Se ainda estivesse entre nós, Nerival, um sergipano narigudo, sobrancelhas espessas, a cara do feiticeiro Gargamel (aquele do gato Cruel!), de Os Smurfs, certamente teria boas histórias para contar.
Trabalhamos juntos no início dos anos 90, em Salvador, quando ele me contou de uma memorável carteirada em que se envolveu, em Aracaju, onde passava os fins de semana com a esposa e os filhos.
Se fosse vivo, morreria agora de rir daqueles que, neste momento, sob inconfessáveis meios e modos, sonham com um tiro certeiro capaz de furar a fila da vacina contra a covid-19. "Essa gente não toma jeito!", diria ele.
A carteirada a que ele se referiu não foi do tipo em que o sujeito exige privilégio por conta do cargo, profissão ou posição social que ostenta para obter vantagens não financeiras (cortesias, favores etc.), inacessíveis aos anônimos mortais.
Como fez há poucos meses um certo "deusembargador" ao atropelar no grito um guarda municipal – “veja com quem você está se metendo, seu analfabeto?!” – após ser multado por não utilizar máscara numa caminhada no litoral paulista, em plena pandemia.
Era Sábado de Aleluia, véspera da Páscoa. Nerival bebia cerveja com uns amigos na sala de estar quando a mulher lhe pediu para substituir o botijão de gás do fogão onde, com sal e afeto, ela cozia um chambaril com linguiça, alho, pimenta-do-reino, cebola, louro, tomate, coentro, batata doce, cenoura, couve, jerimum e banana-da-terra. |
Para infelicidade de ansiosos comensais, que pelo cheiro já intuíam o sabor da primeira garfada, o bujão reserva também estava vazio. Coube ao dono da casa pegar as chaves da Belina e ir até a revendedora de gás que, de imediato, não tinha como providenciar a entrega em domicílio.
Nerival subia a rua principal do bairro ao ouvir o barulho dos botijões despencando do porta-malas do veículo, em movimento. Ultrapassara no pé da ladeira, havia poucos segundos, um caminhão que transportava soldados da Polícia Militar. O motorista freou bruscamente ao ver os “gordinhos metálicos”, velozes e furiosos, rolando em sua direção.
Enquanto alguns cachorros latiam no desmantelo daquele começo de tarde, militares pulavam da carroceria prontos para enfrentarem o responsável pelo atentado à viatura em pleno processo de redemocratização do país, que mal havia escolhido o primeiro presidente civil desde a ditadura. “Só pode ser coisa de petista!”, vociferava alguém.
De boné e bermudas, descalço, barba rebrotando, hálito de quem, hoje, sopraria a contragosto o bafômetro numa eventual blitz da Lei Seca, Nerival procurou manter a calma diante dos indômitos guerreiros, vestidos de fardas cáqui e coturnos engraxados, todos de armas em punho para o revide à suposta agressão, no cassetete, na ponta do punhal ou na bala.
Gaguejou ao explicar-se e o caldo só engrossava pro seu lado, prestes a empelotar e descer raspando goela abaixo:
– Saia do carro com as mãos pra cima! – um militar ordenou, já partindo para a revista de praxe.
– Calma! Foi a corda que arrebentou...
– E se esta merda explodisse?!
– Mas tão vazios...
– Me dê seus documentos...
Sem poder avisar a ninguém do acontecido – não tinha ficha telefônica nem orelhão próximo, nem existiam celulares à época –, Nerival esperava o golpe final, o nocaute. Mas ao entregar os documentos, veio o estalo:
– O senhor acha que um gerente do Banco do Brasil, com mais de 20 anos de carreira, faria uma desgraça dessas com um pelotão da PM? – disse, exibindo a sua nova carteira de identidade funcional, com fotografia 3x4 recente, barbeado, de paletó e gravata.
– Tá bom... E daí?
– Veja, tenente – argumentou Nerival, exagerando de propósito na patente de seu interlocutor –, se tem aqui neste estado duas instituições respeitadas, uma é a PM e a outra é o BB, concorda? Nós dois pertencemos a elas. Foi acidente... Me desculpe, por Nossa Senhora. Só vejo aqui pai de família igual a mim...
O sargento conferiu a carteira identidade funcional – nem reparou direito no documento do veiculo e na habilitação do motorista – e, com o dedo indicador, chamou um dos soldados:
– Ei, você aí! Ajude o rapaz... Amarre os bujões, viu?
Menos de uma década mais tarde, soube de outra carteirada que aconteceu na região metropolitana de São Paulo, envolvendo um determinado dirigente do BB, conhecido pela empáfia travestida de franqueza com que se mostrava feito um pavão imperial. Omito o nome para não requentar episódio incompatível com a imagem da instituição que ele representava.
Numa blitz, com a arrogância escorrendo pelo colarinho engomado e branco, o dirigente desceu do carro com o queixo apontando para o horizonte e partiu com tudo na base do “você sabe com quem tá falando?” O policial estimou o diâmetro da cauda do pavão e foi claro, curto e reto:
– Levante os braços e abra as pernas, agora!
O baculejo não poderia ter sido mais longo e constrangedor, na presença de outros membros da comitiva (dirigentes da empresa e seus motoristas), todos liberados, digamos assim, de uma abordagem mais profunda como aquela.
Pois é, Nerival, essa gente não toma jeito mesmo! Li outro dia que 22 de abril de 1500 marcou oficialmente a chegada dos portugueses à costa brasileira, porém só no dia seguinte foram feitos os primeiros contatos entre visitantes e nativos. Pero Vaz de Caminha, na célebre carta ao rei D. Manuel I, o Venturoso, relatou que “eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as vergonhas...” Minutos depois, imagino, começaram as carteiradas na Ilha de Vera Cruz.