e pau pra saber que sabão não se come...
— Tá vendo? Não posso nem abrir a boca! É pau pra comer sabão e pau pra saber que sabão não se come...
Pelo sim, pelo não, ensaboei as mãos assim que cheguei.