Juro pelo cachimbo da velha parteira que cortou o meu umbigo que este caso é real. Pode ter uma coisinha a mais aqui, outra ali, mas Salomão, meu vizinho à época, me contou em detalhes o que lhe aconteceu quando morou na Quadra 114 Sul, em Brasília, na virada do milênio.
A síndica era de morte! Um dia, mesmo percebendo pelo retrovisor que Salomão descia a rampa da garagem logo atrás do carro que ela guiava, fez-se de distraída e acionou o controle remoto para fechar o portão, espatifando o para-brisa do coitado. Irritado, ele quis dizer o que qualquer um diria, mas respirou fundo, contou até nove e percebeu a tempo a intenção dela: tornar-se vítima.
Certamente Margot diria que apenas cumpriu o regulamento da convenção de condomínio, que responsabilizava os moradores pelo fechamento do portão nas entradas e saídas da garagem. Salomão então teve que catar cacos de vidro espalhados do painel frontal até o porta-malas do carro durante horas, além de aturar a demora da oficina para repor a peça danificada e arcar com o custo da franquia do seguro.
Ela tinha seus motivos para se sentir infeliz. Havia sido rejeitada pelo ex-marido, não conseguiu ser mãe nem contava com um cobertor de orelhas e braços para aquecê-la nas noites frias e secas do Planalto Central. Servidora pública, aposentou-se sem nada digno de orgulho em termos profissionais. Nem festinha de despedida fez por merecer de seus colegas de trabalho.
Ilustração: UMOR |
Certa manhã, a filha de Salomão deixou o carro por alguns minutos próximo à guarita da portaria — na falta de vagas em frente ao prédio e sem tempo para descer à garagem no subsolo —, enquanto pegava algo na geladeira para atenuar a fome. Foi o bastante para Margot acionar a fiscalização de trânsito, denunciar a infração e exigir que o agente público cumprisse o seu papel: aplicar a multa.
Salomão não se conformava. Naquele dia, abriu a caixa de ferramentas, soltou o verbo e falou alto para quem quisesse ouvir: “Por que comigo, minha Nossa Senhora Aparecida, que todo sábado vou à missa? Quanto mais rezo, mais assombrações me aparecem!"
Talvez Margot ainda estivesse cabreira por ele tê-la flagrado no elevador, às três da madrugada de uma sexta-feira, bocejando com os dentes arroxeados pelo excesso de vinho, a carregar uma sacola que se rasgou, derrubando alguns apetrechos íntimos. Muito íntimos, diga-se de passagem. Tanto que Salomão esquivou-se de ajudá-la para evitar maior constrangimento.
Mas agora ela passara dos limites. Como diria tempos depois um certo deputado federal a outro parlamentar, ao vê-la mais uma vez criticando de modo grosseiro o trabalho das faxineiras, Salomão comentou com o porteiro: “Esta senhora desperta em mim os instintos mais primitivos!"
Foi quando ele decidiu colocar em ação um plano que já vinha arquitetando em suas noites insones: publicar um anúncio no Correio Braziliense mais ou menos assim: “Mulher madura, enxuta, bem de vida, procura alguém para relacionamento sem compromisso, solteiro ou casado. Guarda-se sigilo. Ligar para...”
Claro que Margot iria cuspir escorpiões e desconfiaria de que a molecagem partira de Salomão, mas dificilmente conseguiria provar. Ele, ao planejar a ação em seus sórdidos detalhes, terceirizaria o anúncio no jornal através de uma amiga mineira de passagem por Brasília. E saberia ser cínico o bastante — em público, claro —, para lamentar o ocorrido, inclusive colocando-se à disposição dela para auxiliar na identificação da origem daquela crueldade inaceitável, sem precedentes na história do prédio.
