Quando comecei a me dar conta dos pecados do mundo – no catecismo preparatório para a primeira eucaristia, em Patos (PB) –, logo percebi a facilidade com que se profanava certo mandamento bíblico: “Não cobice a casa de outro homem; não cobice a sua mulher, os seus escravos, o seu gado, o seu jumento ou qualquer outra coisa que seja dele”.
Não havia escravos, gado ou jumento em minha casa – havia, isto sim, uma escadinha de crianças! –, mas via que meu pai despertava um misto de curiosidade e inveja. Franzino, compenetrado a maior parte do tempo, de riso difícil e usando lentes grossas que destoavam de seu rosto miúdo, ele não era exatamente um Adonis ou Apolo, deuses da beleza na mitologia grega. Porém, quando passeava pelas calçadas de braços dados com minha mãe, bonita, risonha e mais alta que ele, atiçava a cobiça desmedida de alguns profanos. Ou de muitos.
Em 1967, eu tinha entre oito e nove anos quando voltava da bodega com uma encomenda de minha mãe e passava em frente à casa de um rapazote alto, magro, cara cheia de espinhas, sobrinho do prefeito da cidade, e dele ouvi: “lá vai o filho do bicho!”.
Quem virou uma onça ao me ver chegar chorando foi minha irmã. Tomou as dores e pegou o rumo da casa do covarde. Ele assoviava na calçada como se nada tivesse acontecido quando levou uma pedrada nas costas. E enquanto o infeliz recobrava o equilíbrio após o susto provocado pelo ataque, ela já voltava de alma leve por vingar o irmão agredido.
Pouco adiantou. O assédio duraria meses, pois quase toda semana minha mãe me mandava na bodega para comprar algumas coisas e, necessariamente, eu teria que passar pela porta do marginal. Sendo ele bem maior e mais forte que eu, o achincalhe era inevitável, às vezes morrendo de rir com uma récua de comparsas: “lá vai o filho do bicho!”
Nunca contei a meu pai porque tinha certeza de que ele nada faria. Era de índole pacífica, avesso a conflitos de toda ordem. Eu ainda correria o risco de ser acusado de criar confusão no meio da rua e pagar caro por isso. Na época, pais e filhos viviam próximos, mas em planos paralelos, distintos. Ainda bem que se aproximava a data em que deixaríamos de vez a Paraíba para morar em Alagoas.
O tempo passava e, antes da mudança, ganharia corpo em minha cabeça calejada de croques um acerto de contas sem chance de represália. Vira o desgraçado com os de sua laia numa aposta (espécie de disputa de pênaltis) na calçada. Um deles chutava uma bola três vezes de certa distância enquanto o outro buscava defendê-la; em seguida, trocavam de posição. No final da disputa, o vencedor recebia do perdedor um cruzeiro novo ou coisa que o valha. Dá para imaginar quem saiu de bolso cheio?
Pouco antes do feriadão em que partiríamos (Natal de 1967), costurei no capricho, com pedras e areia dentro, uma bola de plástico, velha e furada, e me sentei no meio-fio à espera do momento em que o delinquente apareceria. Quando ele deu as caras, a bola já estava a alguns metros de onde me posicionei como se fosse goleiro e o cutuquei: “ganha cinco se fizer o gol!”. Só vi com o rabo de olho o chutão e o barulho da queda da criatura, estatelando-se na calçada. Enquanto isso, voei para dentro de casa – era corajoso, mas nem tanto! –, pois não pretendia criar confusão na rua e, claro, desapontar meu pai. Saí apenas no sábado, bem cedinho, olhando de um lado e de outro, direto para a Rural Willys em que minha família pegaria a estrada.
Voltei a Patos (PB) quase 35 anos depois, próximo do São João de 2002. Revi o colégio onde aprendi a ler, escrever, rezar e pecar, na mesma rua onde morei por mais de cinco anos, mas sumiram todos os conhecidos de infância. Soube de alguns que se envolveram em arruaças com drogas e tiveram fim prematuro e melancólico. Do meu carrasco, porém, nada me foi dito, nem procurei saber.
Sabia que, às vésperas daquele inesquecível Natal há mais de meio século, profanara outro mandamento bíblico quando executei minha gloriosa despedida. Se comparada ao bullying, porém, nada mais que um pecadilho venial. Tanto que recordo de quase tudo com insuspeito prazer, exceto de algo importante: se o valentão conseguiu marcar o gol. Se não, estamos quites. Se fez, escapuli sem pagar a aposta.
O acerto de contas, se não prescreveu, estaria em aberto. Agora, só no Juízo Final.