Bala de prata

Mal aprendem a falar, as crianças de hoje já sabem o que é Aedes aegypti, o mosquito responsável pela transmissão de dengue, zika e chikungunya, muito parecido com a velha muriçoca (pernilongo), mas com algumas características que ajudam a ser diferenciado dos outros.

A muriçoca de ontem era bem menos traiçoeira do que o Aedes aegypti. Infernizava do mesmo jeito com picaduras e zumbidos, mas nada que mosquiteiro sem grandes rasgos, espiral verde Sentinela ou borrifadas de Detefon não resolvesse o problema. 

Aliás, criado para dizimar os mosquitos da face da Terra, o spray daquele inseticida clássico combatia até “a malária, a febre amarela e o tifo”, segundo uma campanha publicitária veiculada em 1953, em O Cruzeiro, revista semanal que circulou por aqui durante anos. 

Com slogans como “terrível contra os insetos”, “defenda sua casa” e promessas de “proteção prolongada”, exterminava ratos, baratas, moscas, mosquitos e formigas. O duro é que uma certa substância integrante de sua fórmula foi banida em vários países nos anos 70 por contaminar alimentos e intoxicar seres humanos. 

Tio Enoch, a quem visitava no final dos anos 90, no Maranhão, um dia me flagrou na sala a bater palmas acima da cabeça, tentando esmagar os primeiros e sedentos pernilongos no fim da tarde:
– Não conte para ninguém o que vou lhe dizer... – disse ele, olhando para os lados – Eu descobri um método natural para acabar com muriçocas.
– É mesmo, tio? Como é que faz? 
– Você sabe o que é tabaco?
– Será que é o que tô pensando?
– Bom, seu saliente, não sei o que você tá pensando, mas tô me referindo ao pó-de-rapé.
– Claro, tio, foi nele mesmo que pensei. Não é aquele pozinho cheiroso que os velhos tomam uns porres para espirrar? Dizem que é bom para enxaqueca, sinusite...
– Isso! 

Comentei, então, haver lido sobre receitas amazônicas para o tabaco que apresentavam em seu composto, além de fumo, ervas como casca da copaíba, cumaru-de-cheiro (casca da cerejeira), canela-de-velho, pau-pereira, entre outras cinzas de cascas de árvores também medicinais. Alguns índios até hoje acreditam que aspirando o pó absorvem a energia dos espíritos que acompanham o pajé de sua tribo e os espíritos que habitam a floresta. 

Ele me ouviu com o semblante sério, dando a entender que tinha pleno conhecimento de tudo: 
– Vai precisar de alguns seixos, aqueles pedregulhos arredondados de beira de rio.
– Só serve se forem eles?
– Não. Se não conseguir, não tem problema. Pega um martelo e quebra um bloco daqueles de calçamento de rua.

A curiosidade era tanta que corri atrás dos ingredientes da receita e em menos de meia hora, antes de escurecer, estava de volta. Meu tio então me explicou, de forma bastante didática, que deveria espalhar as pedras pelos cômodos da casa e colocar uma pitada de pó sobre cada uma delas. 
Mais tarde, segundo ele, quando vissem a novidade no ambiente, as muriçocas não resistiriam à tentação e dariam boas cafungadas, o que provocaria êxtase e espirros catárticos. Com isso, bateriam a cabeça nos seixos e cairiam duras, mortas por traumatismo craniano ou concussão cerebral.

Olhei para ele e quis fazer aquilo que você faria comigo se eu estivesse agora a seu lado, mas não tive coragem. Havia muito carinho e respeito entre nós. Optei então por disseminar a receita entre amigos e amigas e até hoje ainda encontro quem perca alguns minutos prestando atenção no que digo. 

Meu receio é alguém espalhar essa receita nas redes sociais como a panaceia para neutralizar o surto do novo coronavírus. Vai que o síndico do edifício Terra Brasilis acredita e resolve convencer parte dos moradores da eficácia do método, mesmo sem qualquer validação científica. 

Nunca se sabe de onde virá a próxima bala de prata da indústria farmacêutica nesse tiroteio de soluções para a pandemia que mudou a vida das pessoas de Wuhan, na China, a Inhapi, em Alagoas.

Comentários

  1. Senti até o cheiro do espiral verde de Sentinela....

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  2. A exemplo do que aconteceu no passado, com muitas pestes que dizimaram milhões de vida, apenas o combate ao vírus poderia extermina-lo, se é que se trata de um vírus, e quem sabe, o "tabaco ou torrado" hoje estaria sendo vendido em farmácias com retenção da "receita branca".