Mas Salomão — como o personagem bíblico filho de Davi, fiel à origem de seu nome na palavra hebraica Shelomon, de Shalom, que significa paz — era homem de índole pacífica, ainda que à base de ansiolíticos, custou a pegar no sono naquela noite, a ruminar sobre os possíveis desdobramentos de seu audacioso plano.
Pensava: e se Margot, carente como andava, caísse na conversa mole de um serial killer? E se mais adiante, no curso das investigações policiais, encontrassem a responsável pela publicação do anúncio a partir das imagens das câmeras de segurança do jornal?
Na manhã seguinte, seu mundo mudara completamente. Salomão recebeu a notícia de que a nora estava grávida, o que fez seu coração pulsar noutra cadência, levando-o a abortar o plano e a desistir da vingança. Não pegaria bem para um avô de primeira investidura conhecer o neto apenas depois de uma temporada na Papuda, cumprindo sentença condenatória como mentor intelectual, por exemplo, de estrangulamento ou coisa parecida.
Ocorreu que meia hora depois lá estava ele de novo pensativo, oscilante, insatisfeito com a possibilidade de ter que desistir do plano meticulosamente arquitetado como se nada lhe tivesse acontecido. “Ninguém sabe do que aquela mulher é capaz! Eu estou prestando atenção há muito tempo...” — comentou comigo.
Se temia o que pudesse acontecer com Margot, por outro lado imaginava: a danada é tão ardilosa que será capaz de se deixar seduzir inicialmente para no primeiro vacilo do serial killer morder o seu pescoço, sugar o sangue, esquartejá-lo e embalar os pedaços em maletas. E na calada da noite, jogar tudo no Lixão da Estrutural ou no fundo do Lago Paranoá.
Porém Salomão, definitivamente, não era de guardar raiva por mais de três dias. Acabou mais uma vez perdoando a infeliz. Optou por mudar dali e, em duas semanas, foi morar no final da Asa Norte, próximo do filho e da nora que lhe dariam o primeiro netinho.
Só voltava à antiga morada para apanhar a correspondência na portaria e bater papo comigo. Foi o porteiro, inclusive, quem lhe contou que a síndica, dois meses após a saída dele, também foi embora sem deixar nem uma nota de duas linhas no quadro de avisos. Disse que iria visitar um tio adoentado no interior goiano, que fechara as contas do condomínio com o subsíndico na noite anterior e partiu com destino ignorado.
Veio à tona então o que já se desconfiava da garagem à cobertura do bloco: Margot, no calorão da menopausa, resistiu o quanto pôde, mas acabou juntando as escovas de dentes e os trapos encardidos com o menino Zezé, que deixou de vender “frutos” do Cerrado para se dedicar de corpo e alma ao consumo do estoque de afetos represados da criatura.
O casal foi visto pela última vez na boca da noite de uma quinta-feira qualquer, no parque Dona Sarah Kubitschek, ela com os olhos fechados a alisar a barba rala de Zezé, que guiava um Chevette SL seminovo com o toca fitas a reproduzir É o amor, canção de um xará e conterrâneo:
“(...) Eu não vou negar
Você é meu doce mel
Meu pedacinho de céu
Eu não vou negar (...)”
Pois bem! Só agora, depois que resolvi contar essa história, minha mãe vem me dizer que a velha parteira que cortou o meu umbigo nunca fumou. Mas isso é o de menos nesse caso.
Veja como é a vida. Na virada no milênio, eu morava na Quadra 116 Sul, na Capital da República. E alguns meses depois, fui morar no final da Asa Norte, mais precisamente na 116. Juro por todos os cachimbos que não me chamo Salomão. Mas a história é verdadeira, imagino. Exceto por uma coisinha aqui, outra ali...
