quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Pode dar certo, entende?

Quase tudo já foi dito sobre Pelé desde quinta-feira passada, quando nos deixou. Felizmente, sua obra está registrada em narrativas audiovisuais, escritas e orais.

No dia seguinte, uma nordestina, negra, defensora das causas LGBT, foi escolhida para ser presidente do Banco do Brasil. A paraibana Tarciana Medeiros é a primeira mulher a ocupar o cargo em dois séculos de história da instituição.

 


O que uma coisa tem a ver com a outra? Aparentemente, nada! Mas
 ao reler a crônica adiante, aqui publicada há mais de dois anos (em outubro de 2020), vi que o desfecho contém algo premonitório: um choque de diversidade e inclusão.

Vai ver o Rei, sabiamente, já começou a marcar seus golzinhos no Céu, buscando reduzir desigualdades atávicas aqui na Terra.

 

Não ia dar certo, entende?

 

Na live “Pelé, 80 anos” apresentada outro dia pelo site UOL Esporte em homenagem ao aniversário do Rei do Futebol, o jornalista Cláudio Arreguy contou uma história deliciosa de como o mundo esportivo quase foi vítima do acaso e engrossaria o caldo das coisas que poderiam ter sido e não foram. 

 

Dizia ele que Dr. Prata, médico e pai do escritor Mário Prata, sugeriu a Dondinho, o pai de Pelé, que convencesse o filho a prestar concurso para o Banco do Brasil. “Futebol não dá futuro a ninguém! Bota o rapaz no Banco do Brasil que lá ele tem futuro garantido”. 

 

Apesar de a sugestão partir do único e respeitável médico da Bauru na metade da década de 1950, prevaleceu o saber popular: “Se conselho fosse bom...”. Note-se que, naquele tempo, não se imaginava que mais de meio século depois haveria “médico” aconselhando cloroquina para combater uma gripezinha sazonal. 

 

Posso até não discutir o estrago que o conselho do Dr. Prata a Dondinho, se acatado, causaria ao futebol mundial, mas me atrevo a imaginar o que teria acontecido ao cidadão Edson Arantes do Nascimento se tivesse obedecido a eventual orientação paterna. 

 

Com a bola que ele andava jogando, logo seria transferido para uma grande metrópole, passando a integrar o time de futebol de salão da AABB. E nos primeiros anos de banco não seria tão difícil obter uma licença especial para disputar jogos pela extinta CBD. Quem sabe até um publicitário condicionaria a liberação do atleta à exposição da marca da empresa na camisa canarinho, como ocorreria mais tarde envolvendo a CBV (vôlei), a partir das Olimpíadas 92, em Barcelona.  

 

Edson, porém, sabendo que a ação cruel do tempo sobre seus músculos e ossos uma hora decretaria o fim da carreira futebolística, cuidaria de preservar suas relações internas, admitindo até que alguns chefes dessem pitacos sobre sua conduta extra-banco. A empresa sempre teve seus sabichões das segundas-feiras que transitavam de teorias de Einstein sobre a interação entre espaço, tempo e gravidade, aos estudos sobre os múltiplos orgasmos de uma abelha-rainha.  

 

Por azar ou grande atuação de goleiros que jogavam contra a seleção brasileira, Edson deixaria de marcar alguns gols que certamente seriam incluídos entre os mais bonitos de sua jornada. Gols que não aconteceram, mas ficaram para sempre na memória dos amantes do esporte. 

 

Aos 29 anos e no auge de sua forma física, o funcionário do BB cedido à CBD viria a ser o grande protagonista brasileiro na Copa 1970, um autêntico “Nélson Mandela” a liderar a seleção na conquista de seu terceiro Mundial, que garantiu a posse em definitivo da taça Jules Rimet, roubada e derretida 13 anos depois, sinal claro de como o país cuida de sua história.

