Santo remédio
De cara fechada, sem batom, uma das ascensoristas do templo bancário da Cidade Baixa, onde trabalhavam mais de 500 pessoas, pilotava o seu elevador com a preguiça das segundas-feiras quando Rivaldo meteu a mão no bolso do paletó e lhe ofereceu um punhado de confeitos:
— Pegue, moça, chupe!
— Por quê?
— É um santo remédio. Nunca vi ninguém triste chupando confeitos.
Ele chegara à Bahia em junho de 1992, vindo do Recife. Voltava ao Banco do Brasil depois de um período cedido ao governo de Pernambuco em que ocupou a diretoria de RH do extinto Bandepe. Casado com Bárbara, analista de projetos da Sudene, formavam um casal bem humorado e carinhoso com filhos e amigos.
Na semana anterior, um puxa-saco escolado que havia na área, ao saber de sua origem sergipana e por ser freguês de um restaurante no Dique do Tororó que servia um cabrito guisado com aipim e farofa d'água de comer com os olhos a meio pau, alisava as pontas do bigodão ao indagar:
— Chefe, você gosta de comer bode?
Rivaldo, que não perdia bola alçada por nada nesse mundo, sorriu e rebateu de primeira:
— Gostar eu gosto, mas é um bicho agoniado pra danar!
Meses depois, quando soube que eu estava de partida, transferido para a agência Tabuleiro, em Maceió, veio conversar comigo como só ele sabia fazer:
— Por que você vai nos deixar? O que mais tem aqui na Bahia é tabuleiro!
Nos reencontramos no ano seguinte, designados, por 100 dias, para participar do Programa de Melhoria do Atendimento do Distrito Federal. Como Bárbara não pôde acompanhá-lo, vi Rivaldo algumas vezes, apesar do conforto do apart-hotel em que se hospedava, queixando-se da saudade de casa. Eu havia alugado um quarto-e-sala no final da Asa Norte, próximo ao restaurante Nosso Mar, onde fiquei com minha mulher e nossa caçula.
Bárbara viajava de Salvador para Brasília quase todo fim-de-semana. Numa segunda-feira como outra qualquer, ao telefone, ele comentou comigo:
— Minha mulher anda desconfiada de mim.
— É mesmo? O que você está aprontando?
— Nada do que cê tá pensando, seu sacana!
— O que seria?
— Ela não acha que sou acionista da Varig. Ela tem certeza!
De volta a Salvador, Rivaldo se aposentaria no começo de 1994 e, logo após doar as gravatas, tornou real uma antiga fantasia: comprar um "brinquedo" para navegar na Baía de Todos-os-santos. E quando, pela primeira vez, saiu do píer num pequeno bote até a embarcação, um amigo que lhe visitava, de Brasília, quis saber:
— Como é que você compra um barco sem saber nadar?
— Peraí, e você, que vive dentro de um avião pra lá e pra cá, por acaso sabe voar?
Quando, mais adiante, me chamou para conhecer a Queridoca, quase acontece uma tragédia. O destino seria a Ilha dos Frades, nome inspirado no grupo de religiosos que sobreviveu a um naufrágio e encontrou abrigo na ilha que possui exuberante floresta atlântica, com árvores nativas, inclusive pau-brasil.
Depois de vários goles de cerveja, camarões no alho e óleo e mergulhos em alto-mar, eu voltava à proa quando notei Rivaldo trêmulo, com a voz grave, pastosa:
— Diga nada não... Bárbara vai ficar aperreada...
— O que foi?
— Acho que é derrame — disse, a enxugar o suor da testa — Me leve pro hospital.
— Calma... — preocupei-me, imaginando como socorrê-lo sem que nossas mulheres notassem — O que você tá sentindo?
— A vista embaçou, a mão tá gelada...
Não sou médico, mas, antes de pedir ao barqueiro para voltar ao cais, cuidei de observá-lo com mais atenção e, com a ajuda de todos os santos de plantão nos céus da Bahia, fiz diagnóstico rápido e certeiro, além de propor o adequado tratamento, sem intercorrências:
— Rapaz, você tá com meus óculos e eu tô com os seus!