ResponderExcluirAdorei navegar pela Margot. Tenho visto crescer o número delas na sociedade. Delas e deles, sim, existem os Margotos. Gente mal resolvida, gente que se acha, gente que tem prazer em oprimir. E que exala ódio. Mas, no fundo, pessoas margotianas são muito vazias de vida. E, ao lhes faltar a vida, elas cultivam a morte. Pedaço monstrengo que todos carregamos, mas que sempre perde a batalha para a vida, ao vermos uma flor, ou uma mulher grávida.E foi assim com ela. O amor do vendedor de frutas dissolveu anos de rancor, mágoa e rabugice. É o amor...
ResponderExcluirO mundo está cheio de Margos e nós, pobres Zezes, às vezes acabamos sendo atropelados nas Asas Nortes da vida.
ResponderExcluirA pintura do cotidiano apenas com suas cores naturais fica opaca, as cores que o bom pintor acrescenta fazem dele uma obra de arte com cores vivas, assim é o cronista. Bota cores nas suas "estorias".
ResponderExcluirÉ por aí, meu caro Ademar! Ninguém merece apenas enxergar as cores da realidade com sua mesmice. A fantasia nos remete a uma paleta bem mais ampla e inspiradora.
ExcluirBom, eu moro no final da Asa Norte mas não tenho nada a ver com isso é aqui eu sou o síndico. kkkkk Bela história.
ResponderExcluirPelo sim, pelo não, guardo distância regulamentar das “Margot” (ou seu similar masculino), quando as (os) encontro pelos prédios onde moro nas minhas mudanças frequentes pelo Brasil varonil!😂😂
ResponderExcluirNo que faz muito bem, Humberto. Este tipo de gente é feito erva daninha: dá em tudo que é lugar!
ExcluirÉ isso, amigo Hayton!
ExcluirMargot era fogo. Por isso o Salomão comeu o pão que o diabo amassou e A MARGOT.
ResponderExcluirA quantidade de Margot é tão grande que dá para eleger um Louco presidente e sustentar suas loucuras achando que estão salvando o país. O Brasil precisa de mais Zezés. Que cada um cumpra o seu dever: coma uma Margot.
ResponderExcluirQue conto arretado da porra!
Dedé Dwight
ExcluirAs vezes fico a me perguntar, o que seria da vida se não existissem algumas personagens de colorações distoantes, a exemplo de certas Margot? Será que não são realmente necessárias, para que possamos distinguir melhor o joio do trigo? E como não chego a conclusão nenhuma, o jeito é continuar encontrando e convivendo muitas vezes com as Margot da vida, inclusive as ficcionais.
ResponderExcluirQue Margot amarga! Deus é mais!
ResponderExcluirHahaha. Margot é fogo na roupa
ResponderExcluirRapaz, ainda bem Salomão era compassivo... eu não teria deixado passar em branco. E vai ver essa bravata toda era pra esconder o Zezé... era tão incisiva que acabou enrolando todo mundo. Afinal, como diz o ditado, não existe panela sem tampa.
ResponderExcluirQue elegância pra dizer “estoque de afetos represados” ao se referir a uma situação que muitos descreveriam com palavras mais mundanas! Kkkkk
ResponderExcluirHoje em dia, Riede, as expressões mundanas são mais utilizadas em reuniões de trabalho que não são filmadas ou, se o forem, as imagens não se tornarão públicas.
ExcluirMuita gente vai amargando com o tempo. Mas como alguém já me disse: é a personalidade que o tempo apura.
ResponderExcluirAinda bem que tambem existem os plenos de doçura!
Ótima. Rindo demais. 😂😂
ResponderExcluirQuem, depois de um bom trecho de caminhada, não encontrou/tropeçou em uma Margot?. Atire a primeira pedra. O Bom é que no fundo estas pessoas procuram uma maneira e algo que possa lhe satisfazer, preencher o seu vazio, que produz angústia. Ninguém é tão ruim, que nao possa amar.
ResponderExcluirNo prédio onde moro, tinha uma Síndica arrogantemente
ResponderExcluirprepotente, mas conseguimos eleger um novo síndico. Esse é “maluco”, mas um “maluco beleza”.
