Chance, martírio e toalha
Logo após a Copa do Mundo de 1970, no México, quando o Brasil conquistou em definitivo a taça Jules Rimet, surgiu no Centro Sportivo Alagoano (CSA) um ponta-esquerda driblador, raçudo e veloz, um verdadeiro azougue para seus adversários. Chamava-se Ricardo.
Na época, um cartola do Esporte Clube Bahia conseguiu convencer a diretoria do clube alagoano a levar o garoto para realizar testes em Salvador antes de decidir por sua contratação.
No primeiro treino na Fazendinha – antigo centro de treinamentos no bairro da Pituba, em Salvador –, Ricardo, aos 18 anos, rendeu bem acima do esperado contra os titulares do Tricolor de Aço, que contava com estrelas regionais como Picasso, Aguiar, Sapatão, Roberto Rebouças, Baiaco, entre outras.
A conversa então se deu ali mesmo, à beira do campo:
– Bom, Ricardo, você tem futuro – disse o cartola, tentando mascarar o entusiasmo para não comprometer a proposta salarial a ser feita –, mas ainda é muito verde para jogar num clube grande como o Bahia.
– Tudo bem, vou voltar pra casa. Quando fizer 30 anos, apareço de novo por aqui.
O acordo com o CSA e o contrato foram fechados no dia seguinte.
Mas o menino nunca se firmou como atleta profissional do Bahia. Encurralado nas cordas pelos golpes das tardes em Itapuã e das noites no Rio Vermelho, Ricardo logo viveria um martírio (sobrepeso e lesões) até jogar a toalha e retornar para Alagoas, onde pouco tempo depois largaria o futebol sem nada digno de nota.
Chance, martírio e jogar a toalha me remetem a outro caso interessante. Envolveu o falecido Geraldo Bulhões (Gebê), eleito cinco vezes deputado federal por Alagoas, com mandatos consecutivos ao longo de 20 anos (de 1971 a 1991) até virar governador. No exercício desse último cargo, ele também ocupou a presidência do Conselho Deliberativo do CSA, sua paixão desde criança.
Aqui um parêntesis: Gebê, aliado do então presidente Fernando Collor, virou notícia nacional após a divulgação de brigas com a esposa, Denilma Bulhões. Jornais e revistas revelaram que ele havia sofrido uma surra de toalha molhada da primeira dama nos aposentos do palácio dos Martírios.
O episódio teve grande repercussão midiática e ele nunca o desmentiu, nem mesmo após o divórcio. Denilma, inclusive, era chamada de “governadora” e, dizem, inspirou a personagem Rubra Rosa, de Fera Ferida, novela da Rede Globo.
Gebê, que sofria sérios problemas nos olhos e evitava viajar por isso mesmo, no começo de 1993 designou representante para que fosse ao Rio em busca de reforços para o Azulão. Além do Fluminense, o São Cristóvão seria outro clube a ser visitado.
Ao desembarcar, primeiro o emissário procurou o pequeno clube carioca, cujos cartolas pediram quantia irrisória pela liberação de um atleta de seu time juvenil. Antes de bater o martelo, porém, o procurador resolveu ouvir Gebê:
– Governador, o pessoal tá nos oferecendo um menino bom de bola, bem baratinho...
– Quem é?
– Vi um treino dele e gostei. Tem só 16 anos. Mesmo magrinho, é ligeiro, dribla bem. O menino é bom!
– Menino a gente já tem de monte aqui em Maceió. O CSA precisa de jogador maduro, pronto.
– Tá bom... Então vou levar Catanha, que já tem 21.
Nada contra Catanha, que virou ídolo azulino e depois teria passagem marcante pela Europa, sendo vice-artilheiro do Campeonato Espanhol 1999/2000, com atuações que lhe garantiram inclusive a naturalização e uma vaga na Seleção da Espanha.
Acontece que o menino rejeitado por Gebê logo depois seria cedido ao Cruzeiro, de Minas, e no ano seguinte faria parte da Seleção Brasileira tetracampeã mundial nos Estados Unidos. Era um certo Ronaldo, que viraria fenômeno e mais tarde ainda seria pentacampeão na Copa de 2002, na Ásia, assinalando dois gols na partida final contra a poderosa Alemanha.
O Azulão, assim, perdeu a grande chance de ser reconhecido no mundo inteiro como clube formador de uma lenda do esporte mundial, com todas as vantagens disso decorrentes.
