Andei lendo sobre o Brasil de dois séculos atrás, nos primeiros anos de independência, quando a Igreja abriu centenas de processos com pesadíssimas acusações contra o clero e inúmeros religiosos. As denúncias mais corriqueiras eram sobre crimes de fornicação (ato sexual que acontece entre não cônjuges), concubinato (união sem reconhecimento legal) e interpretação tendenciosa das escrituras em assuntos relacionados a sexo.
A bagunça era tanta que um certo dom Antônio Viçoso, bispo de Mariana, Minas Gerais, só faltou ajoelhar-se aos pés de seus superiores na arquidiocese da província: “Peço o socorro de suas orações a favor de um pobre bispo que passa pela aflição de ver paróquias entregues a lobos vorazes mesmo sem peles de ovelha”. Referia-se a seu próprio rebanho: seminaristas, padres e párocos.
É verdade que a própria formação do clero contribuiu para esse estado de coisas. Os seminários eram vistos pelas famílias como porteira de acesso de seus rebentos ao ensino superior e à elite. Vocação à parte, era bem mais em conta do que bancar estudos de filhos no Velho Continente.
Também havia dificuldades de recrutamento por força das restrições impostas para o celibato eclesiástico. Isso levou a Igreja a afrouxar os cadarços de sua pregação moralizadora, especialmente durante os ciclos do açúcar e do ouro de nossa história.
O caso de José Barradas foi emblemático. Em 1795, três padres que avaliavam o seu ingresso no seminário argumentaram que era “público e notório” que ele era “concubinário e com filhos”, além de autor de “alguns latrocínios”. No entanto, o pároco da região mineira de Mariana, João Borges, concluiu que tudo não passava de “ouvir dizer e não havia prejuízo causado a qualquer pessoa”.
Difícil imaginar que latrocínio não prejudicasse alguém, mas, enfim, foi a conclusão. Parece que as águas de Mariana, impregnadas de minérios, não eram lá muito bentas.
Este sobrevoo panorâmico me fez recordar de uma conversa que mantive com uma querida amiga gaúcha (já falecida) no final dos anos 1970. Ela me contou que, nos idos de 1941, dois de seus irmãos viram de perto a maior enchente do rio Guaíba, que banha a cidade onde nasceram na zona metropolitana de Porto Alegre.
O mais velho deles, de 10 anos, saíra cedinho para ver a correnteza arrastando o que encontrava nas margens. As águas subiram rápido, a tarde esfriava e nada de o menino chegar. Em meio aos rumores de que alguns corpos foram vistos boiando rio abaixo, a família cai no choro a pedir aos céus um milagre.
Nisso, o irmão mais novo do sumido aparece na sala e se habilita na possível partilha de bens: “Se ele morrer, o par de botinas é meu!”. Para sua frustração, o quase afogado surge assoviando na porta de casa, no final do dia, e a vida, feito o rio Guaíba, seguiu seu curso.
Anos depois, dizendo-se arrependido da falta de compaixão e fraternidade durante a infância, o quase herdeiro das botinas daria a entender que se transformara em homem digno, justo, a serviço do bem: ordenou-se padre e assumiu o trabalho pastoral na própria diocese em que fora batizado.
Porém nunca conseguiu conciliar a vida celibatária com sua canalhice atávica e vocacional, perceptível até nas bochechas e nos olhos empapuçados de safadeza.
Era daqueles cujas batinas estavam sempre amarrotadas. Vivia a afagar “sem maldade” quase todas as beatas papa-hóstias que se dispunham a auxiliá-lo nas tarefas paroquiais, inclusive uma bem robusta que, mais adiante, lhe faria arfar com a língua de fora propondo casamento, de papel passado e tudo.
Para a sua irmã (a querida amiga a que me reportei), tirando a filha dela, quase todas as sobrinhas haviam sido vítimas de afagos, a pretexto de lhes avaliar o desenvolvimento de mamilos e pernas, tal como fazia com outras meninotas da comunidade, sob velada ameaça de vazamento de segredos guardados desde a primeira eucaristia.
Depois que largou a batina, casou-se e virou fiscal de rendas na capital gaúcha, não durou nem 10 anos. A diabetes nunca combinou com sua gulodice canina, apesar de se enxergar o próprio garoto-propaganda do Suíta (o primeiro adoçante artificial lançado por aqui, para as pessoas que queriam “entrar na linha”).
Se era para o bem de todos e felicidade geral da comunidade, foi-se. Antes, contudo, teve que quitar a contragosto parte de seus pecados em módicas parcelas mensais: primeiro, foram-se alguns dedos dos pés; em seguida, fatias das pernas brancas e gordas; por fim, o saldo da pança, inclusive as bochechas.
Chupando drops de anis, deve agora vagar noutro escurinho, a rever o filme de tudo sentado no colo do capeta.