 

Na época, três goleiros passariam a ser conhecidos no mundo inteiro justamente por se envolverem – dois deles como coadjuvantes e o outro dividindo o papel de protagonista – em lances espetaculares de Edson, reconhecido mais tarde como o “Atleta do Século”.

 

Viktor, da antiga Tcheco-Eslováquia, quase levou um gol em um chute de Edson do campo de defesa brasileiro. O goleiro bem que tentou, mas não conseguiu fazer a defesa, e a bola passaria a poucos centímetros do ângulo de sua trave esquerda. Na manhã seguinte, imagino, um chefe de serviço qualquer ligaria para Edson: “Negão, vê se capricha na próxima e melhora o rendimento, tá legal?”

 

Mazurkiewicz, do Uruguai, tomou humilhante "drible da vaca" – também conhecido como “meia-lua”, “arrodeio” – na entrada da grande área. Mesmo desequilibrado, Edson ainda chutou cruzado, rente ao pé da trave direita, iludindo inclusive o zagueiro que tentava fazer a cobertura. Após a partida, creio, um gerente qualquer ligaria: “Você não tinha nada que enfeitar! Poderia ter feito o gol de fora da área, cobrindo o goleiro com uma cavadinha, sem frescura!”

 

Banks, da Inglaterra, por sua vez, defendeu uma cabeçada quase perfeita, interceptando em pleno ar uma bola que quicou antes, após um salto espetacular de Edson entre os zagueirões branquelos. Certamente um diretor qualquer do banco não perderia a oportunidade de cutucar o funcionário cedido: “Vacilou. Se tivesse cabeceado no contrapé do goleiro, no canto esquerdo, faria o gol...”

 

Logo depois Edson retomaria sua carreira bancária pressionado de tudo quanto era jeito – normas e rotinas de serviço desconhecidas, metas de vendas de produtos, avaliação de desempenho, colegas invejosos de suas tarefas extra-banco etc. Acabaria mais desorientado do que o goleiro italiano Albertosi, vítima de seu último gol em Copas do Mundo, na goleada de 4 a 1. 




De repente, Edson já não sorriria largo, leve, para os clientes. Nem veria graça num trabalho cheio de manuais de procedimentos. Teria medo de demonstrar insegurança ao prestar esclarecimentos e, quem sabe, suscitar dúvida em seu chefe imediato quanto à aptidão para a carreira. O que diriam Dondinho e Celeste se o filhão perdesse o emprego com futuro garantido de que falava o Dr. Prata?

 

Mas daria tudo certo. Se bem que Edson, que nunca vira motivos para denunciar os excessos da ditadura militar ou a existência de racismo no país, logo perceberia que metade da população brasileira é parda, mas isso nunca se refletiu nos quadros da empresa, circunstância que piora quando se fala da ocupação dos chamados cargos de confiança.

 

Hoje, oitentão, aposentado, Edson talvez refletisse sobre algumas questões para as quais não encontrou resposta no emprego com futuro garantido: por que nunca viu um presidente negro em tantos anos de carreira na empresa? E vice-presidente negro, por que só um em mais de dois séculos de história? 

 

Quem sabe até se perguntasse: e se ele, Edson, tivesse nascido em Dois Riachos, Sertão alagoano, fosse mulher, mestiça de caboclo com indígena, e se chamasse Marta, a história teria sido diferente? "Não ia dar certo, entende”, talvez dissesse.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Coisas profundas

Duas semanas antes do Natal de 1995, tia Ritinha (era assim que a chamavam) me contou que ouviu um barulho estranho na porta de casa, por volta das nove da noite. Foi até lá e deu de cara com dois desconhecidos. Preocupou-se com eles:

— O que cês tão aí no sereno? Entrem que a friagem não faz bem. 

 

Quase cega pelo avanço da catarata, 88 anos, ela tocava a hospedaria (com a ajuda de sua única neta) num casarão antigo cujo quintal dava para um rio temporário onde restavam apenas algumas poças barrentas sobre o leito de areia, capim seco e pedras, no Sertão pernambucano. Para cortar caminho até a praça da matriz, os moradores da cidade atravessavam o casarão, de porta a porta. 