O Azulão, assim, perdeu a grande chance de ser reconhecido no mundo inteiro como clube formador de uma lenda do esporte mundial, com todas as vantagens disso decorrentes.
Há quem diga que a falta de visão de Gebê (perspectiva, no caso) pode ter motivado a famosa surra de toalha molhada no palácio dos Martírios. Não creio nisso, mas, reconheço, entre quatro paredes, nunca se sabe o que pode acontecer.
Me lembro ssa toalha molhada. Muito constrangedor pro governador na época. Qto ao Ronaldo perderam a chance.
ResponderExcluirSó assim para conhecer essas histórias
ResponderExcluirMeu amigo João Evangelista acaba de me contar: “Bateu saudade do meu querido amigo de mocidade Ricardo. Morreu lá no Posto Avenida, no final da Rua Deputado José Lages, após ingerir duas doses de Vodka.
ExcluirOutro que morreu cedo foi o José Ernesto, o Zequinha Babão, que fez sucesso no CRB: Andávamos juntos: eu, o Ricardo e o Zequinha.
Grande crônica. Que pena que deixaram o Cartola, míope, decidir.
ResponderExcluirA surra de toalha molhada tornou-se épica. Quanto à oportunidade de ter contratado o Ronaldo, foi uma questão de escolha.
ResponderExcluirNormalmente, Jez, a surra epica quem dá é o homem, mas como em Maceió é tudo diferente...
ExcluirNão sabia que em Maceió é normal surrar mulheres.vivendo e aprendendo!
ExcluirAntonio Sobrinho
Crônica deliciosa! A Denilma virou lenda nacional. Quanto ao fenômeno, quem sabe se a noite de Maceió não poderia ter levado o menino cedo pro mau caminho? Kkkkk
ResponderExcluirRiede, não creio. As noites de BH, Amsterdã, Madri, Milão deveriam ter até mais opções de levá-lo a este mau caminho.
ExcluirEsses erros referentes a jogadores de futebol sempre ocorrerão.... mas a história da toalha pela primeira dama é sensacional. Parabéns pelas lindas narrativas.
ResponderExcluirNeste caso se GB fosse presidente do CSA na época que Ronaldo Nazário saiu do Corinthians ele o contrataria.
ResponderExcluirAdemar Rafael Ferreira
A título de curiosidade, um tal de Arthur Antunes Coimbra, no início da carreira, foi proposto por empréstimo ao Fluminense de Feira de Santana. O clube baiano não quis. Coisas da vida!
ResponderExcluirQue belas histórias, meu amigo!
ResponderExcluirEsse seu “arsenal” é formidável!
Histórias deliciosas (com os tropeços normais da vida...).
Catanha também foi um fenômeno. Após passagens por uma série de clubes europeus, voltou e ainda jogou no MAC-Marília em 2005 e outros pequenos clubes. Maravilha de história e crônica que alegra a todos.
ResponderExcluirEm 1975, quando ainda pensava em ganhar a vida chutando uma bola, passei 1 mês e meio no CSA quando conheci e convivi com todos esses jogadores da foto. Ricardo era um dos grandes nomes do time e ídolo da torcida. Jogador irreverente dentro e fora de campo. Foi vendido ao Vitória da Bahia, porém não deu sequência à carreira voltando para Maceió. Nos encontramos e conversamos algumas vezes, uma delas, quando pegamos o mesmo táxi lotação.
ResponderExcluirUm dia, pela manhã, eu voltava a pé da Av. Jatiúca e nas imediações do Conjunto Santo Eduardo vi dois homens, um de cada lado, carregando um terceiro que arrastava os pés e falava coisas desconexas. Ao ultrapassá-los, reconheci, para meu espanto e tristeza que era o ex-grande ponta-esquerda do CSA, ídolo da torcida, Ricardo. Mais um talento perdido e uma vida comprometida pela dependência do álcool.
Esta cena azedou o meu dia.
Ricardo faleceu poucos anos depois.
A vida é cheia de muitos "se". Entretanto, somos levados a lembrarmos com mais frequência daqueles que deram errado. Se juntássemos todos eles, certamente teríamos material para inúmeras vidas, mas como temos uma só, temos que nos contentar e conviver sem os lamentos. Mais uma ótima narrativa.
ResponderExcluirQue beleza, hoje tivemos de tudo, surra de toalha molhada até o desperdício que a vida oferece e se aproveita ou não, como no caso de Ronaldo e Ricardo.
