O Ícaro da hora
Ícaro era um asteroide que havia sido descoberto no final dos anos 50 pelo astrônomo alemão Walter Baade (1893 – 1960). Foi batizado assim em homenagem ao mito grego que voou próximo ao Sol na tentativa de fugir da ilha de Creta.
A reportagem tratava do possível choque de Ícaro com a Terra caso não fossem utilizadas armas atômicas para interceptá-lo e evitar a colisão, livrando o planeta de consequências devastadoras como a que dizimara os dinossauros há milhões de anos.
Aos nove anos incompletos, o menino quase morre do susto. Não contou nada a ninguém mas logo lhe apareceram febre e dor de cabeça. “É gripe mais forte”, deve ter pensado sua mãe, ao tratá-lo à base de chá de eucalipto e colcha de chenille para o suadouro. De quebra, a terapia tinha o efeito colateral bom de deixar a mãe mais perto do filho.
O menino passou uns cinco dias sem pôr os pés fora de casa nem para ir à escola. Temia ser esmagado na calçada pelo asteroide sem poder mexer pela última vez em seus brinquedos e cadernos, embora da janela pudesse ver alguns amigos soltos na rua como se houvesse fartura de amanhãs. Eles não eram de ler.
A agonia só desapareceria na semana seguinte, quando a revista deixou claro que não era daquela vez que a humanidade sumiria da face da Terra com seus sonhos, ambições e esperanças, voltando tudo à estaca zero.
Apesar das profecias apocalípticas dos astrônomos, os cálculos foram refeitos e chegou-se à conclusão de que Ícaro passaria ao largo, como tantas vezes já havia passado, sem causar maiores danos ao nosso grãozinho de areia sideral.
Os adultos continuariam a discutir futebol, política, religião, cinema, música ou simplesmente a desejar o Simca Chamboard – sonho de consumo produzido pela indústria automobilística nacional – sem o risco de serem transformados em poeira cósmica a qualquer momento.
Restou entre eles a convicção de que não eram tão grandes diante do universo. Pouco tempo depois, como diria o emergente poeta Caetano Veloso, o sol do país do futuro se repartiria em crimes, espaçonaves, guerrilhas. E cada tribo, a seu modo, desfrutaria da nova safra de amanhãs.
O Cruzeiro, tal como o sol, continuaria nas bancas de revistas. E em caras de presidentes, em dentes, pernas e bandeiras, adultos prenderiam e arrebentariam irmãos até que se ouvisse falar em “distensão lenta, gradual e segura”, uma década depois.
E o menino, que a tudo assistia sem entender direito o que se passava no país do futuro, com os olhos cheios de cores, o peito cheio de amores, ainda sem lenço, sem documento, também sonhava com um lugar ao sol.
Pouco mais de meio século depois, o menino vê o seu passado a passar por ele na criança dos dias de hoje, confinada por conta de um asteroide invisível que aterroriza a humanidade, a ameaçar de morte por asfixia quem ousar desafiá-lo.
O que se passa pela cabeça dessa criança, isolada com seus pais, que já compreende que pode ser portadora do novo coronavírus (mesmo sem sintomas) e vetora de sua propagação entre indefesos velhinhos de sua família ou da vizinhança?
Será que essa criança, em sua perplexidade, também ficará muda de pavor, não contará nada a ninguém e lhe aparecerão febre e dor de cabeça? Será que sua mãe lhe trará chá de eucalipto e colcha de chenille para o suadouro? O mundo se move em círculos.
Mas agora, sob a ameaça do "Ícaro" da hora, não faltará quem aconselhe a essa mãe o uso em seu filho de máscara, analgésico, antitérmico, antes de procurar a emergência de um hospital qualquer. Que tenha UTI e respirador mecânico, claro.
Tomara que essa criança e sua mãe, mesmo sem o chá de eucalipto e a colcha de chenille, respirem fundo, desacelerem seus corações e consigam enxergar na escuridão que "a neve e as tempestades matam as flores, mas nada podem contra as sementes" (Kahlil Gibran).
