Na primeira sexta-feira do ano, um Zé qualquer invadiu e furtou uma escola estadual no Morro Grande, zona norte da capital paulista. O furto só foi percebido na manhã de segunda-feira, quando os empregados chegaram ao local e ainda encontraram um bilhete, possivelmente escrito por ele.
Numa folha de caderno, com os deslizes gramaticais de quem não teve o ensino fundamental obrigatório e gratuito assegurado pela Constituição de seu País, ele fez singelo apelo: “Me desculpe mesmo, de coração, por fazer isso, não tive escolha, [foi] precisão [necessidade]”, diz trecho do recado, assinado por “desesperado”. E a mensagem prossegue, com o autor pedindo “misericórdia” e “perdão” ao “senhor Jesus”.
No boletim de ocorrência de furto e vandalismo, registrado no Distrito Policial, relata-se que uma porta foi arrombada e foram levados três televisores, um computador e uma panela de pressão. Enquanto apuravam extensão dos prejuízos, encontrou-se o bilhete com o pedido de desculpas ao lado de uma Bíblia. Além do furto, registrou-se ainda que todas as câmeras do sistema de monitoramento da escola foram quebradas.
Ao ler a notícia, pensei na hipótese do chamado furto famélico, praticado por quem, em estado de extrema penúria, é arrastado a contragosto pela mais elementar carência de todos os seres vivos: alimentar-se. Se configurado o estado de necessidade, tido como uma das causas capazes de excluir a ilicitude da conduta, não há, sequer, que se falar em crime. Tá lá no corpo do art. 24 estendido no Código Penal.
Pensei também na sentença curta e certeira do escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina: “a justiça é como uma serpente; só morde os pés descalços”. Há várias formas de se dizer isso, porém, para mim, ninguém o fez com tanto veneno e precisão. Na mosca!
Quem é o delegado responsável pelo inquérito policial? Não sei. Certamente outro brasileiro – com nome, sobrenome e um pouco mais de sorte do que o autor do bilhete – que tentará por todos os modos descobrir a autoria do furto e como foi praticado. Tomará depoimentos, reunirá provas e fará seu relatório ao órgão encarregado de promover ou não a denúncia.
Aqui entre nós – e o resto do universo –, o que representam três televisores, um computador e uma panela de pressão em terra de mensalões, sanguessugas, petrolões e rachadinhas? Que país é esse cujos homens públicos se aproveitam do pânico instalado por um monstro que já engoliu sem palitar os dentes mais de 211 mil vidas e, à luz do dia, roubam com sofreguidão em obras e compras emergenciais de bens e serviços?
O abominável vírus das trevas, que nos assombra desde o começo do ano passado, além de desmascarar a insensatez daqueles que subestimaram o seu potencial de letalidade, acordou aos berros um ancestral com múltiplas cepas variantes (admitindo-se que dormia, o que é controverso, reconheço) que se reproduz por aqui desde a descoberta e o sucesso do pau-brasil no mercado consumidor europeu: o vírus da corrupção.
E em meio à avalanche de brasileiros infectados e mortos nos dias de hoje, escorrem pelo esgoto bilhões de reais em contratos investigados pelas polícias Federal e Civil e pelo Ministério Público, com indícios peludos de apropriação indébita, desvio de recursos públicos, estelionato, extorsão, falsidade ideológica, formação de quadrilha, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, prevaricação e outras práticas já corriqueiras.
Pois bem. Volto ao Zé qualquer – por certo, um dos 14 milhões de brasileiros na fila em busca de trabalho – que será identificado e chamado a depor sobre furto e vandalismo, ainda que, sem qualquer hesitação, tenha, na mesma hora, demonstrado arrependimento ao pedir desculpas, sobretudo às crianças, imagino, que ficariam sem os favores e os sabores da panela de pressão. Os aparelhos de televisão e o computador já não têm tanta serventia nestes tempos sombrios sem atividades em sala de aula.
A pronta decisão do Zé qualquer de se desculpar, pressionado apenas pela própria consciência, deve ser filha do propósito de não reincidir. Talvez isso, quem sabe, desperte no delegado a sede por um copo onde se misturem, ainda que em doses mínimas, cautela, compaixão, coragem, intuição e senso de justiça. Sem gelo, claro.
Se o delegado levar em conta as sutilezas e o contexto em que os vacilos foram cometidos, reconhecerá que não há, sequer, que se falar em crime. Dará o assunto por encerrado e lavará as mãos com álcool em gel. No máximo, aconselhará o Zé qualquer a não se envolver com certas figuras públicas que circulam por aí livres e leves – afinal, pouco pesam as tornozeleiras que serpenteiam alguns pés muito bem calçados.
E se aceitar um conselho do enxerido aqui, que mete a colher numa caçarola cujo desfecho parecia fadado a repetir-se, o delegado deveria pedir desculpas por amolar mais um sobrevivente – não sem arranhões! – da caridade de uma minoria que o detesta.
Arrepender-se e pedir perdão, delegado, não tem nada a ver com humilhar-se. É gesto de gente grande. Gente que não quer só comida, quer saída para qualquer parte, quer prazer para aliviar a dor. Quem sabe possa até inspirá-lo a doar à escola uma nova panela de pressão.
Aí basta torcer para que a Máfia da Merenda, velha conhecida na região, não meta a sua colher imunda no caso, furte a panela nova e o que resta de esperança nos que têm fome desde criança, inclusive de justiça.