  

Mário Édson (@meatelierdafotografia)

Sua neta, cerca de 30 anos, baixinha, simpática, tinha compulsão de limpeza e não podia ver uma coisa fora do lugar. Fora criada pela avó. Perdera a mãe havia muito tempo numa rara enchente do rio, ao tentar atravessá-lo pouco antes de uma tromba d’água que devastou em questão de minutos boa parte do lugarejo. 

 

No começo de 1996, estive na região por três dias. Avaliava o fechamento (ou não) de agências de dois bancos federais e um estadual que disputavam entre si os escassos recursos que ali circulavam.


Num fim de tarde, ouvi tia Ritinha perguntar a alguém que atravessava o casarão de porta a porta, pegando atalho até a praça:

— Tá com fome, filho? Vá lá na cozinha, fale com minha neta, coma alguma coisa, beba um copo d’água... Puxe a cadeira, descanse um pouco...

 

Do meu quarto, bem cedo, já havia visto quando ela acertava as contas com o leiteiro. Quem pagava e quem recebia não tinha a menor intenção de enganar ninguém:

— Quanto tem aí? — Ela perguntou, olhando pro nada, a repassar algumas cédulas.

— 30...

— E agora?

— Inteirou 50. Faltam 15.

— Pronto! Pegue aqui...

— Sobrou, comadre. Tá aqui o troco.

 

Na noite em que os desconhecidos apareceram em sua porta, após acender a luz da sala e convidá-los a se sentarem, sentiu pena:

— Tão imundos! Precisam de banho. Venha cá, meu filho, pegue toalha e sabonete, corra pro banheiro e tire este grude. E cuide pra não escorregar...

 

Em seguida, acariciou a cabeça do outro:

— Coitado... Tu deve tá morto de fome. Vou esquentar a sobra do jantar. Tem galinha guisada e inhame.

 

Mais tarde, eles se entreolharam sem saber o que falar. Ela quebrou o silêncio:

— Cês vão dormir aqui na sala, um aqui no sofá e o outro naquela rede. Os quartos estão arrumados pros hóspedes que chegam amanhã. Agora, vou rezar antes de pegar no sono... Boa noite!

 

Era madrugada quando eles acordaram com o bater de asas do galo no quintal. Na cozinha, a mesa já estava posta por dona Ritinha: cuscuz, pão, ovos e café com leite. 


Um deles foi direto ao ponto:

— Quer dizer que a tia nem imagina o que a gente veio fazer por aqui?

— Deixe de conversa fiada, meu filho! Sente aí, coma e mais tarde cuide de arranjar um serviço que é o melhor que cê faz. E bote um boné que o sol tá um horror!

 

Do jeito que chegaram, eles partiram. Nunca mais foram vistos na região. Ela se queixou: 

— Essa gente é mal-agradecida mesmo! Some no mundo sem se despedir… Que coisa, hein?!

— A senhora, pelo menos, perguntou o nome deles? — eu quis saber, imaginando o que poderia ter acontecido com ela e a neta numa noite em que não havia hóspedes na casa.

— Precisava mesmo, filho? Já era quase Natal… — respondeu, afagando um gato que dela não se afastava.

 

Fiquei sem compreender direito o que fazia ali, defendendo "interesses de mercado" (leia-se, de acionistas minoritários do banco que me empregava), que não enxerga com bons olhos manter agências  naquele “fim de mundo”, mesmo sabendo que isso condena esses lugarejos à escuridão da desigualdade e da miséria.


"Tentei descobrir na alma alguma coisa mais profunda do que não saber nada sobre as coisas profundas. Consegui não descobrir", diria o poeta Manoel de Barros. 

 
Voltei para casa comovido com a generosidade dessas sertanejas. Querer compreender certas coisas só apequena ainda mais a vida rasa e miúda que a gente leva. 