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    1. Bem lembrado, Verdi, “torrado” é outro sinônimo da mistura milagrosa que entorpeceria as coitadas dás muriçocas. Nada como ter leitores “experts” no tema.

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  3. Fora dos filmes de faroeste os efeitos de "balas de prata" são parecidos com o resultados do Plano Collor no combate à inflação. Prender os leitores ao texto somente quem faz são os bons na escrita. Estamos diante de um caso real.Boas festas juninas.

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  4. Quando você mencionou bala de prata, meu pensamento viajou pra uma certa Casa da Dinda em Brasília-DF, depois pra Canapi-AL (não conhecia Inhapi, que tá bem próxima).
    Desnecessário dizer que tuas crônicas estão se tornando leitura obrigatória às quartas-feiras. Parabéns!

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  5. Hideraldo Dwight Leitão24 de junho de 2020 às 06:59

    Vivemos assim mesmo. Nos iludimos esperando uma coisa que possa curar todas as mazelas, a bala de prata precisa para cada inimigo e nunca é assim. Queremos uma vacina para vencer o vírus e nos levar de volta a um normal que foi exatamente o que nos conduziu até a maleita. Seu tio é que era sábio, pois sabia não ter jeito pra muriçoca, mas pra interter menino tinha.

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  6. ANTONIO CARLOS CAMPOS24 de junho de 2020 às 07:08

    Já li em algum lugar que numa guerra nuclear de grandeza mundial apenas as baratas se salvariam. Acho que as muriçocas estariam a lhes fazer companhia.

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  7. Comprar aquele pacotinho verde de sentinelas, prestando atenção se tinha o suporte de alumínio, era parte do ritual afugentador da corja infame das muriçocas. Estamos precisando de um ritual desse para tantas outras coisas...Parabéns!! Gostei!!!

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  8. Meu nobre, acabei de dar boas risadas imaginando a cara de um dos atores ao ouvir o experiente tio narrar o efeito da maçaroca. KKKKK OK!!!

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  9. Excelente crônica! Pense numa cabeça boa e inteligente quando rememora fatos com detalhes e bom humor. Comecei o dia rindo. Abs

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  10. Não tem mais desculpas: com a sabedoria e eficácia dessa receita, você como patriota está convocado a comparecer a certo cercadinho da capital federal e passar a receita infalível pra acabar com esse virus que pegou carona nas nossas tradicionais ... Deixa pra lá. Só mais uma curiosidade: a fórmula também traz de volta a pessoa amada que tá sumida?

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  11. Se o síndico do “Brazilis” tiver acesso a esta crônica, haverá nova “quina” recomendada, rapidinho!

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  12. Muitas receitas tradicionais são bastante válidas mas, em tempos de fake news, não sabemos de mais nada! O pior é que os remédios que não resolvem, hoje, custam muito, inclusive em vidas.

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  13. Ha tempos que não vejo falar no tal simonte, tem o fraco, o forte. Talvez não tenha usado a fórmula adequada. Kkkkk.
    Hoje, com tantas orientações, tantos médicos, deu Tio faria sucesso.
    Sempre, belas histórias, que Nos fazem reviver.

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  14. Cada dia me impressiono mais com sua memória. Fantastica

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  15. Na busca incessante por uma droga eficaz no combate à pandemia, onde já temos até vermífugo divulgado, não me admiraria se esse seu texto fosse parcialmente extraído e adaptado a uma dessas soluções para o mal que nos ronda. Prepare-se para os royalties (rsrsrs)

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  16. Contra mosquito, somente o velho e eficiente mosquiteiro, sem rasgos.
    Ainda me lembro, ao cair da tarde, minha mãe com o superflit na mão a espalhar o veneno que de nada adiantava; tampouco a espiral sentinela já ao dormir. A única solução terminava sendo o velho e surrado mosquiteiro.
    Grande crônica Hayton. Muito boa!

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  17. Dei boas risadas com a história. Constatei que em algumas regiões o produto comercializado era outro, pois eu não conhecia o Sentinela. O primeiro que veio na cabeça foi o Boa Noite.

