Semana passada toquei no assunto, mas sem maiores detalhes. Durante certo tempo, aos sábados, juntávamos dez irmãos na casa da matriarca para beber cervejas, falar de conquistas e frustrações e ouvi-la de novo a nos convocar à velha mesa onde ajoelhávamos diante do panelão do dia, mesmo depois de casados e da chegada das primeiras crias de uma nova geração.
Etiqueta nenhuma! Quase todos colocavam os cotovelos sobre a mesa. Embora a atitude passasse um ar de desleixo, era importante garantir espaço roubando daqueles que estavam ao lado, sob pena de perder os melhores pedaços. Manter os cotovelos junto ao corpo, apoiando apenas os antebraços ou os punhos, como reza qualquer manual de bons modos, poderia levar o bem-educado a deixar a mesa com fome, procurando reforço de cream crackers.
Ilustração: Umor |
Ninguém usava adequadamente os talheres. Não adiantava a mãe lembrar que o garfo deveria ser usado na mão direita, enquanto a faca descansava na parte superior do prato, com a serra voltada para dentro. Ou que quando precisasse usar faca, o garfo iria para a mão esquerda e a faca para a mão direita. Que a faca não deveria ser usada para ajudar a colocar a comida no garfo etc.
Teve a namorada de um de meus irmãos que tentou explicar aos cunhados mais novinhos – na esperança de sensibilizar também os mais velhos, claro! – que se deveria manusear os talheres com os dedos e cortar o alimento à medida que fossem comendo. Depois que se começasse a comer, “os talheres jamais devem tocar a mesa”, dizia com jeitão de professora de ensino fundamental.
De nada adiantou. Uns não controlavam a ansiedade enquanto a comida não era servida e faziam dos talheres baquetas sobre os pratos transformados em tarol, caixa e surdo de uma banda marcial de desfile escolar até ouvirem a ordem unida da “baliza” com o caldeirão de cozido fumegante nas mãos: “Parem com isso, agora!”. E ai de quem tentasse um dobrado a mais simulando uma corneta com a boca!
Também não ouviam a matriarca pedir para que se servissem aos poucos quando a comida chegasse à mesa, que não deixassem o prato transbordar. Não botavam fé nessa história de que, se continuasse com fome após o primeiro prato, poderia repetir. Na hora, ninguém se preocupava muito com terceiros, embora fossem forjados desde cedo a calcular mentalmente quantas porções havia para cada membro da família, não se servindo de forma exagerada a ponto de deixar um irmão com fome.
Outro conselho repetido em vão era para mastigar devagarinho, em pequenas garfadas e sempre de boca fechada, ainda que se argumentasse que não haveria uma pausa muito grande até engolir o alimento para poder voltar a conversar. “Quem come devagar fica sem pudim, vó!”, ponderou certa vez um netinho que mal aprendera a falar.
Uma vizinha que gostava de aparecer justamente na hora do almoço certo dia alertou: “Jamais gesticulem com os talheres na mão enquanto mastigam ou conversam. Além disso, evitem gestos bruscos. Levem o alimento até a boca e não a boca até o alimento”. Enquanto discursava, quase teve a mão perfurada por um garfo nervoso em busca de uma moela de galinha.
E teve outra que pecou pela incoerência: “Não peguem carnes com ossos, como costela de boi, frango e carneiro, com as mãos. Usem garfo e faca. Tirem o caroço de azeitona da boca com a ponta do garfo e coloque-o na beira do prato, nunca sobre a mesa”. Logo depois era vista roendo uma costeleta de porco, para decepção da cadelinha vira-lata que integrava o arranjo familiar e que parecia dizer: "ah, esses animais racionais!"
Ninguém ligou quando a vizinha prosseguiu dizendo que não se deveria cortar o macarrão. “O talharim e o espaguete são servidos inteiros e comidos com garfo. Comecem a enrolar pelas bordas do prato e não pelo centro, senão a garfada ficará grande demais. Ao levar à boca, se alguns fios ficarem pendurados, simplesmente corte-os com os dentes”.
Até uma de minhas irmãs, um dia, achou de orientar os sobrinhos para que dobrassem a alface e outras folhas antes de comer. “Façam trouxinhas e coloque-as na boca delicadamente...” Um deles olhou-a dos pés à cabeça e provocou gargalhadas: “Olhe, tia... Sei não, viu?!”
Desde cedo a matriarca exigia que evitássemos ruídos ao tomar caldos, canjas, sopas e outros líquidos. “Nunca levante o prato para tomar até a última gota. E se houver pão para acompanhar o prato, parta e coma com a mão”, ensinava. Mas se alguém lembrasse que ninguém fazia como ela uma sopa de feijão, entregava os pontos sorrindo inclusive com os olhos: “Cê acha? Por quê?
De um dos últimos encontros de que me recordo, ela nos recomendava que qualquer imprevisto que surgisse, como um pedaço de folha de alface grudado no dente, fôssemos discretamente ao banheiro resolver o problema. E uma das netinhas foi logo pedindo maiores detalhes: “Vó, só folha, né? Pode soltar arroto e pum?”