Como não beber dessa bebida amarga? Parece fácil acordar às quatro e meia da madrugada e caminhar solitário no silêncio de meus barulhos, por uma hora, a tropeçar aqui e ali nas quinas que se metem no meu caminho entre a cozinha e a varanda onde o vento e os primeiros sinais de luz juram que a agonia vai passar.
Parece simples trocar o noticiário da hora pelas canções de ontem, a engolir minha dose de alienação sobre o horror instalado no desmantelo da hora. Prefiro ouvir Simone cantar Aldir, a dizer que posso pegar aquele feijão preto, pôr meia dúzia de latas pra gelar e mudar a roupa de cama que tudo volta já.
Parece fácil preparar todo dia a própria comida sem despencar na rotina de sal, gordura e limão ou vinagre, no forno ou no fogão, depois de limpa a última ruga da folha de alface como se ali cochilasse o monstro insaciável que pode acabar com tudo em duas ou três semanas.
Faz de conta que é natural ver Magdala resignada, sem botar os pés na calçada há sete meses – nem mesmo para afogar nossos netos de abraços e beijos salgados de lágrimas –, a compartilhar o mesmo trajeto que fiz minutos antes para depois, na varanda, longe das franjas de espuma que escorrem na praia, pegar uma cor ou fazer um cabelo bonito pra eu notar.
Parece simples deixar a escuridão da caverna uma vez por semana, em liberdade provisória por meia hora, apenas para manter vivo o motor do carro, enquanto uns, de máscaras ou não, passeiam pelas ruas fingindo não sentir medo de ver emergir o monstro que engoliu mais de 150 mil irmãos.
Parece fácil ver tantas crianças fora da sala de aula, cujos pais, prisioneiros de suas próprias incertezas, não sabem como, sem os dilemas do convívio na escola, lhes ensinar os deveres de casa em matérias básicas como colaboração, generosidade, compaixão, resiliência e solidariedade.
Ou ainda – em meio a tanta mentira, tanta força bruta nas redes antissociais! – deixar de ir à padaria, ao cinema, ao bar, ao supermercado ou ao restaurante, certo de que local onde se aglomeram incautos é praticamente impossível não haver um infectado sequer, ainda que sem sintomas.
Parece fácil, simples. Não é.
Ainda bem que posso me deitar mais cedo quase toda noite, não para dormir o sono represado dos madrugadores, mas para mergulhar nas águas de oceanos nada pacíficos já navegados por velhos lobos-do-mar como Braga, Cony, Ruy, Sabino, Ubaldo e Verissimo.
Posso ainda, inspirado nas viagens desses marujos fabulosos, mesmo sem contato físico com o mundo lá fora, que já cheira de novo a fumaça de óleo diesel, escrever meia dúzia de palavras e queimar a paciência dos que ainda prestam atenção naquilo que tenho a dizer.
Sei que daqui a vinte anos talvez não me arrependa das coisas que fiz, mas estou seguro de que posso me arrepender das que deixei de fazer. Sei que, por vezes, optei por não mexer no roteiro do filme de minha vida, mesmo sabendo que ninguém descobre novos caminhos – apesar de Google Maps, Waze etc. – sem mudar de direção.
De fato, talvez o mundo não seja pequeno nem seja a vida um fato consumado, como disse Chico. Enquanto não chega o habeas corpus que afastará de mim esse cárcere, preciso refletir sobre como pegar os novos ventos que sopram e velejar bem longe do meu porto seguro até descobrir onde tudo isso vai dar.
Parece fácil, simples. É, parece...