quarta-feira, 18 de maio de 2022

O vaga-lume de Massarandupió

Há dois anos compartilhei aqui uma troca de mensagens, sob o título “Urtigão é culpado”, com uma criatura sábia e mordaz que conheci em 1990. Foi o modo que encontrei de reconhecer uma amizade que já passa dos 30 anos.  

 

Vira e mexe Urtigão some feito vaga-lume quando amanhece. Desapareceu de novo, aliás, em plena pandemia. Parecia ter entrado noutra dimensão, envolvido com algum fenômeno metafísico, como se nas águas da praia deserta de Massarandupió, próximo de onde vive no litoral norte baiano, houvesse uma versão cabocla do Triângulo das Bermudas.

 

Imagens: Ana Isa

Para quem não lembra, o chamado Triângulo do Diabo é uma região delimitada por linhas imaginárias no Oceano Atlântico. Sua área vai das Bermudas até as Bahamas, passando por Porto Rico, numa extensão de 3,9 milhões de quilômetros quadrados reconhecida por fenômenos “sobrenaturais” envolvendo o sumiço de navios e aviões. 

 

Nem passou por minha cabeça, felizmente, a hipótese de ele ter sido mais uma vítima da peste que sumiu com tanta gente querida nos últimos dois anos. No meio do mato, dificilmente seria contaminado pelo vírus, se bem que viajava vez por outra à capital para matar a saudade de Ana Isa, sua musa inspiradora. 

 

Cogitei, não nego, a possibilidade de uma picada de abelha africana, escorpião ou jararaca tê-lo obrigado a procurar um hospital, onde o mal do século se disseminava mais rápido que cuspida de músico.  

 

Semana passada ele reapareceu. Recebi mensagem contando que, após meses cuidando de evitar um ataque cardíaco e quase à beira do suicídio, livrou-se de uma operadora de planos de internet banda larga via satélite. “...Só funcionava em dias ensolarados, sem nuvens, com estabilidade de energia elétrica mil centesimal, atestado negativo de brucelose, cirrose, escoliose, tuberculose, verminose etc...”

 

Disse que só conseguia ler alguma coisa quando passava pelo único supermercado da cidade mais próxima da roça. Mas Ana Isa não lhe dava sossego, apressada em concluir as compras. 


Pensou até em “criar pombos-correios para socorrê-lo junto aos amigos mais queridos”. Teve medo, imagino, da gripe aviária ou ácaros, carrapatos, pulgas e outros ectoparasitas que se hospedam nas asas dos carteiros da paz.

 

“Em dias de chuva, a TV é só sombras e dúvidas; o celular emite sons de uma lata d'água, transformando meus interlocutores em fanhos ou gagos... Tive que me roer com a absoluta falta de comunicação bem na hora de plantar e cuidar da roça, quando nem posso sair daqui, pois se as chuvas não me virem, podem não voltar mais...”.

 

Bateu de frente, então, com a provedora e contratou outra, mas frustrou-se de novo. “Descobri que é muito ‘viva’ e, em dois dias, alegou que consumi 5,7 Gbytes. Impossível. Durmo cinco horas por noite, no mínimo. Fugi dessa também e agora estou testando uma terceira, igualmente instável, claro, muita intermitência, mas não promete muito e é mais barata...”

 

E arrematou: “Hoje não vou fazer nada. Vou só dar banho nos meus amigos caninos e ler tudo que recebi dos outros e ficou pra trás... Um abração”.

 

De bate-pronto, respondi sem pestanejar: “Que rufem os tambores e soem os clarins, que esfrie o sol e reapareça a lua para celebrar esta manhã, eis que de volta o admirável homem da verve. Pelo visto, não faz ideia do quanto dele preciso no meu dia a dia. Dois abrações!”

 

A tréplica que acabo de receber me diz que os sinais vitais de Urtigão estão aparentemente preservados:

 

“Estamos morando na roça. Ana despediu-se do emprego antes que endoidasse e ficasse igual a mim: um caso perdido! Fato é que passamos a ter outra relação com a vida, o vento, a chuva, o sol, as estrelas, os pássaros, os insetos e as plantas. O caminhar da idade vai fragilizando nossas emoções e aqui na roça esse efeito fica maior. Parece que vivemos como a Bíblia define a forma do pecado: ‘por pensamentos, palavras e obras’.

 

“...Outro dia estava olhando o milho e o feijão de corda que plantamos, lado a lado. Os pássaros esperavam o milho brotar, arrancavam as plântulas e comiam o resto das sementes... Chegavam entre as seis e sete da manhã, provavelmente porque o pessoal começa a trabalhar às sete. Já o feijão de corda foi degustado pelas paquinhas (um inseto da família dos grilos e gafanhotos) que trabalham de noite, também longe dos olhos do pessoal...”

 

“...Não usamos defensivos porque penso comer produtos saudáveis, mas tenho a sensação de que, se formos ‘comer da terra que cultivamos’, vou ter que aprender com os povos orientais a saborear insetos...” 

 

“...Você está piorando, meu bom amigo. A escrita está lhe tornando frágil. Tá virando poeta... Dois abrações também, fortes feito gemada com ovo de pata e cerveja preta”.

