Praga de guri

O guri viu quando aquela mulher, fingindo alimentar as galinhas que ele criava no quintal com tanto carinho e milho, atraiu duas delas para a cozinha com seu tititi e um punhado de grãos, liberou a menor, fechou a porta e condenou a mais gordinha à morte. Viu ainda quando a mulher pisou as pernas dela com a sandália do pé esquerdo e lhe depenou o pescoço, onde bateu com a lâmina da faca para “chamar” o sangue, cortou com um só golpe a carótida e o jorro vermelho escorreu numa vasilha até a coitada se render desfalecida. Guardou assim na memória uma das cenas mais marcantes de sua infância. 


Sentiu-se pior ao se dar conta de que aquela mulher era a sua própria mãe. O mal-estar aumentou quando viu o corpo que tantos ovos lhe trouxera, ainda morno, ser jogado dentro de um caldeirão amassado com água fervendo – o que afastava qualquer chance de socorro à custa de mercúrio cromo, gaze e esparadrapo – e dele serem retiradas todas as penas sem qualquer remorso. Depois, ainda veria sapecado numa boca do fogão o que restava de penugem.

 

O guri assistia paralisado ao desenrolar do filme macabro. Via em cores mortas o fim de sua protegida, com a matadora a cortá-la em pedaços – arrancou-se até a cabeça de olhos foscos e as pontas dos dedos com unhas e tudo – do tamanho das fatias em que seu coração de criança fora repartido. Chegou a imaginar que, de tão arrependida da atrocidade que cometera, ela agora tentava curar os ferimentos com uma mistura de vinagre, pimenta do reino, cominho, alho e sal. Mas já não havia sinal de vida quando perguntou por perguntar:

– E o sangue, vai jogar fora? E os ovinhos sem casca?

– Saia daí... Não mexe nisso! Vá brincar no quintal, agora! – rebateu a mãe.

 

Foi melhor. Era importante ir até o galinheiro checar como as amigas da infeliz reagiram ao que acontecera, se viram ou ouviram alguma coisa, se estariam necessitadas de um pouco de água para se restabelecerem do choque depois daquela tragédia numa manhã de domingo, dia em que, mais cedo, o guri vira a própria mãe de joelhos, na capela do colégio, a rezar pelo bem de todos, menos do galinheiro. Quem sabe iniciariam ali uma greve de fome em protesto pela morte da gordinha. Recusariam desde milho até as sobras de almoço e definhariam com dignidade até a morte – fim de todos os viventes – por uma causa nobre. "Quem não luta pelos seus direitos não é digno deles", diria o machão do quintal cantando de galo no pedaço.     

 

Era pouco provável, entretanto, que aquelas criaturas fossem resilientes e corajosas a esse ponto naquele distante ano de 1967. Para sua ingrata surpresa, o guri não notara no galinheiro sinais de tristeza ou de revolta, uma lágrima sequer fora derramada no chão diante da barbárie. Todas pareciam amoldadas à vida miúda de fundo de quintal, à espera da água, da comida ou do estupro diário do velho galo que, sem o menor romantismo, nunca negociou os termos de cobertura das namoradas. Inocente, aliás, o guri achava que aquilo não passava de gentileza para protegê-las do vento frio à sombra da mangueira, apesar dos esporões afiados próximos ao cangote. 

  

Não deu meio-dia e a mãe chamou o restante da família – pai e quatro filhos – para almoçar “galinha à cabidela”, eufemismo para descrever o resultado da covarde e premeditada execução da gordinha, que ademais fora cozida cruelmente no próprio sangue:

– Eu quero uma coxa! – antecipava-se a irmã mais velha.

– A titela é minha! – gritava o irmão do meio.

– Me dá o coração e a moela! – cobrava outro.

– Pelo visto, mulher, só vai sobrar ciscador, grade, mangote e sobrecu pra nós... – brincava o pai com a mãe, sem graça alguma para o guri.