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Cobras, lagartos e mercadores de ilusões

Não entendo quase nada de marketing. Portanto, as considerações a seguir são feitas por um aprendiz esforçado e metido, jamais um craque no assunto. E creio que minha condição é partilhada pela maioria de vocês. Feito torcedores de mesa de sinuca, temos teorias que julgamos perfeitas, mas, com o taco nas mãos, o buraco é mais apertado.

 

Na busca por notícias na internet, esbarro a toda hora em links que atiçam a mais elementar carência dos seres vivos: a busca pelo bem-estar. Surgem mais ou menos assim: “Esta fruta poderosa pode fazer sua glicose baixar para...”, “Falhando na hora H? Isso pode te ajudar...”, “Sofrendo com zumbido no ouvido? Temos a solução...” “Uma dose todas as noites para ter uma próstata de criança...”.

 

A captura da suposta necessidade dos internautas acontece com o uso dos chamados cookies (arquivos que os sites hospedam em computadores e celulares, indicando que o usuário já navegou sobre determinadas páginas da rede). É a técnica chamada de retargeting (em tradução livre, “mirar de novo”). Equivale ao que fazia do vendedor de enciclopédias de antigamente um chato de carteirinha.

 

A propósito da velha expressão “chato de carteirinha”, esses novos mercadores de ilusões me lembram os camelôs de drogas que havia nas feiras livres das cidades em que morei. Quem, como eu, viveu alguns anos no Interior ou em pequenas capitais, sabe do que estou falando.


Imagens: Jessier Quirino


No esforço midiático para despertar a atenção do público consumidor, mexiam até com répteis assustadores. Vem de lá a expressão “fala que nem o homem da cobra". 


Conheci um deles que recorria a cascavel, jararaca, jiboia etc. Aliás, a cascavel nunca cheguei a ver, porque estaria dentro de uma caixão de madeira, fechado. Ouvia-se apenas o tinido dos guizos, quando se tocava no baú. 


Ele se exibia com cobras enroladas no pescoço e nos braços. Oferecia uma pomada cicatrizante que, nos dias de hoje, provocaria uma revolução na indústria farmacêutica. Passava um canivete no dedo indicador, de onde escorria um filete de “sangue”. A matutada (eu no meio, óbvio) ficava boquiaberta. O gordinho descarado, sem pescoço, falava alto e ligeiro no microfone, apresentando uma bula bastante robusta: “...Serve pra dor-de-barriga, dor-de-cabeça, dor-de-dente, dores nas juntas, frieira, furo de espinho, olho embaçado, lerdeza do homem, papeira, queimadura, rachadura... É só esfregar… E custa bem baratinho...” Daí, untava o dedo “ferido” e, pouco depois, a pele reaparecia lisinha, nova. Um "milagre" diante da matriz da cidade, onde acontecia a feira livre às quartas e sábados.

 

Conheci outro, que vendia umas garrafadas (mistura de cascas, ervas e raízes) para alívio de "doenças" como “carnegão, catarro preso, lombrigas, prisão de ventre, regra atrasada, tosse de cachorro, unha fofa” e outras. Trazia numa caixa de madeira um filhote de jiboia e um velho teiú. Assim que juntava meia dúzia de fregueses, grunhia algo e chamava pela cobra:

– Salomé, querida, chegue mais, venha cá dar bom-dia ao pessoal!

Claro que a coitada, que não gosta de confinamento, saía com a língua em riste, perscrutando o ambiente. Em seguida, ele chamava o lagarto.

– Joca, venha cá, meu véio, dê bom-dia aos fregueses! Que preguiça é essa!


 

Num dia nada bom, a jiboia não atendeu ao chamado do camelô. Em seu lugar, apareceu o velho teiú, de olhos esbugalhados, com um barrigão, grávido. O camelô, desconfiando de que o filhote de cobra estivesse adoentado, abriu a caixa, conferiu e esbravejou:

– O fila-da-puta do Joca comeu Salomé! Que miserável!