— Eita! Agora é que você não vai contar nada pra ninguém. Minha mulher vai me interditar...
— Pode deixar! Também não vou cobrar pela consulta.
A “cura” instantânea, sem sequelas nem efeitos colaterais, nos fez olhar com menos indiferença a fartura de céu, sal e sol que tínhamos diante de nós, santo remédio para quase todos os males.
Outra excelente crônica! Pense num casal de bem com a vida é Rivaldo e Bárbara. Rivaldo é sempre bem humorado, inteligente, humilde e gozador Toda que nos encontrávamos deixava “ o gostinho de quero mais” e saiamos dos seus encontros com nossas almas mais leves.
ResponderExcluirVocê sempre trazendo boas estórias nas manhãs. Não conheci esse casal, mas você descreveu tão bem que quase os conheci
ResponderExcluirBom dia
Abraços
Jesus, cachaça da gota serena
ResponderExcluirPerfeita. Apenas os alquimistas das palavras fazem o real ser ampliado.
ResponderExcluirExcelente crônica!
ResponderExcluirLembro como se fosse hoje desse passeio, pois estava nele . O Rivaldo sempre gozador nunca me perdoou eu ter tido um carro BR800, que para ele era um carro de “plástico”. Figuraça!!!
ResponderExcluirEstá de andar de avião e não saber voar me lembrou Mucini. Fizemos um charter de veleiro p Noronha em 6 amigos. Ao ser chamado de doido por que não sabia nadar ele respondeu: se o barco afundar eu só morro um pouquinho antes.
ResponderExcluirA habilidade do autor pra desvendar aos leitores o espírito dos personagens está cada vez mais afiada. Não lembro de conhecer o Rivaldo, mas agora já sei quem é. O “derrame” dos óculos é sensacional!
ResponderExcluirHahahahahaha eu ri alto aqui. Grande Rivaldo.
ResponderExcluirMuito Bom, primeiro horário, um texto para sorri. Pense que água produz oculista, cardiologista, e traz depois do medo, a tranquilidade. Eta trem bão.
ResponderExcluirBoa demais! Me diverti conhecendo o casal Rivaldo e Bárbara!
ResponderExcluirE parabéns pra você, afinal de contas de médico e louco todo mundo tem um pouco!!!!
Rapaz... Nem queria rir! Mas é o que sempre digo: quando a gente sorri, a vida fica mais leve! Muito boa crônica!
ResponderExcluirTaí a quarentena lhe fez bem, despertou o cronista talentoso que estava adormecido, me narrou melhor que o original, naquele Lídia criança dormia em duas cadeiras do bar tranquilamente pra deixar a gente tomando cerveja
ResponderExcluirGrande abraço
Grande Rivaldo! Escondendo-se atrás de um “Cá te espero”? Vou não, meu velho! Pelo menos enquanto a vacina não chega. Daqui a pouco a gente se junta novamente, meu velho amigo!
ExcluirMuito bom lermos algo sobre alguém que conhecemos. Rivaldo e Barbara bons amigos. Já tive o prazer de dar um passeio na QUERIDOCA muito bem acompanhada, além dos anfitriões. Saudades desses momentos ímpares.
ResponderExcluirMuito bem descritos, personagens e cenários. O conhenci na companhia do nosso amigo José Tarcísio, outro que não perde uma bola levantada, muito espirituoso e, com sua esposa Bárbara, excelentes anfitriões.
ResponderExcluirMais uma espetacular crônica... quando começo a ler fico torcendo para não terminar rápido, pois os textos nos fazem a entrar nas histórias e estórias.
ResponderExcluirCausos e casos. Fatos e histórias. Que beleza é a vida, que nos permite vive-la de tantas maneiras mesmo sem saber pilotá-la. É tal qual a Queridoca.
ResponderExcluir😂😂😂😂🤣🤣 Grande Rivaldo! Delícia de conto!!!
ResponderExcluirHahahaha
ResponderExcluirMaravilha! “Olhar a meio pau” foi demais 🤣
Kkkkkkkkkkkk.
ResponderExcluirMais uma crônica feliz para a conta da quarentena.
Ótima crônica, hilária!
ResponderExcluirOh aperreio... KKKĶKKK
ResponderExcluirPerpétua disse aqui que é muito bom ler algo a respeito de quem se conhece! Acho melhor ainda conhecer alguém por meio de suas crônicas. Obrigado Hayton por este e outros tantos que você me apresentou !
ResponderExcluirTive a oportunidade de trabalhar com Rivaldo, entretanto, sem um convívio mais próximo.
ResponderExcluirParabéns pela sutileza do humor. Cada vez melhor, meu caro amigo.
ResponderExcluirBela crônica Hayton, ainda mais tendo um dos personagens o nosso querido Rivaldo! Bons tempos também do Programa de Melhoria do Atendimento do DF, que se espalhou por todo o País! Até o “Posso Ajudar”, que lançamos (obra daquele colega da Bahia), vejo com muita emoção nas roupas de pessoas nos hospitais, companhia aéreas, etc, etc... pelo Brasil afora! Muito bons tempos... Abs
ResponderExcluirMais uma das suas pérolas, Hayton, a nos brindar.
ResponderExcluirMuito boa.
Quantas pílulas anedóticas do Rivaldo! Não conheci, mas gostei de graça. O bom humor é mesmo um santo remédio!
ResponderExcluirBoa crônica. Não sabia das tuas aptidões médicas e também não conhecia esse tipo de doença. Acho que deve ter sido provocada por muitas "mofadas".
ResponderExcluirMuito boas... mas a última foi fenomenal... já tive um amigo passando mal, sem saber o que era, depois foi ver que era o celular no silencioso vibrando no bolso da calça... mas tudo tem jeito...rsrs
ResponderExcluirApesar de não conhecer o Rivaldo, foi o texto mais bem escrito que li. Conciso e enxuto! Além de bem humorado!!!
ResponderExcluirDiferente de Aguilar, eu não estava no passeio, mas agora, depois dessa leitura, me sinto como se estivesse, tal a fidelidade da descrição. Parabéns por mais este presente. Esta merece entrar para o próximo livro! Pelas tiradas, o personagem parece ser rival do mau-humor, com perdão do trocadilho.
ResponderExcluirMais uma ótima crônica!!! Tão suave que nem parece real. Apenas uma observação: da próxima vez, bebam com moderação.
ResponderExcluirO autor cada vez nos brinda com uma crônica diferente e que eu não consigo parar de ler até o fim. Excelente! Ah se a Globo o descobre. Daqui sairiam roteiros para especiais ou novelas.
ResponderExcluirExcelente.
ResponderExcluirAinda espero ver você contando a partida de futebol fa SUPER ALAGOAS E CONOI RECIFE. Conversa com o Gibba Morais.
Excelente.
ResponderExcluirAinda espero ver você contando a partida de futebol fa SUPER ALAGOAS E CONOI RECIFE. Conversa com o Gibba Morais.
Quão importante são os Rivaldos dentro do sisudo mundo do trabalho. Adorei os confeitos para a moça do elevador. O humor é a mais destilada forma de inteligência. E, são poucos que a possuem em sua forma tão plena, aquela que faz com que em tudo na vida se tenha uma tirada, uma saída pelo riso. Adorei mais está crônica e de ver a cara de espanto do Rivaldo com a cura do derrame. De fato, tem curas que estão nos óculos certos. Bom demais. Fiquei a matutar.
ResponderExcluirCaro Hayton, mesmo distante no tempo e no estado onde resido, o Maranhão, não conheço muitos dos seus personagens, mas como nos presenteia com crônicas tão perfeitas, passamos a conhecê-los como se convivesse com os mesmos. O humor, é uma das suas fortes características bem interessantes. Obrigada mais uma vez por desfrutar desse universo das crônicas mais uma vez bem contadas. Um abraço
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