Daqui a pouco brotará no ventre da Mãe-Terra o grão – remédio ou vacina – de uma nova safra de amanhãs, para que a vida atualize seu software instalado numa nova versão. Tem sido assim desde que o mundo é mundo.
Mas agora, sob a ameaça do "Ícaro" da hora, não faltará quem aconselhe a essa mãe o uso em seu filho de máscara, analgésico, antitérmico, antes de procurar a emergência de um hospital qualquer. Que tenha UTI e respirador mecânico, claro.
Tomara que essa criança e sua mãe, mesmo sem o chá de eucalipto e a colcha de chenille, respirem fundo, desacelerem seus corações e consigam enxergar na escuridão que "a neve e as tempestades matam as flores, mas nada podem contra as sementes" (Kahlil Gibran).
Daqui a pouco brotará no ventre da Mãe-Terra o grão – remédio ou vacina – de uma nova safra de amanhãs, para que a vida atualize seu software instalado numa nova versão. Tem sido assim desde que o mundo é mundo.
Uma poderosa semente de esperança acaba de ser plantada nos corações e mentes de seus leitores, tenham eles vivido 9 ou 90 outonos.
ResponderExcluirTemos lido diversos textos sobre esse momento de pandemia e não imaginava ler algo tão bonito, cheio de poesia, esperança e graça! Que essse Ícaro não nos destrua para que possamos, nos nossos amanhãs, aproveitarmos melhor a nova versão da Terra.
ResponderExcluirQue bom ler algo leve partindo da revista O CRUZEIRO, assim como aconteceu com o Ícaro tudo se acomodará em breve.
ResponderExcluirQue excelente amarração de contextos, trazendo um passado de 54 anos atrás aos dias atuais, nesse ciclo permanente da vida, e traduzindo de forma poética a sensação real desse momento que estamos atravessando, dia após dia. Brilhante crônica
ResponderExcluirAmigo,
ResponderExcluirComparações sempre são perigosas. Às vezes fico pasmo com comparações entre times e jogadores de épocas diferentes. Especialmente quando alguém, feito um onisciente de plantão, diz com pretensa certeza que sabe quem ganharia um hipotético e impossível jogo entre, por exemplo, a seleção de 70 e a seleção de 82.
Por isso também é difícil comparar as suas crônicas, umas com as outras.
Mas essa do Ícaro é uma das melhores que já li. E não é só porque Ícaro é o nome de um dos meus filhos! Nem porque ela fala da revista que tem o nome do meu time do coração (mesmo na segundona!).
Tem prosa e verso; tem a sacada de contrapor o asteroide ao vírus; tem o gancho com os lindos e instigantes versos de Alegria, Alegria, que pra quase todo mundo virou Sem Lenço e Sem Documento.
E, mesmo diante das incertezas que nos rodeiam, ainda acredita na fartura de amanhãs.
Genial, meu caro!
Prossiga nos deleitando com seus textos!
Abração
Eu apostava que seu time de coração fosse o Athlético PR ou Coritiba. Deve ter deixado a Lapa muito cedo!
ExcluirÉ meu amigo... triste ver o olhar de minha neta, que pelo menos posso vê-la pelo WhatsApp, com aquele ar de pergunta: por que o vovô não vem me ver? por que não posso ir ver a vovó? E ficamos à mercê dos "ícaros" que ainda aparecerão. Tomara que possamos assistir shows do Iron Maiden e não do Jimi Hendrix...
ResponderExcluirHayton, bem colocada sua reflexão. Mais impactante ainda, quando sabemos que o “meteoro” atual já acumula muitas vítimas.
ResponderExcluirHaverá uma(s) gerações a dizer “eu vivi, e sobrevivi!”.
