Pintor de palavras
Ele chegou ao Rio de Janeiro – na época, capital da República – antes dos 20 anos de idade. Pretendia cursar Direito. Muito maior que a expectativa racional de grandes embates nos tribunais, o coração o levaria ao jornalismo, à literatura e ao Botafogo, suas primeiras paixões.
Acriano de Xapuri, Armando Nogueira (1927 – 2010) é considerado o pai do jornalismo esportivo moderno, o poeta das crônicas esportivas. É reconhecido também como o homem que criou o padrão de telejornalismo que se conhece por aqui e que colocou o Brasil no mesmo patamar das grandes nações no quesito.
Dono de um estilo elegante e original de escrever e falar, escapulia dos lugares-comuns que caracterizavam o texto de boa parte da crônica esportiva brasileira e, sem pressa, catava com a ponta dos dedos e os olhos do coração a figura de linguagem mais apropriada para embalar o seu deslumbramento.
Diante de um artista desse naipe de prosa, verso, chutes, passes e dribles, não sabia como puxar conversa com ele que, por acaso, se sentara a meu lado nas arquibancadas do clube Marapendi, na Barra da Tijuca, no Rio, naquele tórrido fevereiro de 2001, onde em poucos minutos assistiríamos à primeira partida do confronto entre Brasil e Marrocos pela Copa Davis, entre Gustavo Kuerten (Guga) e Karim Alami.
Lembrei-me então de que dissera na tevê que o futebol não aprimorava os caracteres de ninguém, mas os revelava. E que também não gostava de Fórmula 1 porque o capacete escondia a emoção do esportista aprisionado no cockpit de uma máquina.
Em cima disso, e com a ousadia natural de um aprendiz diante do mestre, arrisquei:
– Bom dia! Gosto muito de seus textos.
– Que bom! Bom dia.
– Posso dar uma dica?
– Claro!
– Por que não escreve sobre os rostos do futebol?
– Como?
– Veja o Edmundo. É a cara do sujeito atormentado, confuso, furioso, a ponto de explodir...
– Quem mais?
– O Sávio, que jogou no Flamengo e tá no Real Madrid. Triste, depressivo, parece que vai desabar no choro a qualquer momento...
– Interessante...
– E o Dodô, ex-São Paulo? Vive rindo com as sobrancelhas o tempo todo. Parece um moleque com seu brinquedo, mesmo quando apanha dos zagueiros.
– É... – admitiu o cronista, com um sorriso curto.
– E o olhar gelado de Romário? E o Dunga, hein?!
Nada comentou. Dunga havia se aposentado no ano anterior. Ainda que monossilábico, parecia concordar com minha tese de que o tema poderia render uma boa crônica. Achei que aproveitaria a sugestão e produziria outro de seus textos primorosos. Seria fácil para quem, como ele, conheceu outros rostos com traços singulares do mundo do futebol, como: Heleno de Freitas, Manga, Garrincha, Pelé, Marinho Chagas, entre outros.
Esperei em vão durante algum tempo. Não deu em nada. O poeta das crônicas esportivas, elegante e educado como poucos, ouviu-me apenas por generosidade e carinho de um ídolo para com seu fã, ou talvez estivesse concentrado na partida de tênis que começaria em instantes.
Agradeci a atenção e o deixei mergulhado em suas abstrações. Afinal, tanto ele quanto eu estávamos ali para ver Guga que, naquele mesmo 2001, quatro meses mais tarde, gravaria a fogo, ferro e lágrimas, as quatro letras de um singelo apelido na história do tênis mundial ao vencer o espanhol Sergi Bruguera, tornando-se o primeiro brasileiro a conquistar por três vezes o lendário Torneio Roland-Garros, na França.
Essa conquista de Guga, aliás, inspirou Armando Nogueira a publicar um texto épico e ao mesmo tempo revelador, intitulado O Picasso do Tênis, em que distribuiu pinceladas de prosa e poesia com tons raros:
“... Cada um com o seu sopro divino... Afinal, se Guga desenha mal, Picasso era péssimo tenista. Jamais acertou uma paralela de esquerda, nem uma deixadinha como a de Guga que goteja ao pé da rede, tênue, mínima. Uma obra de arte...”
