quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Pisaram no Tomate

Você que ainda perde tempo com o futebolzinho que andam jogando no Brasil já deve ter ouvido falar de Gentil Cardoso (1906 – 1970), um técnico que fez sucesso na metade do século passado. Seu discurso paternal e folclórico incorporava o palavreado do povo com leituras de Gandhi e dos filósofos Cícero, Platão e Sócrates. Expressões suas são lembradas até hoje, como: "quem se desloca recebe, quem pede tem preferência"; "craque trata a bola de você, não de excelência"; "vai dar zebra" etc. Foi ele o primeiro a chamar de “cobra” atacante perigoso. E dizia que “brinca nas onze” aquele que era capaz de atuar em várias posições. 

 

Era um entusiasta da troca de passes curtos, do jogo de pé em pé que mais tarde encantaria o mundo quando o Barcelona de Guardiola, Iniesta, Xavi e Messi mexeu com a estética do jogo, dentro de uma lógica puramente “gentil”: “A bola é feita de couro; o couro vem da vaca; a vaca gosta de grama; logo, lugar de bola é rolando no gramado”. 

 

Um dia, no entanto, vendo o time ser goleado, Gentil pediu a seus jogadores para darem bicos para cima. Tinha uma  justificativa pragmática: “Enquanto a bola estiver no alto, não tem perigo de gol aqui embaixo”. Sinal de que ser coerente com aquilo que se acredita é uma coisa; ser obsessivo, psicopata, é outra. Tem gente que mistura tudo! E o pior que pode acontecer é a coerência com os próprios erros, repetidos, onde o sujeito se recusa a evoluir.

 

Reza uma velha lenda urbana que, em 1952, ano em que Gentil Cardoso seria campeão carioca pelo Vasco da Gama, apareceu no estádio de São Januário, para experiência no time de aspirantes, um garoto esguio, desengonçado, ambidestro, genuvalgo (zambeta ou pernas de tesoura), morador de uma comunidade perto do pavilhão onde hoje se localiza o Centro Cultural de Tradições Nordestinas, a Feira de São Cristóvão. 

 

O moleque exibiu de uma área a outra do campo um vasto repertório de toques e trivelas, demonstrando talento para a coisa, o que levou Gentil Cardoso a presumir que testemunhava o nascimento de um astro, quem sabe um novo Danilo, centro-médio vascaíno titular da Seleção Brasileira. No final do treino, quis saber:

– Menino, como você se chama?

– Cleofas, chefe!

– E seu sobrenome?

– Das Dores… Só tenho mãe.

– Mas tem apelido?

– Lá na Barreira o pessoal me conhece como Goiaba. 

– Sei... – desiludiu-se Gentil – Meu filho, você já viu algum jogador vingar com um nome desses?

O menino foi-se embora. Nunca mais foi visto por lá.

 

No ano seguinte, já trabalhando no Botafogo, Gentil Cardoso não pisaria no tomate novamente ao encarar outro apelido incomum. Viu, aprovou e lançou no time principal um certo caçador de passarinhos de Pau Grande, 3° distrito de Magé-RJ, ponta-direita de 19 anos que ali treinava pela primeira vez e que mais tarde seria mundialmente reconhecido como uma lenda do futebol. Não era Goiaba, claro, mas outra figura chapliniana leve e livre como um rouxinol, uma cambaxirra ou carriça. 

 

Garrincha e Gentil Cardoso, 1953

Vi pela TV, agora no começo do ano, quando o acreano Tomate, goleiro da equipe sub-20 do Andirá-AC, ao ser substituído durante a partida da Copinha São Paulo contra o Atlético-MG, deixou o campo contrariado e caiu no choro no banco de reservas, causando comoção nas redes sociais. 

 

Eduardo Silva, conhecido como Tomate, vinha fazendo uma boa partida contra o Galo, sendo até aquela altura o principal responsável pelo resultado em 0 a 0. No entanto, quando uma penalidade foi marcada contra o Andirá-AC, o técnico resolveu substituí-lo por um tal de Carlos, que não impediu que a cobrança abrisse o placar do jogo. Em esportes que o goleiro possa sair e voltar, tudo bem; no futebol, não faz sentido!

