Para mim, o grande acontecimento no primeiro quarto deste século 21 tem sido a evolução espantosa e fatal dos parvos. Nelson Rodrigues bem que avisou que “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”, mas a tecnologia tem ajudado a acelerar o processo.
Você, leitora amiga, sabia que é possível postar nas redes sociais um vídeo cantando com a mesma categoria de Elis Regina ou Marisa Monte? Você, meu caro leitor, sabia que pode ser visto dançando como John Travolta em Os Embalos de Sábado à Noite, apesar da pança e das dores nas articulações?
É simples. O truque que permite simular algo assim pode parecer complicado, mas não é. Basta, por exemplo, extrair de plataformas como o Youtube gravação de voz e filmagem de movimentos naturais, inclusive trejeitos, para se criar uma realidade alternativa capaz de deixar qualquer um de queixo caído.
Esse tipo de manipulação, com a ajuda tecnológica da chamada Inteligência Artificial (quando computadores são programados para imitar o comportamento humano), é conhecido por deepfake, termo que descreve arquivos de áudio e vídeo criados num “aprendizado de máquinas”.
O potencial de maldades e trapaças é incrível. Qualquer deepfake que se possa imaginar é possível ser feito, com troca ou retoques faciais, clonagem de voz (“copiada” para dizer outras coisas), sincronização labial (quando a boca de alguém falando pode ser ajustada a uma faixa de áudio diferente) e outras artimanhas que até um semianalfabeto digital aprende com facilidade.
Corpos também podem ser criados como avatares. Com essa tecnologia, mesmo algumas figuras históricas que já se foram para outro plano podem ser trazidas de volta para aprontar mais algumas antes de arderem de vez nos quintos dos infernos.
Funciona assim: um computador consulta outro se o clone que ele acaba de “criar”, a partir de você, é bom o suficiente, comparando-o com o “material” original. Sacoleja os braços e move as pernas do mesmo jeito? A voz é igual, inclusive os vícios de linguagem? A expressão facial é parecida? Os tiques nervosos? E a coisa vai se aprimorando a cada nova versão até o “criador” ficar satisfeito com a “criatura”.
O impacto disso pode ser devastador, sobretudo no campo político (ou pornográfico, sem querer ser redundante), onde vira e mexe imagens falsas são veiculadas nas redes sociais e causam danos terríveis às vítimas, desde raposas felpudas até os mais vulneráveis, como crianças e idosos.
Descobrir traços imperfeitos nesse tipo de mídia manipulada constitui um desafio, mas podem ser identificados procurando-se “saltos” bruscos no vídeo, mudança na entonação da voz, baixa qualidade do áudio, membros com formas desproporcionais, essas coisas.
E não precisa ser expert no tema para distinguir o que é verdadeiro do que é falso. Quando um vídeo lhe parecer suspeito, experimente diminuir a velocidade, reveja uma ou duas vezes e se pergunte: isso pode ser real? É natural que aconteça?
Em seguida, veja se encontra o enredo do “filme” em fontes alternativas confiáveis. Uma breve pesquisa lhe dirá se você está diante de algo verdadeiro ou falso. Se houver outra versão, compare. Enfim, se desconfiar de um vídeo (ou de uma imagem), lembre-se de que o velho e sábio Google ajuda muito.
O importante é você saber que a maior ameaça dos deepfakes está na forma de lidar com ele. Conectada 24 horas por dia, a sociedade vem se empanturrando desses monstrengos virtuais e quase sempre aquilo que passa adiante (por inocência ou má-fé; mas sempre ávida por isso!) é narrativa mentirosa.
A desinformação, aliás, objetiva justamente espalhar dúvidas, reforçar crendices ou se opor de forma antidemocrática a outras ideias. E numa nação onde a maior parte das pessoas (inclusive pertencentes às castas dominantes) não lembra nem do título do último livro que leu, pouca gente se dá ao trabalho de verificar se imagens e sons foram retirados de contexto, editados ou encenados. Especialmente se o que viu reforça seus credos.
Pior que tudo: algumas figuras desonestas tiram proveito desse ambiente saturado de ignorância e obscurantismo. A mera existência dessa tecnologia lhes faz jurar de pés juntos que tudo o que disseram é falsificação. "O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém" (Shakespeare).
Você deve lembrar de um ex-presidente norte-americano que alegou ser “uma farsa” – ainda que, anos antes, tenha se desculpado pelo vacilo – a gravação na qual, referindo-se às mulheres, diz: “...eu sou atraído pela beleza... Simplesmente começo a beijá-las. É como um imã. Simplesmente beijo… E quando você é famoso, elas deixam você fazer isso. Você pode fazer qualquer coisa”.
Ufa! Ainda bem que não temos por aqui esse tipo de gente, capaz de tudo. Poderia querer se aproveitar da evolução espantosa e fatal dos parvos para atingir objetivos nada republicanos.