 

Naquele ano, por coincidência, dois aviões haviam se chocado no céu do Ceará, deixando no ar um mistério que divide opiniões até os dias de hoje, mais de meio século depois: uns acreditam em conspiração seguida de assassinato; outros falam em mera fatalidade. A bordo de uma das aeronaves estava o marechal Castelo Branco, primeiro governante do regime militar, tido como alguém de perfil moderado nas Forças Armadas. Três anos antes, no discurso de posse, chegara a cogitar eleições para 1965. Havia deixado o poder justamente quando engrossava as canelas o grupo “linha dura” liderado por seu sucessor, general Costa e Silva, grupo esse que só largaria a cadeira, o carimbo e a caneta mais de 20 anos depois. 

 

Mas voltemos ao almoço. Ninguém percebeu a tristeza que tomou conta do guri. Sua família, alheia ao que se passava nas entranhas do submundo político-militar, estava feliz, de barriga cheia, assim como as criaturas sobreviventes do galinheiro, que não viam nada de mais naquilo que acontecia no quintal. "Tudo vale a pena se a ração não for pequena", deviam cacarejar entre si, porque embora fossem galinhas, adoravam a frase de Pessoa.

 

Um mês depois, bateu a murrinha (peste aviária) e dizimou todo o plantel, inclusive meia dúzia de pintinhos. Desconfiou-se – pura calúnia! – de que teria sido praga do guri, inconformado com a falta de compaixão e solidariedade entre as galinhas e com sua própria incapacidade de mudar o que via de errado no quintal de casa. 

Comentários

  1. Na cena rural que fui criado pode somar à atrocidade narrada os atos de pelar um porco, tirar o couro de um bode e tantos mais. O olhar de criança sendo narrado pelo adulto com autonomia.

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  2. Imaginação muito fértil. E a gente acha que criança não tem juízo

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  3. Pelo visto, esse guri cresceu, aprendeu a cozinhar (aliás um belo hobby), e faz uma galinha ao molho de verduras (sem sangue) que fica uma delícia. Dá pra repetir! Não é Jurema!!?

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    1. Sem dúvida, Avelar! Com o passar dos tempos, a realidade e outras belezas da vida afloram e, geralmente, suplantam os "traumas sentimentais" da infância, gerando novos e inovadores modos de vida... 😂

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  4. Lembrei de duas situações: primeira, o filme "A FUGA DAS GALINHAS"; segunda, o mesmo ocorreu comigo na infância, mas tratava-se de um carneiro.

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  5. Fiquei com dó do guri, mas da galinha não. Brincadeira à parte nunca tinha pensado sobre esse prisma. Triste realidade de outrora, já que hoje as penosas têm seu ninho nos supermercados. Grande abraço meu caro Hayton

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  6. Nossa! Viajei à minha infância e revivi essas mesmas cenas transcritas, tintin por tintin! E com um agravante, diferente do guri que ficou traumatizado, era eu que tantas vezes estava a perseguir e entregar a penada escolhida por minha mãe para o sacrifício.

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  7. Pelo visto o trauma do assassinato foi superado.

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  8. MARMININO! Nem por isso o menino virou vegetariano!! Quando escolhe uma " pesada" de carne, nem lembra que vem de uma " gordinha" bem maior que leva uma porretada na cabeça pra alimentar dezenas...
    Relato triste, mas criança se apega mesmo, aos bichinhos que " cria".

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  9. Tragicômico! Rsrsrs
    Impressionante o realismo (transportei-me para a cena do crime)!
    Tenho certo trauma dessas matanças. De porco, especialmente, que gritava de desespero (sempre tapei os ouvidos, e evitava ficar por perto - mas depois de o “mal” ter sido feito, passava a resistência).

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  10. Pela narrativa, podemos atestar uma execução que proporcionou um belo almoço de domingo, regado a uma suculenta e deliciosa galinha à cabidela. Quanto ao acidente aéreo, reza a lenda que o marechal Castelo Branco só embarcou naquele fatídico voo porque haveria se negado a tomar uma “saideira”.

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  11. Eu tenho quase certeza de que a murrinha foi vingança da pobrezinha "alma penada ", que, ao passar para o outro lado, jurou ao guri: "Fique triste, não, meu bom, minhas irmãs, irmãos e amante logo estarão comigo a me fazer companhia e, assim, esquecerei a tragédia de que fui vítima ".

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  12. Como em outras oportunidades, me fez voltar à minha meninice, entretanto, sem essa sensibilidade.