ResponderExcluirQue crônica saborosa! E que habilidade pra juntar surra de toalha molhada, Ronaldo Fenômeno e a trajetória de milhares de jogadores de futebol no Brasil que não encontram o sucesso. Obrigado Hayton!
ResponderExcluirRsrsrs Será que Ronaldinho mudaria o Azulão para "otopatamar" by JJ?
ResponderExcluirMais uma imperdível.
ResponderExcluirO Geraldo e a Denilma são figuras marcantes de nosso folclore político, bem merecem hospedagem em seus escritos, até mais que os atletas aík.
Nem apanhando aprendeu fazer a coisa certa: recusou um fenômeno só porque era novo... mas pelo menos era de opinião. A vida é assim, cheia de oportunidades. Como diz o gaúcho, o cavalo só passa encilhado uma única vez.
ResponderExcluirMais um texto gostoso de se ler e que nos leva a participar dele, acrescentando alguns fatos.
ResponderExcluirO Gebê apanhou, mas deu. Deu uma grande surra em Renan Calheiros nas eleições para governador de
Alagoas, em 1990. Conta-se que Renan foi dormir governador, acordou derrotado pela habilidade de Bulhões e traição de Collor. Foi o comentário da imprensa da época.
Assim como Ricardo, havia muitos pontas habilidosos em Maceió. Silva foi um deles,com rápida passagem pelo Vasco da Gama.
A bebida, na maioria das vezes, destrói grandes promessas. Isto aconteceu com o meu amigo de infância e de peladas, Lourival. Como meteoro brilhou no Vasco da Gama, sendo até lembrado, por Rui Porto, para a seleção brasileira de 1970. Infelizmente, a cachaça acabou com sua carreira. Morreu miseravelmente em Maceió, pouco tempo depois.
Se a surra de toalha molhada não foi motivada pela "vista curta" e não contratação do fenômeno, deveria ter apanhado outra vez.
ResponderExcluirEssa eu não conhecia! Vivendo e aprendendo. Muito boa história! Obrigado...
ResponderExcluirAbs
Na época em que GB era governador, a AUDIT tinha incluído nos procedimentos dos auditores, visitas a grande clientes e autoridades ligadas às auditadas. Juntos, o falecido Félix A. Lucas e eu, fomos visitar o então governador, buscando estreitar o relacionamento do governo com o BB, que andava um tanto estremecido. Durante as conversas, ficamos (Félix e eu) estupefatos, quando o governador repentinamente, cita o assunto da "surra de toalha molhada", para dizer que não era o bobão que comentavam ele ser, pelo fato de ter levado a tal surra. Nós ficamos perplexos e tratamos de puxar outro assunto, pois ainda que soubéssemos dos "boatos", não tínhamos como fazer qualquer comentário sobre o assunto.
ResponderExcluirEm 17 anos de viagens a serviço, foi o fato mais inusitado que me ocorreu.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirO álcool é a maior causa de mortes não acidentais. O maior destruidor de carreiras e de famílias e estranhamente segue sendo romantizado.... “a cervejinha”... “tomar uma”... “quebrar todas”. Enfim, a hipocrisia.
ResponderExcluirA famosa surra de toalha molhada. Este nosso cronista puxa cada coisa do fundo do baú...muito boa
ResponderExcluirComo é bom voltar ao passado e ver detalhes que não sabíamos, como a rejeição de um jogador que foi considerado o melhor do mundo. Excelente crônica.
ResponderExcluirHayton semanalmente brindando a gente com histórias não contadas, e sempre com a leveza de seu texto. Parabéns
ResponderExcluirMais uma pérola, traduzindo algo que ouvimos na música, sorte tem quem acredita Nela. Vamos que Vamos!!!
ResponderExcluirEssa história da toalha molhada foi folclórica. A mulher do governador, dizem, era mais macho que ele. Quanto a passagem sobre o Ronaldo Fenômeno eu desconhecia. Ótima crônica.
ResponderExcluirApesar de não cnhecer muito de futebol, sua crônica como as demais, uma atrás da outra, excelentes textos de se ler, eu lembro bem dessa história da toalha molhada. Parabéns mais uma vez pelo enredo e tão boa memória que não canso de admirá-la. Aguardando as inéditas crônicas, onde a gente acaba esquecendo os dilemas, lendo seus textos, harmoniosamente elaborados. Deus continue abeçoando essa memória excelente. Meu abraço.
ResponderExcluirDenilma Bulhões ainda é viva? Reparei que ela dá nome à avenida, conjunto habitacional e até ambulatório, mas não encontrei data de falecimento aqui na Internet.
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