 

A noite de Tomate, porém, acabaria em pizza, com demonstrações de apoio nas redes sociais. O atacante da seleção brasileira Richarlison escreveu: "Deus te abençoe, moleque. Você estava bem demais". Já o goleiro Weverton publicou: "Você brilhou e fez seu melhor, segue firme e levanta a cabeça. Deus te abençoe". Antes do jogo, Tomate tinha pouco mais de 1000 seguidores no Instagram e já soma agora mais de 400 mil. 

  

Se Gentil Cardoso fosse o treinador do time acreano, imagino, já teria alertado o moleque, em início de carreira, a manter o seu nome de batismo (Eduardo). Ou assumir um nome “artístico” como Edu, Dudu, Ado etc. Ser chamado de Tomate deve doer tanto quanto de Alface, Cará, Jiló, Mandioca, Maxixe, Nabo, Quiabo, por aí…

 

Não que Eduardo (Edu, Dudu ou Ado) fosse defender a cobrança do pênalti naquele dia e evitar a derrota do Andirá-AC para o Atlético-MG, mas já teria ouvido do "filósofo" que desde que o mundo é mundo o nome (ou apelido) é a etiqueta colada à imagem que cada um vende de si mesmo.  


A não ser quando se nasce Garrincha naquilo que se faz. Aí, até Goiaba ou Tomate serve.

 


32 comentários:

  1. O elástico da parte folclórica do futebol esticado por uma mente criativa como do cronista Hayton não tem limite. Cada "estória" vira fato real. Viva a criatividade.

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    1. É possível, Ademar, mas lidar só com a verdade é assumir nossa incapacidade de criá-la.

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  2. Apelidos, em geral depreciativos, podem mesmo causar grandes dissabores. Eu mesma sofri isso. Quando cheguei na terra do Tomate, ops, do Eduardo, muito magra, alta acima da média, branca quase transparente, falando "poRta, poRtão, fui chamada de "girafa". Sofri até não ligar mais. Decidi adotá-la como bichinho de estimação. Tenho várias girafinhas, de madeira, pano, metal. Ainda falta a de carne e osso!

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  3. Conheci, ainda conheço, pessoas que carregam apelidos constrangedores. Alguns nunca tentaram mudá-los, tornaram-se marcas. E existem aqueles que o booling deu certo: Pelé, Didi,Garrincha e por aí vai. O pobre do Tomate foi a bola ou Tomate da vez. Alguns depreciam, outros enaltecem... Fenômeno. Já não é o mundo de antigamente.

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    1. Esse negócio de apelido no meio futebolístico é caso sério. Lembro-me de um time do Penedense dos anos 70, da cidade de Penedo-AL, cuja escalação começava assim: Bereu; Coco, Bodão, Casca e Ieié… Só o locutor esportivo Sabino Romariz não caia na gargalhada ao anunciar o “timaço da capital do Baixo São Francisco” que “adentraria ao gramado”.

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  4. Eu comecei a trabalhar ainda menino e meu nome, Hideraldo, não combinava muito com meu corpo de espermatozóide. Virei Dedé e assim continuo até hoje, o que estragou de certa forma a homenagem que meu pai queria fazer ao grande ídolo vascaíno, o que talvez não acontecesse se ele tivesse sido direto e escolhido Bellini. Marca é tudo!
    Dedé Dwight

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  5. Eu não sei se o Tomate vai ter sucesso no futebol profissional. Mas que o fato descrito pelo Hayton deu um impulso na carreira dele, isso é inegável.
    O fato de ter sido injustificadamente substituído, de o goleiro que entrou em seu lugar não ter pegado o pênalti e as lágrimas que escaparam ao vivo na tevê ajudaram muito a despertar uma rede de solidariedade ao Tomate. E o apelido, na minha opinião, ajudou muito!
    Imaginem se alguém aqui estaria falando do fato se ele tivesse ficado em campo, tivesse tomado o gol de pênalti e se chamasse Eduardo!!! Não teria a menor graça!
    Ah, e teve mais um fato que me chamou a atenção: quando a imprensa provocou o Tomate pra ele criticar o técnico que o substituiu, ele foi de uma elegância tomatal: defendeu empaticamente o seu treinador!

