A cumpadragem é coisa muito séria por aqui, como diz o poeta Jessier Quirino. Muito mais que o jeito pelo qual uma pessoa se torna aparentada de outra através do ritual católico do batismo, esse parentesco por afinidade chega a ser maior que laços de sangue porque compadre é escolha; parente, não.
Um caso sequer não me lembro de um amigo convidar outro para batizar o filho e o escolhido arranjar desculpa para escapar do compromisso, do tipo: “Não sei se vou estar na cidade no dia...” “Quem sabe é melhor você chamar alguém da família...” Se isso acontecer, a encrenca é feia. É desfeita a ser resolvida a murros e tabefes, com direito do ofendido de invocar a legítima defesa da honra.
Chicó Neto e João Grilo Neto – descendentes dos andarilhos da Taperoá dos anos 1950, de "O Auto da Compadecida" –, amigos desde as primeiras letras e números, eram bancários, quarentões, além de compadres e vizinhos no bairro de Manaíra, na orla de João Pessoa, até o começo do ano passado. Tão unidos que, sem o menor pudor, um dia João bateu na porta de Chicó com um pedido de risco cabeludo:
– Cumpade, me empreste o seu carro novo. Preciso dar um pulinho em Campina Grande e o meu tá na oficina desde a semana passada.
– Opa, cumpade, tá aqui a chave! Mas tenha cuidado, viu? Dei só a entrada e ainda nem paguei o seguro.
– Não se preocupe! Bem cedinho, devolvo lavado e de tanque cheio.
Tarde da noite, ao retornar, João notou que esquecera o controle remoto com que abriria o portão da garagem. Parou então numa vaga no estacionamento público em frente ao apartamento de Chicó, que a tudo assistia pela brecha da persiana. Foi só João apagar as luzes que Chicó desceu com a chave reserva e reposicionou o carro uns 200 metros adiante. No dia seguinte, João mal pulou da cama e já foi devolver o veículo. Quase infarta!
– Por Deus, cumpade, eu juro que deixei o carro bem aqui! – choramingava apontando a vaga com outro carro.
No primeiro sábado, João promoveu uma farra memorável com algumas amigas e amigos. Depois de beberem e fumarem de tudo, zeraram o estoque do freezer. E ainda tiveram o descaramento de substituir o conteúdo das embalagens por pedaços de macaxeira, batata-doce e rodelas de inhame.
Ao retornar cheio de fatos, filmes e fotos, Chicó decidiu oferecer um jantar aos amigos, inclusive o compadre. Minutos antes dos convivas chegarem, surtou ao descobrir o que havia descongelado com todo cuidado:
– Mulher! O miserável ainda escreveu nos sacos: Macaxeira ao thermidor, Batata-doce gratinada, Inhame em rodelas com alcaparras...
Ao retornar cheio de fatos, filmes e fotos, Chicó decidiu oferecer um jantar aos amigos, inclusive o compadre. Minutos antes dos convivas chegarem, surtou ao descobrir o que havia descongelado com todo cuidado:
– Mulher! O miserável ainda escreveu nos sacos: Macaxeira ao thermidor, Batata-doce gratinada, Inhame em rodelas com alcaparras...
Voltando ao ataque de pânico de João com o "sumiço" do carro novo do compadre, semanas depois Chicó e Ariana lhe fariam uma breve visita, levando a afilhada para pedir a benção do padrinho. João, que nunca foi de se preocupar com visitas inesperadas, improvisou o baião-de-dois com as sobras de carne-de-sol e feijão-de-corda do almoço, enquanto, na sala, Chicó amolecia o pescoço com uma cerveja gelada.
Comida na mesa, João senta-se em frente ao amigo e sugere:
– Afrouxe a gravata, cumpade, tire os sapatos... – os quais, sorrateiramente, seriam trocados por um par quase idêntico. Ocorre que Chicó calça 41 e João, 38. Quando, após o jantar, a bexiga obrigou Chicó a procurar o banheiro, os pés se recusaram a entrar nos sapatos.
– Mulher, meus pés incharam! Acho que a bebida tá me fazendo mal...
E sem videogame para matar o tédio de criança nessas visitas, a afilhada, sem querer, azedou o baião-de-dois para quatro:
– Padrinho, por que o pessoal do prédio vive dizendo que sou a sua cara?
– Esse povo fala demais, filha...
– Esse povo fala demais, filha...
Duas semanas adiante, João seria transferido para Recife, seguro de que lá teria melhores oportunidades de crescimento profissional. Como nunca gostou de despedidas, foi-se num piscar de olhos com a facilidade dos solteirões.
Bem próximo ao Natal, Chicó e Ariana vão ao Recife e, por acaso, reencontram João numa mesa às margens do rio Capibaribe, tomando chope com frango à passarinho no bar O Santo e a Porca, que fica na Casa Forte, bairro de atmosfera bucólica na zona norte da capital pernambucana.
Algumas tulipas depois, num daqueles silêncios que fazem parte de toda conversa entre velhos amigos e compadres, João confere (a incerteza é a mãe de todas as insônias):
– Nem toda besteira pode tirar o sono e acabar uma cumpadragem séria como a nossa, né cumpade?
– É verdade... – consente Chicó.
Calada até ali, Ariana encosta a cabeça no peito do marido, boceja e arremata:
– Vamos? Tô morta...