“... E, como no milagre dos pães, Guga começa a distribuir pelos quatro cantos da quadra uma vertiginosa multidão de bolas, cada qual com o seu matiz: as paralelas, como sempre, voluptuosas; as cruzadas, pra variar, românticas; os lobs são meio cínicos, glaciais; as deixadinhas, delicadas, sutis, quase eróticas; os aces – Deus do céu! –, haverá, no tênis, golpe mais perfurante que um ace de Guga?...”
“...Hoje, o universo está aos pés de Guga. Melhor dizendo, nas mãos de Guga. Mãos que manejam o mundo. O Picasso do tênis...”
Para mim, estava claro porque o mote que ofereci ao mestre não lhe serviu. O amor por outros esportes, àquela altura, expandia à medida do seu desencanto com o futebol, em especial com o Botafogo dos Dimbas, Tailsons e Tingas de então. E o tênis, que passou a praticar já adulto, de todos os esportes era o que mais o enfeitiçava, graças, inclusive, a Guga.
Guga que, lamentavelmente, ainda em 2001 seria diagnosticado com uma lesão no quadril que o fez se submeter a três cirurgias antes de aposentar-se, em 2008, aos 31 anos, sem recuperar a forma que o colocou no topo do universo.
Conheci Guga em 2008, recém-aposentado. Pensei em comentar com ele o histórico texto de Armando Nogueira. Não o fiz e me arrependo disso. Faria diferente, claro, se soubesse que, dois anos depois, o Picasso da crônica esportiva iria pintar em prosa e verso na eternidade.
Texto de gente grande. Armando Nogueira gostaria de relembrar esse breve momento através da sua narrativa.
ResponderExcluirTexto iluminado! Me senti como se estivesse assistindo o jogo de tênis ao lado dessas feras...
ResponderExcluirTexto sublime. Sugiro, clonando seu pedido ao mestre Armando Nogueira, que faça as crônicas que pediu. Os personagens? Você escolhe.
ResponderExcluirReforço a sugestão.
ExcluirParabéns Hayton, sempre com a memória fina.
ResponderExcluirAdorei sua crônica, eles merecem.
Dayse Lanzac
Realmente, um gênio. Dava gosto ler e ouvir o Armando
ResponderExcluirMuito bom
ResponderExcluir👏👏👏quanta maestria!
ResponderExcluirQue bom fazer-nos recordar dos excelentes textos de Armando Nogueira, com uma crônica que, certamente, o deixaria orgulhoso de lê-la.
ResponderExcluirExcelente crônica, Hayton! A cada publicação, uma revelação do seu talento. Assim como o grande Armando Nogueira, formado em Direito, foi um dos maiores jornalistas do país, você, um executivo de destaque do BB, revela-se através de suas belas crônicas um escritor nato. Sou fã!
ResponderExcluirParabéns por mais outra bela crônica! 👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluirBrilhante, como sempre! Parabéns meu amigo.
ResponderExcluirComo sempre, me sinto mais feliz e leve após ler essas linda e sensíveis crônicas. Gratidão
ResponderExcluirMuito legal, Hayton. Quando vi sua foto com o Guga, lembrei que ele esteve na AABB Brasília, numa clínica de tênis para a garotada, e eu estava lá. Os mais empolgados pra registrar o momento com nosso grande ídolo eram os pais das crianças.
ResponderExcluirContinue nos brindando com seus textos e histórias maravilhosas. Um forte abraço, Haroldo
Fiquei na expectativa de o grande Armando Nogueira atender ao seu pedido. Que linda crônica não seria! Descrever toda a angústia de Heleno de Freitas estampada no rosto; ou alegria de Garrincha ao driblar um zagueirão russo; ou ainda a soberba de Pelé ao arrancar, driblar toda defesa e mostrar sua superior musculatura.
ResponderExcluirHayton, está lançado o desafio, hercúleo, de você escrever a crônica que o mestre Armando deixou escapar.
Vou tentar, mas será como Jacozinho tentando marcar um gol de Pelé. Vai que dá certo, não é?
ExcluirMais uma poesia em formato de prosa, Hayton. Falo da sua crônica, claro. A costura entre a tua abordagem e a citação ao Armando ficou maravilhosa.
ResponderExcluirComo outros leitores sugeriram, creio que vale você mesmo aceitar o desafio de escrever a crônica que tentou “arrancar” do Armando Nogueira. O início você já tem!!! Rsrs
Parabéns!