Ah, que bom ler algo leve nestes tempos de Icarus Virulentus a espalhar nas calçadas gotas de seu veneno, onde meninos brincavam tranquilos sem a ameaça de restos venenosos de asteróides microscópicos. É ainda foi bom lembrar do Tostão -que, na realidade sempre teve seu valor em dólar - na capa da nossa querida Cruzeiro do País que hoje vale menos que isso. Showwww. show de esperança.
ResponderExcluirExcelente analogia! “Ícaros” passam e nos remetem a reflexão de amor ao próximo e a finitude da vida.
ResponderExcluirGenial...
ResponderExcluirNão só as crianças, mas os adultos tb.Varias pessoas tomando remédios, para não surtar. Mas Deus sempre tá no comando de nossas vidas.
ResponderExcluirÉ, Ícaro falhara de novo...
ResponderExcluirBela reflexão!
E ainda me corrigiu um erro de décadas: sempre cantei “o sol se reparte em trilhas” (acho que pelo vício da rima fácil e pobre).
Muito bom seu texto,quando só vemos notícias desanimadoras. Faz renascer a esperança de dias melhores.
ResponderExcluirCrônica poderosa e alentadora. Depois deste Ícaro invisível a humanidade terá a oportunidade de melhoramentos contínuos.
ResponderExcluirExcelente. Que venham os "Icaros" e que tenhamos sabedoria para entender os avisos que eles Terazem.
ResponderExcluirEm tempos de escassez de liberdade, por conta dos riscos da pandemia e dos ataques a democracia, crônicas como essa nos ajudam a continuar vivendo "como se houvesse fartura de amanhãs". Obrigado, Hayton, por plantar mais uma semente em solo fértil.
ResponderExcluirUma crônica poética e uma mensagem de esperança. Obrigado.
ResponderExcluirQue lindas lembranças. O Mundo se acaba a cada segundo enquanto tememos que algo acabe com ele.
ResponderExcluirSe a história de "Ícaro", aí, não é exatamente a sua, com certeza até inconscientemente você se inspirou nela.
ResponderExcluirBelíssima crônica, mais uma, com que você nos brinda - com a singularidade do momento.
Marcante também o comentário de Sérgio Riede aí acima - lembro dele lá no DESED, em meus tempos de instrutor, sempre brilhante.
De resto, mentalizemos sempre a filosofia do Kahlil Gibran.
Eita Hayton!!!
ResponderExcluirMais uma daquelas caprichadas crônicas! Muito grato por esse presente!
Viajei tanto na poesia do texto que me lembrei de uma música do Paralamas do Sucesso chamada “Tendo a Lua”.
Diz assim:
...“O céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu.
E lendo teus bilhetes, eu lembro do que fiz...
Querendo ver o mais distante e sem saber voar.
Desprezando as asas que você me deu.
Tendo a lua aquela gravidade aonde o homem flutua.
Merecia a visita não de militares
Mas de bailarinos
E de você e eu...”
Pois é, Beto. E o segundo verso desta bela canção fala justamente daquilo que sinto ao ver a perplexidade das crianças de hoje: “Eu vi o meu passado passar por mim...”
ExcluirOs minions defensores da direita de plantão são Ícaros perigosos e que me assustam mais que um vírus real que daqui a pouco terá uma vacina! Aqueles estão sempre voltando e nos obrigando a estar alertas, mesmo sem lenço e sem documento! Valeu!!!
ResponderExcluirPara testar
ResponderExcluirMuito Bom, isto aí, o mundo é sempre o mundo. É a Vida com sua ondas, que vai e vem.
ResponderExcluirE, mesmo diante das incertezas que nos rodeiam, ainda acredita na fartura de amanhãs. Hayto, depois desses tempos difíceis e de tanta escassês, até de valores que vilipendiaram nossa nação, chega você de mansinho, nos enchendo de alegria e esperança. Um abraço
ResponderExcluirRealmente uma crônica de profundo teor histórico em contrapartida com a nossa atual luta insana contra esse Covid. Mas vamos vencê-lo...
ResponderExcluirCrônica devidamente favoritada.
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