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  13. Texto envolvente, muito Bom. Faz revivermos bons tempos no decorrer de sua leitura, trazendo, inclusive, reflexão sobre o crime bárbaro. Kkkk. Quem ja provou, lembra somente do sabor, do prazer em saborear uma galinha.........

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  14. Lembro bem desta cena. Minha vó e sua assistente preparando o almoço de domingo pra reunir os filhos em torno da mesa. A captura da vítima sempre ficava por nossa conta. Kkkk

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  15. Quando eu era guri, também na segunda metade dos anos 1960, eu fui diretor e ator de alguns "filmes macabros, iguais ao narrado nesta crônica. Confesso que hoje eu não teria a mesma coragem e sangue frio para molhar as mãos com o sangue quente de muitas penosas...

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  16. Voltei a minha infância em Itambe numa casa com um vasto quintal onde criar galinhas para o consumo era comum. As da minha casa não comiam somente milho mas também baronesa que vovó buscava no rio, pois, segundo ela o milho era muito caro

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  17. Vi essa cena milhares de vezes. Hoje realmente parece até uma atrocidade.
    Parabéns pelo relato, como sempre rico em detalhes mas gostoso de ler.
    Abs.

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  18. Muito bom, Hayton!
    O seu texto me fez lembrar dos sábados da minha adolescência quando tinha por obrigação ajudar a minha mãe a fazer feira, época que só se comprava mantimentos nas grandes feiras semanais, e a galinha de domingo era item que não faltava. E cabia a mim ser o carrasco e fazer toda aquela operação descrita por você, antes de cumprir a sentença. Hoje, não faria de jeito nenhum.

    Lembrei, também, do pequeno conto de Clarice Lispector "Uma galinha". Não sei se você conhece.
    Grande abraço.

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  19. Uma galinha à cabidela tem muito valor...

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  20. Lembrei da casa de minha avó/avô em Serra Caiada, onde se criava galinha para consumo da família. Tinha uma pena enorme das galinhas e “fugia” das cenas onde cortava o pescoço e escorria o sangue para panela. Belo e real texto.

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  21. Um de seus melhores textos, Hayton! Viajei para a minha infância. As vizinhas levavam as galinhas para a minha mãe matar. Gostei muito!

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  22. Lembrei de tantas vezes que corri atrás de “penosas” para que elas fossem parar nas panelas, mas lembrei mais ainda daquelas, que entre um grupo de amigos, roubávamos durante as serenatas na fronteiriça São Borja nos anos 60. Belo texto.

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  23. Todos nós de origem rural, ou de região metropolitana, como era o caso de Joaquim Pires, no Piauí, vivenciamos algo semelhante. Fui o gestor do chiqueiro das galinhas da minha casa, dos 7 aos 10 anos, mais menos. Fui preparado para entender que as bichinhas eram criadas para as duas finalidades, produção de ovos e carne para a família. Esse sentimento mais humanitário se aflorou na idade adulta, mas de pecado ninguém está livre. Uma cabidela acompanhada de uma cachacinha, é um tentação para qualquer cristão.
    Já estou lendo "Vai que dá certo ano que vem."

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  24. Pois é... também tive meus episódios "guri". Meu medo, hoje, é o de não me assustar mais com a matança das galinhas e ver o galinheiro ser destroçado pela queda de um avião!!

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  25. Santa Luzia do Norte, sítio Guardiano, década de 50. Ainda lembro da minha vó, ao entardecer, indo ao grande poleiro que ficava logo atrás da casa para escolher a galinha que seria abatida no dia seguinte para o almoço mais caprichado para o neto da capital. O problema maior era encontrar, no dia seguinte, entre bananeiras e mangueiras, a "penosa" marcada para morrer. Havia, no sítio, uma expert, a exemplo de D. Eudócia, para o ritual "macabro".
    Beleza de texto!

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  26. Me senti o próprio guri com pena das bichinhas de pena.... O fato é que o coração não sente o que os olhos não vêem, então sempre evitei as horas trágicas da preparação das galinhas e chegava só na hora da degustação. Mais uma vela história, Hayton. Parabéns!!

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  27. Blz, Hayton! Relembra uma cena inimaginável hoje, que sempre achei meio "violenta", mas acho que o dificil mesmo hoje, principalmente, prá moçada de capital, é ver uma galinha viva ao vivo, só conhece o cadáver já esquartejado no supermercado! Bela crônica!

