Você que ainda perde tempo com o futebolzinho que andam jogando no Brasil já deve ter ouvido falar de Gentil Cardoso (1906 – 1970), um técnico que fez sucesso na metade do século passado. Seu discurso paternal e folclórico incorporava o palavreado do povo com leituras de Gandhi e dos filósofos Cícero, Platão e Sócrates. Expressões suas são lembradas até hoje, como: "quem se desloca recebe, quem pede tem preferência"; "craque trata a bola de você, não de excelência"; "vai dar zebra" etc. Foi ele o primeiro a chamar de “cobra” atacante perigoso. E dizia que “brinca nas onze” aquele que era capaz de atuar em várias posições.
Era um entusiasta da troca de passes curtos, do jogo de pé em pé que mais tarde encantaria o mundo quando o Barcelona de Guardiola, Iniesta, Xavi e Messi mexeu com a estética do jogo, dentro de uma lógica puramente “gentil”: “A bola é feita de couro; o couro vem da vaca; a vaca gosta de grama; logo, lugar de bola é rolando no gramado”.
Um dia, no entanto, vendo o time ser goleado, Gentil pediu a seus jogadores para darem bicos para cima. Tinha uma justificativa pragmática: “Enquanto a bola estiver no alto, não tem perigo de gol aqui embaixo”. Sinal de que ser coerente com aquilo que se acredita é uma coisa; ser obsessivo, psicopata, é outra. Tem gente que mistura tudo! E o pior que pode acontecer é a coerência com os próprios erros, repetidos, onde o sujeito se recusa a evoluir.
Reza uma velha lenda urbana que, em 1952, ano em que Gentil Cardoso seria campeão carioca pelo Vasco da Gama, apareceu no estádio de São Januário, para experiência no time de aspirantes, um garoto esguio, desengonçado, ambidestro, genuvalgo (zambeta ou pernas de tesoura), morador de uma comunidade perto do pavilhão onde hoje se localiza o Centro Cultural de Tradições Nordestinas, a Feira de São Cristóvão.
O moleque exibiu de uma área a outra do campo um vasto repertório de toques e trivelas, demonstrando talento para a coisa, o que levou Gentil Cardoso a presumir que testemunhava o nascimento de um astro, quem sabe um novo Danilo, centro-médio vascaíno titular da Seleção Brasileira. No final do treino, quis saber:
– Menino, como você se chama?
– Cleofas, chefe!
– E seu sobrenome?
– Das Dores… Só tenho mãe.
– Mas tem apelido?
– Lá na Barreira o pessoal me conhece como Goiaba.
– Sei... – desiludiu-se Gentil – Meu filho, você já viu algum jogador vingar com um nome desses?
O menino foi-se embora. Nunca mais foi visto por lá.
No ano seguinte, já trabalhando no Botafogo, Gentil Cardoso não pisaria no tomate novamente ao encarar outro apelido incomum. Viu, aprovou e lançou no time principal um certo caçador de passarinhos de Pau Grande, 3° distrito de Magé-RJ, ponta-direita de 19 anos que ali treinava pela primeira vez e que mais tarde seria mundialmente reconhecido como uma lenda do futebol. Não era Goiaba, claro, mas outra figura chapliniana leve e livre como um rouxinol, uma cambaxirra ou carriça.
Garrincha e Gentil Cardoso, 1953 |
Vi pela TV, agora no começo do ano, quando o acreano Tomate, goleiro da equipe sub-20 do Andirá-AC, ao ser substituído durante a partida da Copinha São Paulo contra o Atlético-MG, deixou o campo contrariado e caiu no choro no banco de reservas, causando comoção nas redes sociais.
Eduardo Silva, conhecido como Tomate, vinha fazendo uma boa partida contra o Galo, sendo até aquela altura o principal responsável pelo resultado em 0 a 0. No entanto, quando uma penalidade foi marcada contra o Andirá-AC, o técnico resolveu substituí-lo por um tal de Carlos, que não impediu que a cobrança abrisse o placar do jogo. Em esportes que o goleiro possa sair e voltar, tudo bem; no futebol, não faz sentido!
A noite de Tomate, porém, acabaria em pizza, com demonstrações de apoio nas redes sociais. O atacante da seleção brasileira Richarlison escreveu: "Deus te abençoe, moleque. Você estava bem demais". Já o goleiro Weverton publicou: "Você brilhou e fez seu melhor, segue firme e levanta a cabeça. Deus te abençoe". Antes do jogo, Tomate tinha pouco mais de 1000 seguidores no Instagram e já soma agora mais de 400 mil.
Se Gentil Cardoso fosse o treinador do time acreano, imagino, já teria alertado o moleque, em início de carreira, a manter o seu nome de batismo (Eduardo). Ou assumir um nome “artístico” como Edu, Dudu, Ado etc. Ser chamado de Tomate deve doer tanto quanto de Alface, Cará, Jiló, Mandioca, Maxixe, Nabo, Quiabo, por aí…
Não que Eduardo (Edu, Dudu ou Ado) fosse defender a cobrança do pênalti naquele dia e evitar a derrota do Andirá-AC para o Atlético-MG, mas já teria ouvido do "filósofo" que desde que o mundo é mundo o nome (ou apelido) é a etiqueta colada à imagem que cada um vende de si mesmo.
A não ser quando se nasce Garrincha naquilo que se faz. Aí, até Goiaba ou Tomate serve.