Era mais um encaixe em minha agenda naquela tarde de quinta-feira, a pedido de uma vizinha lá do bloco onde moro, em Brasília:
– Doutor Nélson, posso mandar entrar a próxima? – quis saber a assistente.
– Por favor...
Mônica, 50 anos, 170 cm e 60 kg – ainda poderosa, mesmo insegura disso –, queixava-se de certo mal-estar, um desconforto no peito. Casada com Eduardo, 47, amigo meu desde que aqui cheguei, vindo do Rio.
Conversamos. Soube que é fluente em inglês e alemão, gosta de música (Caetano, Rita Lee), pintura (Van Gogh) e literatura (Bandeira, Drummond, Sartre). Tem também uma queda por magia e meditação.
Eduardo é diplomata de carreira vinculado ao Itamaraty, desses que vivem em missões especiais no exterior. Viajara duas semanas antes para a China – há muito, a maior compradora e investidora direta no Brasil – e ficaria fora por dois meses.
Voltando à consulta, avaliei frequência, ritmo cardíaco, e não percebi batimentos irregulares. Chequei pressão arterial, auscultei coração e o trajeto das carótidas à procura de sopros. Nada. Revi os laudos de alguns exames que ela trouxera. Tudo em ordem.
Orientei-a apenas quanto a atividades físicas e repouso. Ela mal conseguiu disfarçar a decepção:
– Não seria o caso de ressonância, doutor? – sugeriu, dando a entender que já "ouvira" o Google.
– Não precisa. Isso passa.
– Mas doutor, minha respiração anda acelerada. Estou suando frio sem motivo algum. As pernas tremem...
– Vai passar...
Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração, como questionava um trovador solitário, nos anos 80, entre blocos e botecos do Planalto Central?
Às dez da noite, após a sopa sem graça dos recém-descasados, eu folheava uma revista qualquer, recostado numa rede, quando me veio à mente minha vizinha, decepcionada com a consulta que me fizera. E mergulhei fundo em abstrações e conjecturas.
Inspirada, quem sabe, numa página de Simone de Beauvoir sobre sua paixão por Sartre, naquela noite Mônica ligaria para a emergência e diria do calorão que estava sentindo: “Fogo! Fogo!”.
O Corpo de Bombeiros então deslocaria viaturas para o prédio onde morávamos, supondo escapamento acidental de gás ou fio desencapado em chamas.
Os mais ágeis chegariam com suas mangueiras em punho: “Onde? Onde?” Ela, próxima à portaria, estaria sentada, sozinha, com uma taça de Terroir Chardonnay na mão à inútil espera do sono. E apontaria para o próprio peito: “Bem aqui!”
Seus filhos gêmeos, enquanto isso, notívagos desde a pré-adolescência, curtiam cantos e encantos, bares e pubs de uma cidade iluminada e seca, ainda sem sinais de pandemia no horizonte.
Às onze da noite, ela me contaria, pelo celular, que chegou a ser ameaçada de indiciamento por conta do trote. E aproveitaria para evidenciar sua frustração comigo: "Doutor Nélson Falcão Rodrigues Neto, não estou me sentindo nada bem. Me ajude. Preciso de um tarja preta”
É claro que aguçaria os ouvidos, como acontece toda vez que me chamam pelo nome completo. "Dê um pulinho aqui, no 606" – diria eu, em sinal de boa vontade e cuidado.
Apesar do adiantado da hora, não me negaria a socorrê-la. Mas o que pensaria o porteiro se a visse batendo em minha porta quase à meia noite, sabendo que seu marido viajara e que os filhos só chegariam em casa às quatro da madrugada?
Para evitar mal-entendido, eu teria que dar um jeito de cobrir a câmera do hall dos elevadores com fita isolante ou esparadrapo. Mas como faria isso sem ser visto? Não seria prudente contar com a distração do porteiro, a cochilar na guarita ao som do último telejornal.
Pouco depois, lá estaria ela diante de mim. Eu buscaria no Spotify o melhor de Legião Urbana e, do meu jeito, tentaria convencê-la a evitar o ansiolítico:
– Tá bonita neste hobby de chambre, hein?
– Você acha?
– Ele ligou?
– Ainda não.
– Tá mais calma, agora?
– Mais ou menos.
– Precisa mesmo do Rivotril?
– Doutor – diria ela, sorrindo à Mona Lisa –, vai me ajudar ou tá querendo outra coisa?
Ah, se meu avô fosse vivo, se visse e ouvisse isso! Teria aqui mote perfeito para mais uma de suas obras. Escritor, dramaturgo e cronista de costumes, diria que tudo não passara de um enorme mal-entendido. Talvez arrematasse reafirmando que "os homens mentiriam menos se as mulheres fizessem menos perguntas".
Confesso que me sentiria o pior dos cafajestes se me aproveitasse da fragilidade dela naquele momento e colocasse em risco não só a minha reputação, como a amizade com o seu marido. Seria muita sem-vergonhice de minha parte.
"A vida como ela é", diria meu avô, a esfregar as mãos enrugadas e sábias. E quem ousaria dizer que ele não tinha razão?