Mário Quintana, Carlos Drummond, Cecilia Meireles, L.F.Veríssimo, Armando Nogueira, entre outros, e Hayton Rocha reforçando esse time!
ResponderExcluirOpraí, tá pensando que o véi aqui engole corda? Já passou da idade... Rsrsrs
ExcluirConcordo plenamente.
ExcluirUma crônica de craque falando sobre outros. Muito boa!
ResponderExcluirUm conterrâneo acreano (discordo da grafia "acriano"...😂) brilhante como protagonista de um cronista alagoano igualmente brilhante. Também acredito que você, Hayton, faria melhor escrevendo sobre os "rostos do futebol" e de outros esportes, como sugerido ao mestre Armando Nogueira. 😂
ResponderExcluirGostava de “acreano” até descobrir que o correto é “acriano”, depois da última reforma ortográfica. Pelo mesmo motivo existem os termos açoriano (Açores), iraquiano (Iraque), bocagiano (Bocage), baudelairiano (Baudelaire), borgiano (Borges), goethiano (Goethe), nietzschiano (Nietzsche), sartriano (Sartre), shakespeariano (Shakespeare). O teatro de Nelson Rodrigues é rodriguiano; a obra de Chico Buarque é buarquiana.
ExcluirMas estou com você, meu caro Aramis: preferia a grafia anterior. Por quê? Costume.
Para os acrEanos, essa regra da reforma ortográfica não faz o menor sentido e não tem valor legal... tanto que, "após consulta pública e análise na Assembleia Legislativa do Acre (Aleac), o governador Tião Vianax (PT-AC) sancionou a lei N° 3.148 que institui o termo “acreano” com “e” como o gentílico oficial do estado. O texto foi publicado na edição desta quinta-feira (28/07/2016) do Diário Oficial do Estado (DOE)".
Excluirhttp://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2016/07/lei-institui-termo-acreano-como-gentilico-oficial-no-acre.html
(...) em meio à polêmica, vale a pena registrar as reações mais criativas dos cidadãos, que ilustram o bom humor do povo “do pé rachado”. Como essa fina flor da indignação, colhida em rede social: “É melhor devolver o Acre pra Bolívia do que escrever ‘acreano’ com ‘i’”...
https://agencia.ac.gov.br/acreano-ou-acriano-artigo/
Quem disse que dá pra discutir com advogado dos bons, hein?! Eu poderia atualizar o texto reescrevendo a abertura do parágrafo assim: “Natural do Xapuri(AC), Armando...” Mas aí perderia o contraditório instalado aqui no campo “comentários” 🤣😂👀
ExcluirExcelente! Você tem a capacidade de navegar por diversas áreas com maestria.
ResponderExcluirArmando Nogueira foi homenageado no Acre dando nome a um colégio de ensino médio voltado aos esportes.
Olha aí, Marina (acreana de coração) no que dá o nosso "bairrismo"! 🤣😂👀
ExcluirMuito bom! Mais um ...
ResponderExcluir3 craques juntos numa bela Crônica! 👏👏👏
Abs
Excelente!
ResponderExcluirJá que o mestre não quis explorar sua ideia, agora ela cabe a você, meu amigo!
Garanto que o resultado não ficará a dever!
Armando Nogueira, humilde, nao fez o texto dos rostos porque, honesto, sabia que seria plágio. O texto já existia. Só não pulou, ansioso, do coração do Hayton pro papel do mundo.
ResponderExcluirQuien soy yo, Marcão?
ExcluirJuremão arretado
ExcluirParabéns por mais uma bela crônica, que me fez lembrar do também cronista esportivo, aliás o melhor que li, vi e ouvi, Armando Oliveira, também colega do BB.
ResponderExcluirE Guga, esse aí foi um fenômeno, jogando tênis e também no relacionamento com os fãs e admiradores.
Também tive a oportunidade de vê-lo brilhar no Brasil Open em Sauípe.
Mais um bálsamo, pro nosso coração e memória! Relembrar Armando Nogueira sempre nos traz lindas recordações. E Guga então? Um dos maiores ídolos e heróis de nosso esporte. Idolatrado em Paris e no mundo do tênis!
ResponderExcluirUm atleta que, alem do enorme talento, tinha virtudes irrepreensíveis como profissionalismo, comportamento ético e uma simplicidade desconcertante.
Valeu demais Hayton!