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  6. Nome é coisa complicada, que pode marcar a pessoa pelo resto da vida, e alguns pais colocam os mais estrambólicos nos filhos, que podem marcar para o resto da vida.
    Possuía amigo, em Viçosa-Al, que deveria ter sido registrado SALATIEL.
    Aqui no Nordeste algumas pessoas têm o hábito de "comer" o L do final dos nomes: "capitá, futebó", Manoé, Genivá, etc. O Ministro do STF, o parente do Collor, que se aposentou recentemente, também "come" o L quando fala.
    Pois bem. O pai do SALATIEL tinha essa mania e o SALATIEL foi registrado como "SALATIÉ". O notário do Cartório de Registro Civil também se passou. Logicamente os demais documentos eram emitidos com o nome de SALATIÉ.
    O cara era puto com o nome e até o RG deu jeito de acrescentar o L. O Cartório, por desconhecimento, não aceitou corrigir o nome e ele não quis gastar dinheiro com advogado para alterar com um Juiz de Direito.
    Já faleceu. Pelas regras ortográficas quando se passa dessa para a melhor se pode corrigir o nome que fica na lápide. Grande prêmio de consolação!
    Não sei se na tumba do meu amigo colocaram: "aqui jaz SALATIEL, que em vida se chamava SALATIÉ, por conta do fdp do notário".
    Como possuía altura além do normal também era chamado de "coqueiro". Nesse caso ele nem reprovava o apelido.

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  7. Caro amigo Hayton, Bom Dia.
    Nomes e apelidos podem provocar risos ou choros, a depender da circunstância, mas é a melhor forma de alguém ser identificado.
    A depender da entonação, pode motivar ou desmotivar... Ou até provocar iniciativa para a mudança, do nome ou de atitudes...
    Mas, mesmo que incomode, tem que seguir em frente para buscar o lado bom que sempre existe.
    Mais uma vez, caro Hayton, você instigou seus leitores e, isso, fez-nos "viajar" por muitos apelidos...
    Forte abraço.

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  8. Literalmente, pisaram no Tomate rsrs

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  9. Isso mesmo. No futebol há muitos apelidos. Mas o que vale de verdade é a habilidade com a pelota. Como era empolgante assistir ao time do Barça citado encantar-nos com a bola. Por birra, pode-se opor a um nome estranho, ou que soe mal. Mas se houver maestria, qualquer alcunha vale.
    Roberto Rodrigues

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  10. Caro Hayton,
    Excelente crônica. Me fez lembrar quando estava em Eduardo Magalhães(BA), em um jantar, com empresários e investidores brasileiros e estrangeiros, ao fazer minha apresentação, além do meu, citei o apelido. Logo após, recebi, uma orientação,um leve puxou de orelha, de um fundador da Cidade: Com o nome deste, esquece do Tom. Aqui é uma Cidade diferente. Vamos que Vamos!

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  11. Muito me impressiona a sua criatividade! É uma delícia começar o dia com suas crônicas!

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  12. Teve quem fez sucesso como goleiro se chamando Manga. A prevalecer a lógica futebolística tem chances de o Tomate vingar também. Boa sorte pra ele.

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    1. Manga foi um Garrincha debaixo das traves. De safra rara. Qualquer apelido servia.

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  13. Boa crônica!
    Gostei do apelido tomate 🍅

    Na Bahia tem um
    cantor de axé de nome tomate faz o maior sucesso.

    Abração

    Zezito

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  14. Sei que o pai chegou no cartório pra registrar o filho antes mesmo de nascer. Edson. Não pode. Tem que nascer primeiro. Quando nasceu, voltou ao cartório e falou: O nome é Pelé. E o notário: Uai, não era Edson. E o pai: Edson EraAntes do Nascimento.