Essa “margosa” foi uma predestinada.
ResponderExcluirAlgo me diz que essa história pode ter tido outros personagens... 🤔
Kkkkkkkk Ótima!
Essa Margot é o tipo de gente que de tão ruim, se torna até engraçada. Dei boas risadas! Muito bom, Haylton!
ResponderExcluirEu teria que escrever quase um capítulo de um livro pra dizer o que Ademar Rafael Ferreira sintetizou com tanto brilhantismo no comentário que postou aí acima.
ResponderExcluirJá Margot, jamais imaginaria que seria personagem de um cronista tão brilhante quanto perverso - mas ela mereceu.
Por fim, pra a vingança ficar perfeita, você bem que poderia imprimir o texto e destiná-lo a ela - eu até emprestaria um endereço para que o crime não pudesse ser desvendado.
Com um abraço de meu inseparável UNKNOWN, aqui e Volney.
Só de sacanagem, o seu pseudônimo “Unknown” resolveu ficar escondido. Veio à luz então o estiloso nome “Carlos Volney”, provavelmente numa justa homenagem ao chargista que ilustra o texto.
ExcluirDesde 1979 moro em apartamentos e conheci várias(os) Margot, que vivem de “amargotizar” a vida dos outros. Mas, se inexistissem não estaríamos agora a rir desta boa narrativa.
ResponderExcluirAté mesmo uma peçonhenta dessas é capaz de prender nossa atenção, quando nos é apresentada através de uma ótima crônica. Parabéns!!!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirO bom de suas crônicas, Hayton, é que não são só engraçadas, nos levam a muita reflexão. Lendo mais de uma vez, percebemos nuances não observadas numa primeira leitura. Fico imaginando como é parecida a vida em condomínios residenciais. Só muda o endereço.
ResponderExcluirVocê não disse, mas pra mim quem está comendo o pão que o diabo amassou é o Zezé!
Coincidência: um certo deputado do Estado do RIO DE JANEIRO, cujas iniciais não vou declinar.
As tais nuances a que você se refere são pequenos recados que mando para uma ou outra pessoa que sei vai entender perfeitamente o que eu quero dizer. E funciona. Muitas vezes me retornam e trocamos boas risadas. Ficção e realidade caminham de mãos dadas.
ExcluirSutilezas, meu caro, de um doido que fica mexendo num texto aparentemente pronto por mais de duas semanas até esgotar a paciência e publicá-lo.
Vivi boa parte da
Excluirminha vida na 114 Sul. Estudei no jardim de infância e na Escola Classe! Minha mãe ainda mora lá. Ótimas recordações! Ainda bem que D. Margot não fez parte dessas memórias...
Obrigado Hayton por me transportar para um lugar tão familiar pra mim!
Não fosse a sensibilidade e o agudo humor do cronista, este modesto chargista não teria encontrado a inspiração para o rabisco.
ResponderExcluirAbr. UMOR
Fujo das “Margots” da vida como tb da Covid-19! Outra bela crônica 👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluirKkkkk. Danada essa Dona Margot!
ResponderExcluirAhhhhhh, me diverti muito com essa Margot. Era muito amor represado mesmo. Agora o condomínio, em festa, canta: É o amoooooorrr. Adorei essa.
ResponderExcluirHayton, isso são coisas do amor. DO que o amor não é capaz? Mais uma excelente crônica, você descre ve muito bem seus personagens, de modo tão real que precisamente, na nossa mente passa um filme. Parabéns, mais uma vez pelo brio de uma excelente leitura. Um abraço
ResponderExcluirBelo texto, me fez lembrar da minha I fância em Carangola (MG), com essa conclusão! 👏👏👏
ResponderExcluirBoa e muito bem contada "história". Salomão´é um inocente, e como todo inocente, o mal está sempre de olho para ver se o fisga. Parabéns pelo brilho no narrar.
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