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  18. Sertanejo - lá das bandas do majestoso RIO PARAGUAÇU - envaidecido pela condição, tenho entretanto uma memória dolorosa pelo sofrimento com as inesquecíveis MURIÇOCAS - elas merecem as maiúsculas pela tortura de que são capazes. E chegaram a me impressionar pela preferência em me assediar, quase fiquei convencido.
    Só que elas são visíveis, colocam sua vida em jogo, não enganam ninguém sobre suas intenções, exatamente como os celerados que o nosso planeta hospeda, os "BEIRA-MAR" da vida. Bem diferente - ocorre-me agora a comparação - desse invisível e traiçoeiro inimigo que agora nos assola, que tem nome sofisticado - SARS COV 2 não sei das quantas, corona não sei o que.
    Faz-me lembrar dos nossos políticos, principalmente daqueles em quem um dia confiamos e depois se revelaram o que verdadeiramente são. Meu respeito maior, constrangidamente confesso, pelos BEIRA-MAR.
    Suas crônicas são assim, com um tema simples você nos remete à reflexão sobre tempos quase imemoriais e acende a indignação pelo que estamos a vivenciar e sofrer.
    Como sei que o UNKNOWN não me abandona, aqui é Volney.

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    1. Grande Volney, você, como sempre, com um comentário preciso feito tiro com bala de prata.
      Também desconfio, assim como você, de que certos políticos-muriçocas não picam por prazer, mas porque precisam do sangue de inocentes para seguirem vivos, por enquanto. É da índole deles.

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  19. Já vi cada poção mágica que falam...Parece que estamos na idade média

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  20. Eita Hayton!!! Mais uma história hilária! Ela me remeteu à casa de minha madrinha no interior da Bahia onde passava férias. Lá muriçoca não respeitava ninguém, nem remédio, muito menos cortinado...

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  21. Agostinho Torres da Rocha Filho27 de junho de 2020 às 21:10

    Tabaco, rapé, torrado, sentilela, boa noite, detefon... Não importa a eficácia do remédio contra a muriçoca. O mais importante é que a crônica nos remete à infância, de uma forma criativa e bem humorada. Parabéns!!!

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  22. Em tempos de pandemia, é sempre muito bom encontrar o amigo no seu Blog. Acho que depois desta crônica, o “tabaco” vai desaparecer do mercado. Nossos políticos também podiam levar suas cabeças ao encontro dos seixos.

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  23. Foi dar corda, levou rsrs. Mas antigamente se sobreviveu a tudo: BHC, eita veneno que servia pra tudo, inclusive pra piolho... acho que somos heróis... Sobre os ensinamentos do teu tio, repassa, vai que alguém ache um fundamento e crie uma nova tecnologia. Não é assim que acontece?

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  24. Hayton, aqui rindo demais de sua crônica, que como tantas outras vividas por você, nos contextos parecidos pela própria parentela, faz a gente reviver dias de outrora na nossa inesquecível infância. E sorri mais ainda, vendo na minha mente, nosso tio Enoch, que tive o privilégio de conviver com ele, na longíqua Caxias (MA), com você , imaginei a cena da "conspiração" contra as muriçocas tão conhecidas. Quem não sabe que além dos mosquiteiros quase inteiros, das verdinhas sentinelas, do velho detefon...como não sorrir de fatos tão marcantes, mas hilários? Muito bom texto, como disse alguns colegas, dignos de ´series, filmes, teatro. Um abraço e até a próxima! Deus continue abençoando você com este dom e memória abençoada.

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  25. A diferença, talvez, resida no fato de que, nos idos de 1970, uma fake news dessa ficava, ali, geograficamente circunscrita e seu propagador dificilmente conseguiria propagar sua "pós-verdade". Hoje, o receio contido no penúltimo parágrafo pode ser pintado com tintas ainda mais fortes. O "novo normal", caricaturado brilhantemente por Antônio Prata, em recente artigo na FSP, será uma espécie de mundo distópico (trilogia "Divergente"), realidade querendo imitar a arte.

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  26. Sabe do que me lembrei? Daqueles sacos de água que os bares colocam pendurados pra espantar as moscas. E, dizem que funcionam mesmo. Como tu foi generoso com teu tio. E muriçoca é bicho curioso mesmo. E ainda cheia de loló de rapé na cabeça, só pode perder o primo e dar um frexeiro nas pedras. Cacacaca.

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  27. Sabe do que me lembrei? Daqueles sacos de água que os bares colocam pendurados pra espantar as moscas. E, dizem que funcionam mesmo. Como tu foi generoso com teu tio. E muriçoca é bicho curioso mesmo. E ainda cheia de loló de rapé na cabeça, só pode perder o primo e dar um frexeiro nas pedras. Cacacaca.

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