Quem quer faz, quem não quer manda (ou sugere), reza um antigo ditado popular. Quis o destino reservar a nobre honra de redigir a crônica sugerida não ao mestre, mas ao discípulo. Portanto, mãos à obra! Os leitores já estão na expectativa. A propósito, parabéns pelo texto de hoje.
ResponderExcluirComo disse lá atrás, vou tentar, meu irmão. Tomara que dê certo. Obrigado pelo reconhecimento.
ExcluirVai dar certo! Torcida não falta, rs.
ExcluirSempre se superando, o que nos parece impossível quando acabamos de ler uma crônica sua, você produz outra maravilha e acerta "na mosca". Afinal, Armando foi mais que uma pessoa, um verdadeiro personagem, tão grandes, inspiradores e inesquecíveis eram seus méritos
ResponderExcluirescrevendo, falando ou dirigindo sua competente equipe jornalística.
Acreditasse eu no esotérico ou metafísico, teria aqui a certeza de que nosso personagem estaria agora com sua crônica "debaixo do braço", vibrando e mostrando-a a seus inúmeros convivas - no banquete
providenciado para comemorar - na convicta certeza de que não recebera até ali, mesmo quando habitante "deste pequeno asteróide que todos chamam de Terra" - viva Zé Ramalho -, homenagem tão bela e brilhante.
Por fim, associo minha ansiedade às várias acima reveladas pela crônica que Armando lhe deveu e que você agora se paga nos presenteando. Capriche nos personagens...
Caro Hayton, mesmo não sendo muito afinada com esportes como você conhece esse universo muito bem, mas vou pegar carona com os seus amigos leitores com a sugestão: "Como outros leitores sugeriram, creio que vale você mesmo aceitar o desafio de escrever a crônica que tentou “arrancar” do Armando Nogueira. O início você já tem!!!". E como bem disseram outros, quando pensamos que você nos presenteia com uma bela crônica, você sempre se supera na outra. Mais uma vez parabéns, pelo bom jogo com as palavras que Deus lhe concedeu como dom nato. Um abraço e até as próximas belezuras de textos.Tenha certeza de que você faz parte do time dos grandes cronistas brasileiros, primo. Você não deixa nada a desejar, acredite. Mais uma vez sou grata por ser presenteada todas as quartas feiras por um tesouro desses. Também sou grata por despertar a minha curiosidade em conhecer as crônicas do grande Armando Nogueira, que não as conhecia. Mais uma fã dele, aqui. Até as próximas.
ResponderExcluirKkkk, não sabe Armando Nogueira, que perdeu uma grande oportunidade de seguir a dica de um estiloso cronista futuro, com um bocado de seguidores
ResponderExcluirFiquei admirado pela capacidade de observar os rostos dos jogadores e de os classificar. Só os cronistas de talento observam esses detalhes.
ResponderExcluirSergio Freire
Lamento ou saudade... mas o texto é maravilhoso. Essa tua capacidade de observar os rostos eu não conhecia. Agora já estou é preocupado rsrsrs.
ResponderExcluirMuito leve a agradável, essa crônica. Gostosa, mesmo, de ler. Armando Nogueira sempre me impressionou, no mundo do futebol, pela serenidade e extrema gentileza, com que tratava de assuntos tão apimentados de emoção...Não conhecia sua observação sobre o porquê de não gostar de Fórmula 1. Como todo poeta, sua arte é pura emoção, parte "pescada" da emoção exalada pelo fato ou pessoa que o inspira, naquele momento, capacete, é bem verdade, esconde emoções.
ResponderExcluirDelícia de história e de texto, Hayton. Você está esnobando, em uma mesma crônica trata de dois gigantes. E, por favor, não deixe de escrever a crônica dos rostos dos jogadores. Permito-me sugerir que junte algumas características de pontas que pareciam jogar sorrindo. Além de Garricha, Edu, Nei, Edu Bala... Obrigado por mais um texto tão saboroso e agradável de ler.
ResponderExcluirCrônica espetacular!
ResponderExcluirExcelente, Hayton, a riqueza das suas crônicas e manifestações. Chego guiado pelas recomendações do seu colega de BB, meu amigo de longas datas A, Assis Pereira. Agora acompanho-o. Parabéns!!
ResponderExcluirCrônica de muita qualidade. Nos da prazer da leitura, passear peka vida.
ResponderExcluirque texto lindo lembrando um dos nossos maiores ídolos.
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