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  15. Mais uma criação genial sua.
    E desta vez algo que será capaz de fazer produzir comédia teatral, show humorístico e até vibração entre torcedores de futebol, aqueles que andavam tão nostálgicos - sim, falo dos queridos amigos vascaínos que tenho, afinal você lhes fez lembrar que seu time de coração foi campeão no nem tão distante ano de 1952. Como flamenguista, faço aqui minha homenagem.
    Agora, falando em apelido, há um caso interessante que dizem ter acontecido em uma cidade aqui da velha Bahia. O cara foi se inscrever em um concurso ou coisa assim e respondeu quando o atendente perguntou seu nome - "meu nome é Pe-Pedro de Sá-Sá.
    O atendente então questiona se ele era gago, ouvindo em resposta - "NÃO, senhor, meu pai que era gago e o escrivão era FILHO DA PUTA!!".
    A sacanagem com o Vasco fiz com o escritor, pois com o amigo, cidadão, não sou capaz de fazer. Com o artista é a vingança por não possuir tantos dotes...

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    1. Não dá pra negar, o Vasco já teve seus dias de Muriqui, Catita, Pikachu, mas a urubuzada já venerou Onça, Tinteiro, Fio, Tromba, Merica, Minhoca etc.

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  16. Adorei, Hayton!
    Presente: eu ainda ando perdendo tempo com o futebolzinho daqui. Ano passado, o “Galo” me recompensou. Não que seja eu sua torcedora, mas para dar uma modificada no cenário dos vencedores.
    Sobre os apelidos, você e os colegas com seus comentários já deram “um show de bola”.

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  17. Hoje, o chamado profissionalismo está acabando com os apelidos. Todo mundo com o nome insosso do dia a dia. E tem até caso inusitado de mudança entre nomes comuns. Marcelinho virou o Lucas Moura....só para não confundir com atacante do Corinthians nos anos 90.

    Sergio Freire

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  18. Um das melhores linha de ataque do futebol dos anos 60 estava no nordeste, no Náutico do Recife. Nado, Bita, Nino e Lala. O mesmo sucesso não obteve o ABC de Natal em 1969. Dão, Dunga, Buru e Burunga.

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    1. O próprio Gentil Cardoso tomou gosto pela coisa. Em 1955, já no Sport de Recife, foi campeão pernambucano com uma linha de ataque literalmente assustadora: Traçaia, Naninho, Gringo, Soca e Geo.

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  19. Hayton, outra boas das suas, show como sempre! Ma tem uma que não sei se vc e a turma aqui conhece, mas é a sobre um jogador chamado "Deran". Ao final de um jogo, onde se destacou, um entrevistador perguntou se com esse nome bonito "Deran" seria ele francês ou de família estrangeira, aí ele esclareceu prontamente, "nada .. é que quando comecei jogar no interior era magricela, desengonçado e tinha o apelido de "cu de rã", aí cresci no futebol e ficou chato esse apelido, então tiraram o cu e só deixaram a rã, por isso "Deran". Garanto que é baseado em fatos reais....
    tiberio

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    1. Já ouvi esta história como sendo DIRRAN.

      Felizmente, não lembraram de um time cujo meio de campo era formado por Kiko, Zinho, Lindo. Pegadinha para o locutor anunciar a escalação!

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  20. Outra excelente crônica! Quem não conhece cabeção, bagre ensaboado ….kkkk

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  21. ...excelente Hayton...excelente!!! Super leve
    ....

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  22. Excelente crônica Hayton! Me fez lembrar do famoso ataque do Náutico-PE, quando conquistou o Hexa Campeonato Pernambuxano: NADO, BITA, NINO e LALA...

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  23. Muito legal, gostei muito dos comentários também, e para não deixar barato, lembro um certo ataque da Portuguesa Paulista: Xaxá, Tatá, Cabinho e Piau.

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  24. Este caso emocionou todo mundo...o técnico ajudou a promover o tomate

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