“Velho é o mar, ainda assim continua cheio de onda”, dizia um pescador sessentão que conheci no final dos anos 70, na Balança de Peixe do bairro de Jaraguá, em Maceió, quando me contava de seu interesse em adquirir um motor de popa e seguir adiante no ofício. De tardezinha, voltava sempre com o barco carregado de bijupirás, ciobas, curimãs, guaiubas e sirigados. Nunca atrasou uma prestação sequer.
Hoje, com a mesma idade dele à época, também não encaro a velhice como uma doença incapacitante, como algumas pessoas que conheço. Se muito, um tipo de reação alérgica, isto é, a forma pela qual cada um reage à perda de identidade social depois que deixa de trabalhar ao lado de outras pessoas ou à sensação de proximidade do fim do baile da tarde.
Reação também à pré-falência de múltiplos órgãos, não por causa de uma moléstia qualquer, mas pelo mal do Dodginho Polara (a "meninada" dos anos 70 sabe do que estou falando): um problema atrás de outro, fruto da infeliz combinação de motor, caixa de marchas e freios ordinários com manutenção cara.
Ou ainda à constatação de que se necessita cada vez mais da ajuda de terceiros, às vezes até para lembrar o horário dos remédios, trocar um pneu etc. Ou, por fim, ao risco de ser exilado num “residencial sênior”, eufemismo infame para os asilos de sempre.
Mais do que a idade cronológica, são as reações a esses "estímulos" que definem o que vem a ser a velhice para cada pessoa. Mesmo sabendo que, mais dia menos dia, eles baterão palmas no nosso portão com uma fome que nem me contem, com uma sede de anteontem.
Noto que existem pessoas que se deixam abater pela melancolia, outras pelo desassossego da ansiedade, ou oscilam numa gangorra de sentimentos, a depender da luta ou do luto do dia. Pior que vão empilhando motivos imaginários para criarem uma paranoia de estimação, de coleira e tudo, no que lhes sobra de vida.
Primeiro, assumem que devem morrer antes de algumas pessoas conhecidas. É como se aquelas entre 25 e 50 anos as empurrassem para a porta de saída do baile. Depois, temem ser garfadas pelos herdeiros de seus pertences – os sonhos frustrados, os livros, as joias, o celular, a gaveta de bugigangas e por aí vai.
A razão (ou ração, tanto faz!) que alimenta essa paranoia de coleira afeta até o interesse pela vida de entes queridos. Colocam na cabeça que a conversa com filhos, sobrinhos e netos, por exemplo, não passa de compaixão por parte daqueles. E quase tudo que escutam entra por um ouvido e sai pelo outro, como se nada fosse comparável ao fato de que o fim do baile da tarde está próximo.
Tem que ser assim mesmo? O que pode haver de agradável na experiência de envelhecer, na sensação de fim de jogo, no desencanto de um corpo que cai quando a mente mais conta com ele, na desconfiança de que a partida poderia ter sido disputada de outra forma, com outras manobras táticas?
Um dia, caminhando no calçadão, cruzei com uma "menina" lépida e saltitante, suando baldes, ali na casa dos 75 anos. Em sua blusa havia uma sentença que mais parecia extraída da série “me engana que eu gosto”, mas que me fez pensar o resto da manhã: “A velhice é uma conquista”.
Lembrei-me de tanta gente que não pôde conquistá-la (a "menina", não; a velhice), derrotada às vezes com um gol contra. Os antigos diziam que o segredo de qualquer conquista era coisa besta: saber o que fazer com ela. O ponto de partida seria querer. Declarei-me, então, interessado no assunto.
Interessado em envelhecer compartilhando memórias, inclusive as piores lembranças. Se um dia os neurônios vacilarem – engolidos pelas sombras do esquecimento –, que as pessoas que me ouviram guardem essas lembranças, distorcidas ou não pelos filtros de meu ego, na versão que lhes contei.
Interessado em não perder a capacidade de engolir seco, de travar a garganta com as coisas mais banais do noticiário – como uma mãe que ainda agradece a chance de poder catar restos de comida no lixão –, nem a capacidade de aceitar minhas contradições, meus erros e medos, seguro de que procuro dar o melhor nas escolhas que faço.
Interessado em seguir garimpando velhas e novas preciosidades, sendo menos ranzinza e mais bem-humorado, ácido quando inevitável e, na medida do possível, senhor de minhas vontades. Se não der, que consiga aceitar as limitações impostas pela fragilidade da condição humana.
Tudo não passa, afinal, de um jogo de interesses desde que o dia nasce e, entre lutas e lutos, se começa a dançar. E envelhecer continua sendo a única maneira confiável que se tem de seguir no baile da tarde. Quem sabe dá tempo ouvir o bolero Tudo Outra Vez (ouça aqui) antes de anoitecer.