Vira e mexe lembro de Érico Furtado, há muito tempo radicado na capital pernambucana e a quem devo quase tudo o que aprendi sobre a arte de lidar com pessoas no mundo corporativo, de saber ouvir, de estar atento para não dissociar o discurso da prática e de não se omitir na hora de tomar decisões.
Tive o privilégio de sucedê-lo em duas oportunidades, nas superintendências do Banco do Brasil em Alagoas (1995) e em Pernambuco (1996).
Certo dia, por volta das 10 horas de uma manhã qualquer de 1997, recebi uma inesperada ligação telefônica. Era Geraldo Freire, lenda no meio radiofônico pernambucano, da Rádio Jornal, que fez sua história entrevistando figuras da política, da economia, da cultura e do esporte, numa linguagem próxima à voz das ruas.
Como todo bom radialista, abriu a entrevista com um chute certeiro em minhas canelas:
— É verdade que o banco mandou fechar três agências que foram assaltadas no Sertão por conta da situação de desgoverno lá na área?
Pressenti o que poderia me acontecer caso vacilasse na primeira resposta e rebati de primeira:
— De jeito nenhum! O banco sabe que o governo Arraes, no limite de seus recursos, está fazendo o que pode na região...
— Então, como o senhor justifica o fechamento das agências, prejudicando uma população tão carente?
— Veja, antes de tudo é preciso reconhecer que hoje a violência é motivo de preocupação em todo lugar, seja aqui, na Paraíba, em São Paulo ou Nova Iorque...
— Sim, mas se o banco resolve fechar toda agência que for assaltada, não vai sobrar uma aberta...
— É aí que quero chegar: o banco não irá fechar toda agência que for assaltada, mas é preciso evitar que inocentes sejam baleados ou mortos... E tenho certeza de que nisso você concorda com a gente.
— É aí que quero chegar: o banco não irá fechar toda agência que for assaltada, mas é preciso evitar que inocentes sejam baleados ou mortos... E tenho certeza de que nisso você concorda com a gente.
Passei, então, a detalhar uma estratégia de enfrentamento aos assaltos nas pequenas agências do interior que nossa equipe havia decidido pôr em prática, claro, no que nos convinha tornar público. A ideia era manter fechada por alguns dias toda aquela que fosse atacada pelas quadrilhas, enquanto mobilizávamos as forças sócio-políticas locais — prefeito, vereadores, padre, juiz, delegado, grandes produtores rurais e empresários urbanos — para tentarmos, juntos, reduzir o risco de novas investidas criminosas.
O plano era simples: impedir qualquer automóvel de estacionar no miolo da cidade, onde normalmente estava localizada a única agência bancária, construindo calçadões ou utilizando blocos de concreto nas cercanias. Em paralelo, o banco reduziria ao mínimo o volume de dinheiro em caixa nessas pequenas agências, porque havia certa desconfiança — sem fundamento, é verdade, pois nunca se comprovou nada — de que as organizações criminosas não investiriam num determinado alvo se soubessem que não compensaria o risco.
As quadrilhas agiam sempre de modo parecido: chegavam em camionetas de grande porte com homens e armas de grosso calibre na carroceria. Antes de partirem para o assalto, fuzilavam vidraças de casas e lojas que encontravam pelo caminho. O barulho de tiros e estilhaços provocava uma espécie de catatonia coletiva na população por cinco a dez minutos, tempo suficiente para que os bandidos agissem aos gritos e ameaças, deixando um rastro de horror e traumas.
Óbvio que o problema não seria resolvido em definitivo. Os marginais buscariam outras cidades mais vulneráveis, inclusive nos estados fronteiriços, mas acreditávamos que a ideia de dificultar o uso do veículo de suporte à ação criminosa seria assimilada por outras comunidades, já que que o policiamento disponível nunca teria o poder de fogo da bandidagem.
Pouco antes do almoço, depois da entrevista, recebi um telefonema do palácio Campo das Princesas. Era o chefe do gabinete do governador Miguel Arraes comunicando que ele me aguardava, no começo da tarde, para uma breve conversa de interesse particular.
Ao chegar ao palácio, fui levado à presença do governador, que me chamou reservadamente num canto do salão de despachos, longe de alguns curiosos próximos de sua mesa de trabalho. Disse ele:
— O banco está certo e o senhor demostrou que está preparado para lidar com esse pessoal da Imprensa, não caindo na armadilha de jogá-lo contra o governo...
— Governador, o banco é parceiro do estado e dos municípios. Vai sempre procurar fazer o que for melhor para a sociedade.
— Sei disso, mas aqui entre nós, é bom que você saiba que esse tipo de provocação parece coisa de gente ligada a Marco Antônio...
Na hora, não percebi a quem ele se referia. Com o desenrolar da conversa, vi que falava do velho adversário político Marco Maciel, então vice-presidente da República. Fiz o que deveria ser feito: deixei entrar por um ouvido e sair pelo outro.
Tempos depois, numa conversa com Marco Maciel sobre o fracasso de um ousado projeto em que se cogitou, pela primeira vez, conjugar reforma agrária em larga escala com efetiva assistência técnica e diversificação de lavouras na Zona da Mata, mas que não recebeu o apoio do governador por razões de foro íntimo — "Mitos também vacilam" (clique e veja) —, o vice-presidente da República comentou comigo:
— Miguel tá ficando doido! Como ele pode ser contra um projeto desses?
Calado estava, calado fiquei. De novo, fiz o que deveria ser feito: deixei entrar por um ouvido e sair pelo outro.
Em 2016, no fim de minha jornada profissional, em Brasília, alguns colegas mais novos quiseram saber como consegui escapar ileso do convívio nem sempre amistoso com tantas personagens da cena política brasileira na virada do século, como: Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel, Miguel Arraes, Inocêncio Oliveira, Raul Jungman, entre outras.
Para todos, parafraseando Chico Buarque, pude dizer que o meu pai não era paulista, nem meu avô pernambucano, nem mineiro meu bisavô ou baiano meu tataravô, mas tive no alagoano Érico Furtado um maestro soberano.
Com ele aprendi a reger grandes orquestras por onde andei e a saber a hora exata de esconder a batuta para não atrapalhar os músicos. Aprendi também, com o passar do tempo, a ser meio cego, meio surdo e meio mudo diante do que via e ouvia. E parece que deu certo.