– Se comeu, tem que casar! – sentenciou um matutinho indignado. Achava ele que a cobra estivesse chocando ovos, feito galinha. 

 

Li outro dia que os primeiros registros sobre o uso da maconha com fins medicinais são atribuídos ao imperador chinês ShenNeng, dois milênios antes da era cristã, que prescrevia o chá da erva para o tratamento de gota, reumatismo, malária e até memória fraca (parece comprovada sua eficácia, neste último aspecto, pois nos lembramos disso até hoje). 


A popularidade da Cannabis sativa como remédio se espalhou pela Ásia, Oriente Médio e costa oriental da África. Seitas hindus, na Índia, usavam-na para fins religiosos e alívio do estresse. Médicos da antiguidade prescreviam maconha para tudo, desde alívio da dor-de-ouvido até as dores do parto. 

 

Acho que os camelôs de drogas nas feiras livres sabiam disso no final dos anos 1960, inclusive porque negociavam discretamente uns cigarrinhos finos, escondidos junto ao fumo de corda para mascar ou combater pragas em hortas domésticas. Tudo pelo bem-estar de alguns fregueses. 

 

Não me lembro se a estratégia de venda desses cigarrinhos também envolvia cobras e lagartos. Eu era apenas um moleque curioso, entre 11 e 12 anos. Não entendia nada de marketing mesmo.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Só um cafezinho, vai...

Não sei de você, mas, para mim, um cafezinho após o almoço tem o atributo mágico de arrumar as gavetas internas onde guardo minhas conquistas e frustrações. Põe cada pedaço no seu devido lugar, separando frios e quentes, doces e amargos, rígidos e flexíveis, antes do cochilo dos desocupados. 

 

Ilustração: Dedé Dwight 

Outro dia me apareceram uma tontura e um zumbido nos ouvidos. O médico me tranquilizou dizendo que possivelmente se tratava de “um transtorno vestibular”. Achei que estivesse de gozação, dado que o último concurso do tipo em que me meti tem quase meio século. Mas ficou claro, logo depois, que falava de um conjunto de pequenos órgãos dentro do ouvido interno (sistema vestibular), responsável inclusive pela manutenção do equilíbrio do corpo. Da mente, nem se atreve! 

 

Confirmado o diagnóstico com exames complementares, o médico me encaminha a uma fisioterapeuta para fazer "reabilitação vestibular". Ela, então, de primeira pontua que seria muito importante para mim evitar café. E seu argumento me deixa pensativo: tudo o que se come ou se bebe todo dia, a vida toda, um dia o corpo cobra. Caro, às vezes.

 

Penso, mas nada digo: tirando água, canja e chá de hortelã, ela pode ter razão. No entanto, nem deve ter ouvido falar do lendário boêmio Zé do Cavaquinho, que alertava aos frequentadores de seu estabelecimento (“O Trovador Berrante”, em Viçosa, no interior alagoano) de que “em excesso, até água de pote faz mal”. 

 

Resolvo perguntar sobre possível substituto descafeinado, mas ela, de novo, me deixa reflexivo ao indagar se sou daqueles que acreditam que a indústria consegue, de fato, extrair 100% da cafeína, substância estimulante encontrada no café. 

 

Nem me encorajei a contar o que um dia ouvi minha mãe dizer com indisfarçável orgulho: antes de andar ou falar algo inteligível, meus olhos inocentes e semicerrados cintilavam de gozo e prazer diante de café com cuscuz e tapioca, entre uma mamadeira e outra de mingau de maisena.

 

Com o correr dos anos, já me fizeram abrir mão, a contragosto, de um alfabeto de cheiros e sabores que me remetem a lugares em que fui feliz e sabia disso: acarajé, bolacha de sete capas, bolo Souza Leão, broa de goma, buchada, caldo de cana, canjica, cerveja, chocolate, cocada, doce de leite, goiabada cascão, pamonha, pão doce, pastel de rua, pé-de-moleque, picolé de coco, quebra-queixo, rabada, rabanada, rapadura, sarapatel, sonho, suspiro, tapioca, umbuzada... 

 

Estou convencido de que uma pessoa só é totalmente livre quando pode beber e comer à vontade. Pior: até hoje, ninguém me pediu moderação no consumo de verduras e hortaliças, como se mastigar cebola crua não fizesse qualquer pecador ter uma visão prévia do inferno. Vá lá bem picadinha, no vinagrete, se o pernil de cordeiro estiver suculento e com pouco sal. 

 

Tem quem diga que café é rico em antioxidantes, minerais, vitaminas e flavonoides (mesma substância encontrada no vinho, que, há mais de dois milênios, animou a Santa Ceia). Falam até que a ingestão desse néctar poderoso ajuda o cérebro a liberar estimulantes naturais como a dopamina (o hormônio da felicidade, da motivação) e a adrenalina, associada à disposição e a euforia. 


Não boto tanta fé no que circula pela internet porque, quase sempre, existem fabricantes por trás investindo horrores em publicidade. Ou porque as descobertas científicas matutinas nem sempre batem com as vespertinas. Oscilam mais que humor de vascaíno em véspera de jogo decisivo.

 

Creio, no caso, em coisas mais práticas, intuitivas. Por exemplo, nunca vi ninguém cometendo um crime, uma maldade, uma grosseria sequer, enquanto segura pela asa uma xícara de café, lentamente inalando o vapor e admirando os desenhos que se formam sobre a espuma antes do derradeiro gole. 

 

Já não sinto qualquer tontura ou zumbido nos ouvidos, mas estou pensando seriamente em firmar declaração, de papel passado, em cartório e com firma reconhecida (para o caso de, um dia, nem com os olhos poder expressar minha vontade), assim: nos próximos 50 anos, se alguém quiser me obrigar a largar essa infusão dos deuses da mãe-natureza, não serei responsável pelos meus atos. Posso, inclusive, recorrer a um canivete que escondo desde criança em minhas bugigangas. 

 

Antes de consumada a desgraça, quem sabe a gente se senta, entra em acordo e toma um cafezinho (com pão de queijo, vai!) para celebrar a paz e a harmonia entre viventes inacabados e imperfeitos que somos, predestinados à inescapável hora de cada um. 


quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Bolas de Natal

Andam de mãos dadas pela primeira vez a Copa do Mundo e o Natal. Só os deuses do futebol (e os anjos das cabines de VAR) sabem aonde isso vai dar, inclusive para alemães, belgas, dinamarqueses, espanhóis e uruguaios, que já ficaram pelo caminho. Algumas imagens têm lugar cativo na tela da memória de milhões de crianças que, ao redor do planeta, amam uma bola de futebol acima de todas as coisas.   

 

Há muito tempo, ao ganhar de presente de Natal minha primeira bola, senti pelo peso do embrulho – com disfarçada frustração – que não era daquelas de couro com câmara de ar em que se passava sebo nos pontos para protegê-la da água, da lama, dos arranhões no campinho de terra batida ou no calçamento da rua.

 

Ilustração: Dedé Dwight

Era de plástico (vinil). Doía quando batia nas costelas, na barriga ou nas 
coxas, sem falar de outras partes em franco desenvolvimento. Corri pelas calçadas da imaginação encarando adversários, tentando fintá-los, um a um, até a esquina.

 

Finta é aquele lance individual no futebol, vôlei, basquete, boxe ou capoeira, em que bastam duas ou três gingas de corpo para desvencilhar-se do oponente. É fazê-lo acreditar num movimento de ataque ou defesa que não irá acontecer, dificultando sua reação ao que de fato vem em sua direção. É também uma habilidade comum em certas figuras públicas, diante do TCU, do STF ou, pior, da imprensa.

Nunca fui bom nisso.
 Meu dom de iludir floresceu noutros campos. Meu irmão Dula (Hélder), sim, foi craque. Na área esportiva, que fique claro! Baixinho, canhoto, ligeiro, quatro anos mais novo que eu, era doutor na arte da finta, com imperdoável requinte: o escárnio sobre os adversários enfileirados que queriam esquartejá-lo após firulas e risos de deboche. Só não conseguiam por conta da proteção de anjos da guarda bons de briga de rua: seus três irmãos mais velhos. 
Não fosse tão míope, Dula teria voado, com suas fintas, no céu do planeta da bola.


Por falar em fintas — que imortalizaram Carlitos, Garrincha e Muhammad Ali em diferentes campos artísticos —, dava para ver que se tratava de uma dança lúdica, de que algumas crianças já nasciam sabendo seus passos de cor e salteado, assim como choravam, dormiam ou mamavam. 

 

Esse “vou-não-vou... fui!” era aperfeiçoado na mais tenra idade. De tardezinha, quando o sol esfriava, na porta de casa surgia sempre uma mãe cansada e impaciente com uma chinela na mão em forma de ultimato, obrigando a meninada a correr para o chuveiro no melhor da brincadeira.

 

Muitas vezes, o medo de se molhar levava a dona da chinela — nada mais que uma zagueira sem jogo de cintura — a desistir da perseguição, mas não de uma advertência capaz de diluir a cera dos ouvidos daqueles que se faziam de surdos: "Tire o grude das orelhas, cabra safado, senão eu lhe pego depois..."

 

Sobre motivar as primeiras fintas diante dos obstáculos da vida, a chinela virava instrumento pedagógico bem mais razoável do que, por exemplo, a palmatória ou o cinturão. De ruim, só o vexame quando a lapada na bunda acontecia ainda na rua, na esteira da gozação de uma vizinhança nada solidária.

 

Mesmo assim, com todo respeito a quem pensa diferente, a chinelada continha inegáveis atributos psicológicos: restabelecia limites esquecidos e estreitava laços de afeto entre mães e filhos. Tanto que, dos sons que guardamos na memória, um dos mais nítidos é o daquele corretivo nas nádegas. Quando na bunda dos outros, inclusive, o som parecia ainda mais interessante.

 

Era indispensável que fizesse aquele barulho clássico que quase todo mundo já ouviu, sob pena de não surtir o efeito esperado nem ficar retido na lembrança. O estalo inconfundível seria a tecla play da trilha sonora de um choro sentido que na maioria das vezes desaguava num abraço pleno de amor, lágrimas e remorso.

 

Há quem diga que são necessários pelo menos 400 anos para que um objeto de plástico se decomponha e desapareça para sempre do meio ambiente. Se isso é verdadeiro, invoco o meu sagrado direito de interrogar a mãe-natureza: aonde foi parar a minha primeira “amiga do peito”? 

 

Ninguém sabe que fim ela levou. Se houve crime — Furto? Roubo? Esquartejamento e ocultação das partes? —, está prescrito, perdoado. No trem que partiu da estação de minha infância só me deixaram trazer algumas imagens que vagam, de novo, nas sombras de minhas recordações neste Natal.

 


quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Corações indomáveis

Quando menino, tinha medo de almas. Não de “anjinhos”, como se dizia no Sertão paraibano, onde todo ano centenas de crianças eram enterradas antes dos sete anos de idade. A diarreia e a subnutrição deixavam-nas só ossos, olhos e orelhas.

Não corria esse risco. Filho de bancário, dispunha o suficiente para viver sem assombrações. Medo, mesmo, só de almas penadas de adultos. 

Fui daqueles que viviam com o nariz escorrendo pelas calçadas das ruas onde morei, nu cintura acima, procurando o que aprontar enquanto não estava comendo, dormindo ou na escola. Ser um de nove irmãos de uma família remediada me deu o bônus (e o ônus) da quase invisibilidade perante uma mãe espremida por afazeres domésticos.

 

Álbum de família

  

Não sei de onde vinha o medo. Sei que, toda noite, antes de pegar no sono, tremia debaixo do lençol numa rede. No quarto iluminado apenas pelo luar, implorava aos céus que não me aparecessem com seus inconfessáveis propósitos.  

 

Mas nunca esbarrei em almas nas madrugadas em que muriçocas sedentas brigavam contra a espiral Sentinela (sem falar dos resmungos, entre provocantes e desafiadores, de gatas no cio, no telhado), dando o tom da sinfonia noturna até os meus 10 anos. 

 

Um dia, passei a desconfiar de que almas, na verdade, nunca existiram. De que todos os seres vivos, inclusive os pés-de-algaroba, as moscas e os calangos, ao morrerem, retornariam ao mesmo lugar incerto de onde vieram. A exceção, talvez, foi a cachorra Baleia, da obra "Vidas Secas" (Graciliano Ramos), que, ferida de morte, desejou dormir. “Acordaria feliz, num mundo cheio de preás”.

 

Acabei criando uma linha direta com o dono do tempo, a fonte primária de tudo (mesmo sem saber ao certo do que se tratava). Sem intermediários. Nem mesmo a beata que me preparava para a primeira comunhão, ou a professorinha que me ensinou o bê-a-bá e que, do nada, um dia sumiu sem adeus em sua primeira e única gravidez. 

 

O desinteresse em intermediários aumentou quando conheci o vigário da paróquia de Santo Antônio, na cidade de Patos (PB). Ele, para mim, tinha um hábito incompatível com a batina: abater arribaçãs – ave migratória, maior que uma rolinha, que durante o inverno voa para lugares mais quentes –, a tiros de espingarda, em caçadas nas manhãs de sábado.

 

De berço nobre, elegante, extrovertido, na minha enxerida opinião o padre tinha também um olhar aceso para toda mulher bonita que aparecia nas missas aos domingos. Só mais tarde, já taludo e longe dali, descobri que aquilo era o que os escritores (e os felinos no telhado, imagino) traduzem como lascívia e sedução. Mas teria sido apenas coisa da cabeça de menino curioso, atento aos rumores paroquiais envolvendo o exterminador de arribaçãs.

 

Depois da mudança com minha família para Alagoas – fora, portanto, do alcance da mira do pároco –, soube que ele transitou com desembaraço na cena política, chegando a ocupar a prefeitura municipal de uma cidadezinha próxima, além de exercer mandato de deputado estadual por quatro anos. Tinha um potencial que não poderia ser desperdiçado, via-se desde o começo.

 

Soube ainda que, por causa de um bingo para levantar fundos em favor da paróquia – autorizado, nos tempos da redentora, pelo poderoso Ministério da Justiça – , o vigário, que escondia no sob a batina um revólver para defesa pessoal, comprometeu a liturgia do cargo: ao receber voz de prisão por seguir cantando as pedras do jogo, cobriu de murros e tapas o juíz de Direito que determinara a suspensão do evento.


Mas o governador do Estado, reconhecendo o peso sociopolítico do representante divino na área e o abuso de autoridade do juiz, resolveu o conflito rapidinho: afastou o magistrado de suas atividades.

 

Rezavam pelo mesmo rosário. Política e religião, religião e política, mistura explosiva com que se captura em proveito próprio as paixões alheias.

 

No início deste mês, o pastor da Igreja Universal do Reino de Deus e dono do Grupo Record discursou sobre fé e perdão, citando o presidente da República recém-eleito. “Deus fez a vontade Dele. Só perdoando... A sua fé não vai valer de nada se você não perdoar... O diabo quer exatamente isso. Que o Brasil fique com ódio... Você não precisa sentir para perdoar, o perdão é uma atitude pensada, racional... Se esperar sentir no coração a vontade de perdoar, não vai perdoar nunca, porque o coração é indomável...” 

 

Pelo visto, o indomável dele não dispensa o generoso orçamento de publicidade das empresas públicas. Ou, quem sabe, aí estaria apenas a modernização da compra e venda de indulgências da Idade Média. