Mestres por acaso
Jurandir nunca foi de rascunhar. Apenas franzia a testa, limpava os óculos, punha o papel na máquina e preparava cartas, memorandos e fichas cadastrais irretocáveis. Para mim, que aos vinte e poucos anos a tudo assistia com olhos e ouvidos abertos para o espetáculo de um novo mundo, aquilo explicava a correspondência regular que ele mantinha com um certo Drummond, como se fosse a coisa mais natural ser íntimo do itabirano autor de Poema de Sete Faces, mesmo vivendo a milhares de quilômetros.
Seis anos mais novo que eu, o filho de Jurandir (Jurandir Neto) nascera num 16 de setembro, mesma data em que veio ao mundo Rita de Cássia, herdeira de Maerbal. Vez por outra os pais lembravam essa coincidência cósmica que apertou ainda mais os cadarços da amizade que lhes unia.
Maerbal, por sinal, perito de balanços, conciliava o amor pelo ofício bancário com outra paixão bem resolvida: transmitir o que sabia a estudantes universitários, como eu, de contabilidade, economia e administração de empresas. Gostava também de velejar e, além de obcecado por música, até agora nutre a mania de adquirir relógios de parede em leilões virtuais só pelo deleite de ouvir a disputa sonora da marcação do tempo.
Ayres completava o trio de mestres, todos eles, hoje, na casa dos 80. Não havia remédio que curasse a enxaqueca que lhe azedava o semblante quase sempre sereno. Amante de livros assim como de telas, pincéis e tintas, atuava como investigador de cadastro, tal como Jurandir. Dele os colegas diziam, não sem traços da boa inveja: um sujeito insaciável, bem-dotado, inclusive intelectualmente.
Entre Jurandir, Maerbal e Ayres havia em comum a louvável capacidade de trabalhar pesado sem sufocar a leveza da amizade. E no setor de cadastro do Banco do Brasil daquela Maceió do começo da década de 1980, os três mestres acabariam protagonistas de um caso memorável.
Por curto período, Ayres fora designado para substituir interinamente o chefe do setor e, de brincadeira, fechou a cara ao avisar aos colegas: “Prestem bem atenção... A partir de amanhã eu exijo mais respeito e seriedade. Aproveitem a chance de trabalhar sob a liderança de um ‘superchefe’!”
No dia seguinte, Maerbal trouxe sua máquina fotográfica, a pretexto de registrar a presença de Ayres na cadeira do titular ausente. O “superchefe”, então, ajeitou os escassos fios de cabelos entre as orelhas e sorriu para a câmera. De molecagem, porém, Maerbal clicou-o do pescoço para baixo, cortando-lhe a cabeça.
Revelada a fotografia dois dias depois – não parece, mas era assim que funcionava naquele tempo –, a brincadeira encheu o ambiente de graça e luz. E o dia ganharia ares poéticos quando Maerbal, em alusão à enxaqueca de Ayres, provocou Jurandir oferecendo-lhe o mote: “A cabeça a dor levou”.
Sentado à mesa, Jurandir dobrou ao meio uma folha de papel ofício, cobriu o rosto com a mão esquerda espalmada abaixo do nariz e, a lápis grafite, sem borracha ou rascunho, em minutos produziu com impecável caligrafia:
“Mareba,
Custou, mas como custou!
Quantos anos se passaram
E, ai de nós, não voltaram...
Custou, mas como custou!
Rita de Cássia cresceu
E um noivado apareceu,
Com ameaças de vovô...
Custou, mas como custou!
Te lembras, eu bem me lembro
Dos meados de setembro:
A dupla ao mundo chegou
Para curso dar ao vale
De lágrimas que é a vida.
Que esta lhes seja florida
E que outra boca não fale.
Só a que o Bem desejou.
Custou, mas como custou!
Mas o papel chega ao fim,
E o que se passou, passou...
Agora é cuidar, pois sim,
Desse fato inusitado:
O “super” guilhotinado...
Credo, cruz, Ave-Maria!
Parece feitiçaria!
Mas o perigo ficou
Se a de cima se mandou.
A outra – raro exemplar –
Essa a dor não quis levar!”
Não me custou nada – a não ser manter olhos e ouvidos limpos – aprender por acaso com aqueles mestres que, em qualquer parte do mundo, quando a gente escolhe um trabalho de que gosta, não tem que trabalhar nem um dia na vida.
Mundo, vasto mundo, tão vasto quanto o meu coração. Eu não devia contar, mas essa lua sobre a praia de Pajuçara, esse Cabernet Sauvignon, ainda me botam comovido pra danado.
Hahaha. Pude imaginar cada detalhe, inclusive os últimos.
ResponderExcluirBela crônica!
“Quando a gente escolhe um trabalho que gosta...” é verdade os ensinamentos do BB, uma outra família , o prazer de chegar naquela casa organizada , com bons amigos , realmente vale a pena lembrar , apreciando a lua e um bom vinho. Parabéns amigo!
ResponderExcluirBela história. Também me remeteu para o início dos anos 80, quando ingressei no BB e algum tempo depois fui nomeado Assistente de Cadastro. Mas lá não tinha poesia, apenas trabalho.
ResponderExcluirEssa é a senha, trabalhar com o que gosta.
ResponderExcluirConcordo muito, amigo Jurema! O trabalho só tem sentido se também for fonte de satisfação.
ResponderExcluirBelo texto, que certamente provocaria atenção de Drummond, não só pelo fato de citação a sua pessoa, nem também por fechá-lo com parte de seu "Poema de sete faces", mas, principalmente, pela descrição fiel e cativante de uma situação real de forma bem poética. Um brinde com Cabernet Sauvignon
ResponderExcluirIsso é uma vida vem vivida no trabalho!
ResponderExcluirEcos de tempos românticos, meu amigo! Que bela história! E um final poético. Parabéns!
ResponderExcluirBela história.
ResponderExcluirQue belíssima passagem, Hayton. Show de ensinamentos sobre convivência profissional leve e salutar!!!
ResponderExcluirSimplesmente fantástico. Me acabando de rir.
ResponderExcluirTrês grandes figuras. Tive o imenso prazer de trabalhar e conviver com esse trio maravilhoso.
Com o Maerbal, vez por outra, o encontro na caminhada matinal; ele sentado na beira da barraca. Aires e Jurandir , esses, muito tempo que não os vejo. As vezes encontro o filho do Aires.
Irei compartilhar
Com as artes (fotografia e poesia) irmanadas todo ambiente fica leve. A crônica dá vida a fatos antigos nos momentos atuais.
ResponderExcluirAdemar Rafael Ferreira
ResponderExcluirA crônica de hoje me fez lembrar de uma música dos Paralamas do Sucesso:
ResponderExcluir“O céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu
E lendo teus bilhetes, eu lembro do que fiz
Querendo ver o mais distante e sem saber voar
Desprezando as asas que você me deu...
Show!
Muito bom esse texto. Quantos casos desses não temos por onde passamos, grandes mestres.
ResponderExcluirInclusive, conheço um com quem trabalhei!!!!
Que crônica! Quanta memória!Quantas lembranças!
ResponderExcluirO escrito já valeria pela preciosidade da poesia do Jurandir e inusitado tema, mas a presença do trio é que dar o tempero gostoso para saborear com saudade os meus tempos da Agência Centro de Maceió.
Certamente o Ayres já imaginava o troco que seria dado a sua "prepotência" de arrogar-se o "superchefe", pois
com aqueles "colegas" não se brincava.
No entanto, a criatividade do Maerbal excedeu o esperado. Quem já se viu fotografar sem cabeça! E ainda esperar dois dias para ver o resultado. Porém, o momento não seria perene sem o talento do Jurandir, digno de um Drummond.
Corrigindo: A presença do trio é que dá ...
ResponderExcluirComo sempre Amigo. Você se superando em cada Resenha.
ResponderExcluirAbraços
Corrigindo: A presença do trio é que dá...
ResponderExcluirMuito boa crônica. Parabéns Hayton. Você realmente sabe contar uma história.
ResponderExcluirFernando Conde Medeiros
ExcluirÓtima crônica. Fazer com prazer, a chave que abre a porta para felicidade. Aí está a fonte de ser feliz.
ResponderExcluirJá registrei aqui mas não custa repetir, sua mente produz energia quase semelhante à de uma usina nuclear. Abstraída a referência à leveza do texto e da capacidade de descrever personagens com tamanha singularidade, você aínda se permite cometer verdadeiras sacanagens com detalhes que até podem passar despercebidos aos não iniciados nas "maldades" - as aspas são necessárias - das esquinas e botequins da vida.
ResponderExcluirPois é - "sujeito insaciável e bem dotado -, não só humilha, até tripudia, a nós outros não tão beneficiados pela MÃE NATUREZA.
E aínda há quem diga que Deus é mais!!!
Caro Amigo, dessas três figuras diferenciadas, dentre tantas que o BB ajudou a forjar,tenho a rara felicidade de ter convivido e ainda tê-los por perto. Jurandir e Maerbal. Desde minha infância. Também com Didi, filho de Jurandir e com a Rita. Caminhei com eles, uma parte importante do caminho que a Vida me presenteou. Aprendi muito com esses expoentes. Desenvolvi o prazer da boa leitura, e do estudo: Jurandir e Maerbal. Quanto ao terceiro personagem, o Ayres, esse me ensinou a ser feliz com o que se tem, a ter coragem,a cultivar os Amigos, e tudo o mais do que pouco sei. Desde pequenininho. Bem pequenininho, mesmo. Meu Pai.Muito obrigado, meu Amigo, por esse belo escrito, e amorosa homenagem.
ResponderExcluirSe no pouco convívio com eles tanto pude aprender, Mário, fico a imaginar o seu privilégio de tê-los (pai e “tios”) por perto até hoje! Abrace-os, em meu nome.
ExcluirCatita, Jobim, Rivaldo e os três desta ótima crônica são figuras inesquecíveis do Bando do Brasil que você resgata com muita propriedade e alegria. Só temos a agradecer por nos lembrar de figuras tão marcantes e emblemáticas.
ResponderExcluirSe os personagens do BB estavam à procura de um autor pra reviver suas peripécias, não precisam procurar mais. Hayton a cada dia aprimora a arte de fazer presente histórias deliciosas de pessoas indispensáveis!
ResponderExcluirParabéns, você tem a capacidade de fazer com que busquemos nas nossas mais remotas memórias buscar os nossos próprios Ayres, Jurandir e Maerbal dentro do BB e na vida fora dele.
ResponderExcluirQue belo momento da Vida, vou abri um vinho daqui há pouco, para comemorar a Beleza desta História. Viver é também, recordar. Vamos que Vamos!!!
ResponderExcluirFantástico, amigo Hayton!! Através de pessoas com a sensibilidade desse colegas é que foi construída essa Organização ímpar da história do País: O nosso BB.
ResponderExcluirMais um obra de arte literária, que enaltece os protagonistas e valoriza o autor. Uma pena que não mais se encontre poesia no ambiente bancário moderno. Hoje, sobram metas e cobranças.
ResponderExcluirQue bom Hayton. Fui testemunha ocular dessa cena e muitas outras que aconteciam frequentemente em nosso ambiente prazeroso de trabalho, onde nos sentiamos felizes e solidários, regado de momentos jocosos de boa fé. Como chefe de supervisores do SETOP naquela época, com equipe de talentosos funcionários vimos voce iniciando sua bela carreira no BB como menor aprendiz. Lembra muito o BIP com casos que você resgata com habilidoso esmero.
ResponderExcluirAchei também bela história Amigo! Muito bons tempos... Abs
ResponderExcluirNesse Bancão de meu Deus pudemos conhecer pessoas espetaculares. Estavam no banco porque ali encontraram segurança para a vida, mas o pensamento voava longe... quantos poetas ali dentro. Quantos cômicos ali dentro... era um mundo de responsabilidade e alegria. Infelizmente deixamos muitos para trás... afinal a vida continuava.
ResponderExcluirEm especial, o texto está primoroso.
ResponderExcluirSou testemunha ocular dessa bela historia. Por sinal eu era o Chefe de Supervisores do SETOP, antigo Encarregado, onde o Cadastro estava pendurado no organograma desde SETOP.na agencia 013-2 de Maceio-AL.
ResponderExcluirAntológica essa crônica, Hayton. Convivi com os três,mais de perto com o Ayres, realmente figuras inigualáveis. Do trio, resta Maerbal.Que Deus o conserve.
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