Berço do ex-senador Teotônio Vilela — o menestrel das Alagoas — e de seu irmão cardeal primaz do Brasil, Dom Avelar Brandão, a alagoana Viçosa, com pouco mais de 25 mil habitantes, está encravada no Vale do Rio Paraíba do Meio, a 86 km da capital.
Lá o escritor Graciliano Ramos viveu e inspirou-se para escrever São Bernardo, obra-prima publicada em 1934 em que o personagem Paulo Honório faz reflexões sobre sua vida, de guia de cego no interior até se tornar um grande e inescrupuloso latifundiário.
Lá também viveu Seu Vilaça, caminhoneiro trabalhador como poucos, olhos apertados, sobrancelhas grossas, bigodinho bem aparado, casado com Lourdes, paixão antiga com quem trouxe ao mundo 15 filhos, metade meninas.
O sustento da prole dependia de um caminhão Ford 46 de dois eixos carinhosamente apelidado de "Bigode", cuja partida dependia de uma manivela conectada ao virabrequim. Até que fossem criadas as primeiras baterias, o motorista desse tipo de veículo toda manhã rezava e ensopava de suor girando a tal manivela para fazer pegar o motor.
De setembro a abril do ano seguinte — período de moagem da safra canavieira no Nordeste —, Seu Vilaça transportava a produção de pequenos fornecedores de cana-de-açúcar das redondezas para a Usina Boa Sorte, pertencente ao então senador Teotônio Vilela.
O sábado era dedicado ao “descanso”, isto é, a lavar o veículo e a fazer pequenos reparos. E já a partir das três da madrugada do domingo, reunia vendedores ambulantes na periferia de Viçosa para transportá-los à feira livre da vizinha cidade de Capela.
Com a família numerosa e a necessidade cada vez maior de fazer carretos para que nada faltasse “às meninas” — Seu Vilaça não ligava muito para os meninos porque, dizia ele, “quem tem filho de bigode é gato” —, essa rotina não poderia ser quebrada.
Mas foi. Numa manhã de domingo, Zé Alves, político e grande fazendeiro na região, bem cedinho deslocava-se para suas terras a fim de vistoriar lavouras e rebanhos quando avistou Seu Vilaça, no meio da neblina que cobria a rua, a soltar labaredas pelas narinas peludas.
Com o capô aberto, mexendo em tudo que era peça do "Bigode", tentava em vão dar partida no motor girando a manivela:
— Oh, meu Bom Jesus do Bonfim, a bobina tá bobinando, o carburador tá carburando, o relê tá relando, todo domingo eu vou à missa com Lourdes e este caminhão não quer pegar!
— Calma, Seu Vilaça... — quis desanuviar Zé Alves.
— Eu tô calmo! Não é você que tem um magote de mangaieiros pra levar pra feira de Capela!
— Tô vendo a calma... Tenha cuidado com o coração!
— Que coração coisa nenhuma! Ninguém merece uma vida de aperreio dessas.
Pouco tempo depois o motor do caminhão pegaria e ele pôde, mais uma vez, cumprir sua rotina semanal junto aos pequenos feirantes.
De noite, ajoelhado na igreja, ao lado da mulher, diante da imagem do santo padroeiro, suplicou perdão pelos impropérios ditos pela manhã:
— Pelo amor de Deus, meu santo, fazei com que nenhuma de nossas filhas se apegue a um homem com um "Bigode" velho feito o meu...
— Pelo amor de Deus, meu santo, fazei com que nenhuma de nossas filhas se apegue a um homem com um "Bigode" velho feito o meu...
Mal acabou a oração, virou-se de lado e deu de cara com um bancário recém-chegado na cidade, do bigodão preto, com um olhar de luxúria para uma de suas filhas. Quis esconder sua satisfação com a rapidez do santo padroeiro — já ouvira falar daquele cidadão respeitável —, mas ao notar que ali o motor da paixão já faiscara mesmo sem ajuda de manivela, chamou o moço na porta da igreja e puxou conversa:
— Só trisque o dedo nela se for pra casar, ouviu bem?!
— Claro, Seu Vilaça.
— Me disseram que você tem medo de sapo cururu. É verdade?
— Nao é medo... é nojo. Coisa de menino criado em beira de rio.
— Me disseram que você tem medo de sapo cururu. É verdade?
— Nao é medo... é nojo. Coisa de menino criado em beira de rio.
— Sei... Me diga outra coisa: um passarinho me contou que, além de trabalhar no banco, cê toca uma sanfona arretada.
— Tô parado. Tive que me dedicar aos estudos para o concurso. Mas um dia eu volto...
Nunca voltou. Poucos meses depois, Seu Vilaça levaria a filha até o altar onde o bancário do bigodão preto a esperava. O casal foi passar a lua de mel na Bahia e gostou tanto do dique do Tororó, do acarajé de Amaralina, do afoxé Filhos de Gandhy, do caranguejo da Pituba, da ladeira do Pelô e do pôr do sol no Farol da Barra, que resolveu não voltar ao interior de Alagoas.
Morto de saudade da filha que deixara a casa paterna e o torrão natal, Seu Vilaça espairecia na boleia do "Bigode" assobiando coisas como o baião Boiadeiro, de Gonzagão:
"(...) De tardezinha quando venho pela estrada
A fiarada tá todinha a me esperá
São dez fiinho é muito pouco é quase nada
Mas num tem outros mai bonito no lugá (...)"
Algum tempo depois, num dia útil qualquer, o “Bigode" foi nocauteado, com manivela e tudo, por falência de múltiplas peças corroídas pela ferrugem. Seu Vilaça, de faróis baixos para seguir adiante na escuridão do futuro, com os filhos crescidos e os olhos embotados de poeira e lágrima, raspou o bigodinho já grisalho e sentou de vez para descansar como se fosse sábado.