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  28. Belo e envolvente texto.
    Abração
    Zezito

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  29. Eu tive um problema parecido, minha filha mais velha, aos oito anos de idade, nosso último ano no interior, flagrou a a moça que trabalhava em nossa casa executando uma galinha no quintal.
    Apavorada, aos prantos correu pra cima da mãe gritando incontrolavelmente. Foi duro, o trauma provocado fez com que não comêssemos galinha por mais de vinte anos.
    Agora, já curado mas sempre com alguma cicatriz, você produz uma peça tocante dessa, senti-me aínda menor.
    De qualquer sorte, valeu, é bom relembrar as dores, faz parte do aprendizado...

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  30. Dos tempos em que não existiam grandes granjas e frigoríficos, se comia arroz, feijão e bife na semana é a comida de domingo era uma massa com salada de maionese e penosa com molho. Assisti muitos assassinatos assim é em um certo Natal meu tio n teve coragem de desnudar um peru e deu um porre no bicho é um tiro no juízo dele...pense num estrago...

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  31. 👍👏👏👏
    Por ter presenciado cena idêntica a esse "galinicídio" , passei muito tempo com medo de sangue. Só depois de adulto é que melhorei.
    😬😬😬🤪

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  32. Texto mais uma vez primoroso. O escritor Hayton está mais afiado que o facão da assassina, digo, da cozinheira! Uma das descrições que mais chamou minha atenção foi o gesto dissimulado e traiçoeiro de atrair a galinha com grãos de milho e tititis. Lembrei da minha mãe: às vezes ela corria pedagogicamente atrás da gente, pela manhã, com a chinela na mão pra fazer justiça contra alguma traquinagem. Como não conseguia pegar nenhum de nós, aparentemente desistia. Só que à noite, na hora do banho, entrava no banheiro com uma varinha de marmelo nas mãos e ministrava sua “aula cívica” no lombo dos filhos pelados e indefesos.

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  33. Hayton, como esse guri da sua crônica, você no caso, o narrador onipresente, descreve muito bem o famigerado ritual da matança da penada que morre a cada almoço de domingo nas mesas das famílias brasileiras. Inclusive aprendi a cortar junta por junta, como minha mãe ensinou-me, por ser a mais velha, para repassar para as mais novas, era de praxe, e ao contrário de seu personagem, naquela época eu tinha interesse em aprender as prendas de uma mocinha, futura dona de casa; hoje eu prefiro comprar já abatida no box onde vende penadas abatidas. E mais uma vez quero parabenizá-lo por tão gostoso texto de ler, nos remete à nossa infância, tempos bons que não voltam mais. Até a próxima. Um abraço

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  34. Também presencie, muitas vezes, essa cena, lá em casa. E achava uma maldade o que minha mãe fazia com as galinhas, mas o que ela fazia com os cágados era muito pior. RS RS rs.

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  35. Agostinho Torres da Rocha Filho22 de novembro de 2020 às 10:12

    Quanta criatividade!!! Transformar uma triste lembrança infantil numa obra de arte literária dessa magnitude é digno de admiração. Belo texto. Parabéns!!!

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    1. Concordo com você Agostinho. São lembranças ainda vivas nas nossas memórias! Diga-se de passagem que tenho obervado seus comentários e escreves muito bem, por que não arrisca seguir esse seu grande mano, um grande escritor, em especial, um excelente cronista? Um abraço

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  36. Rapaz, como a vida é igual... quando criança, criávamos, desde pintinho, uma galinha que foi batizada de cocó... vivia dentro de casa, sempre no colo de alguém. Mas sabíamos que nossa mãe não era muito a favor disso. Um dia, porém, um almoço com frango... todos comemos e estava muito bom. Só não imaginávamos que tinha sido a cocó... pobre, nem enterro teve...kkk

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  37. Belo texto, mas coutadas das galinhas...
    Abs

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  38. Eu morria de pena das "penosas", enquanto não cozinhava.

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  39. Lembrei de minha avó fazendo o mesmo...e como sinto até hoje o sabor da galinha no fogão a lenha. Na época não tinha muita noção do sofrimento do animal...amei a narração

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