 

Se soubesse fazer versos, meu caro vaga-lume de Massarandupió, nem recorreria ao “Soneto do Amigo”, de autoria do Poetinha, para tentar traduzi-lo:


“… Um bicho igual a mim, simples e humano

Sabendo se mover e comover

E a disfarçar com o meu próprio engano 


O amigo: um ser que a vida não explica

Que só se vai ao ver outro nascer

E o espelho da minha alma multiplica…”

25 comentários:

  1. Delícia de texto! Saboroso que só! Poesia e humor de dupla fonte! Muito bom para começar o dia! Diniz/RJ

    ResponderExcluir
  2. Bom dia. Aqui começando o frio que prometeram para o final de semana. Bom para aproveitar e ficar mais na cama lendo essa excelente resenha.
    Quem não tem vontade de largar tudo e se embrenhar num lugarzinho pequena desses sem recursos modernos que atrapalha mais que ajuda
    Um abraço Amigo

    ResponderExcluir
  3. Lindo texto! Estou ficando chateada com o Urtigão. Deixando meu amigo à espera de seu contato e de suas falas tão cheias da vida cheia de vida que ele leva.

    ResponderExcluir
  4. Excelente texto! Divertido, sensível e de uma inteligência ímpar!

    ResponderExcluir
  5. Quando crescer, quero ser um Urtigão e ganhar dois abrações!

    ResponderExcluir
  6. Que texto maravilhoso, vontade de me sentir assim. Parabéns!

    ResponderExcluir
  7. Feliz o Urtigão que pode se dar ao luxo e prazer de desfrutar das benesses da natureza e ficar, pelo menos por um tempo, livre de ver, ouvir, ler e conviver com tanta coisa maçante que um bando de chatos de galochas teimam em atanazar a nossa paciência, diuturnamente.
    Parabéns pelo texto.

    ResponderExcluir
  8. Uma bela maneira de iniciar o dia é, ainda na cama, curtir um belo texto como esse!

    ResponderExcluir
  9. Bom Dia, caro amigo Hayton. Pois é, Urtigão está certíssimo em ter ficado longe do burburinho da "peste"... Outros também conseguiram e, destes, há aqueles que relutam em voltar para o mundo (in)civilizado...
    Essa briga com pássaros, vagalumes e outros insetos mil, incluídas as muriçocas, dá um trabalho danado, sem falar do movimento do vento e das nuvens... Forte abraço...

    ResponderExcluir
  10. Grande Urtigão! Atitudes coerentes com sua personalidade. Saudades!

    ResponderExcluir
  11. Como é bonita uma amizade verdadeira, o texto relatou muito bem os velhos amigos, a preservação dos valores, 👏🏻👏🏻👏🏻

    ResponderExcluir
  12. Poesia pura em via de mão-dupla!!!

    ResponderExcluir
  13. Agostinho Torres da Rocha Filho18 de maio de 2022 às 11:24

    Que obra de arte! Mais parece uma jogada protagonizada por Pelé e Coutinho, Zico e Sócrates ou Bebeto e Romário, daquelas que deixa o locutor sem palavras. Parabéns!

    ResponderExcluir
  14. Tive o prazer de conhecer o Urtigão, quando cheguei a Bahia.

    ResponderExcluir
  15. O ermitão – ou Urtigão -, é sábio.
    Assim como os vaga-lumes, tem luz própria.
    Que não apareça e desapareça, deixando os amigos às cegas.
    Que brilhe por muito tempo.

    ResponderExcluir
  16. Esse Urtigão é um sábio ... e um Poeta também! Plagiando ambos,
    dois abraços.
    Abbehusen

    ResponderExcluir
  17. Kkkkkk
    Geniais, o texto e o Urtigão!

    ResponderExcluir
  18. Amigo Hayton. O Urtigão está correto
    Tambem retornarei às minhas origens. Quero reviver a simplicidade do campo. Forte abraço.

    ResponderExcluir
  19. Belíssima e verdadeira amizade!
    Urtigão está certíssimo, na cidade é só violência. Vamos viver a vida da maneira
    que acharmos melhor!!!
    Abraços,
    Maria de Jesus A. Rocha.

    ResponderExcluir
  20. "Atestado negativo de brucelose, cirrose, escoliose, tuberculose, verminose etc..."

    "E o pulso ainda pulsa..."

    ResponderExcluir
  21. Um amigo é uma benção. O que dizer quando ele é especial. A ponto de dar-se conta da sua ausência. Situação apenas restabelecida com o reencontro almejado. E mais, com a constatação de que tudo anda bem. Com mestria você traduziu tudo isso em belas palavras trocadas a ponto de sugar a atenção de quem lê. Excelente.

    ResponderExcluir
  22. Hayton, seus textos estão ficando cada vez mais profundos. Como diz seu irmão, Agostinho, verdadeiras obras de arte, dignos de um profissional da escrita.

    ResponderExcluir
  23. Fantástica ode à amizade! Sorte de Urtigão, e vice-versa, não necessariamente nessa mesma ordem, rs.

    ResponderExcluir
  24. Cleber Pinheiro Fonseca28 de maio de 2022 às 22:20

    Caro Hayton, acabei de receber do amigo Pedroso, o Urtigão, as crônicas em que você o inseriu como personagem central, tão hábil e criativamente redigidas. O que me surpreendeu foi a revelação da verve literária do Pedroso, embora já fosse antigo apreciador do seu estilo irreverente e espirituoso de produzir narrativas verbais, durante nossa convivência na Super-Ba.
    Ainda maravilhado e extasiado com a riqueza dos textos, não podemos prescindir dessa profícua parceria que vocês construíram na vida, também aqui retratadas em “prosas e versos”.
    Com seu poder de persuasão, não será difícil instigá-lo a produzir mais narrativas para o deleite de todos nós.

    ResponderExcluir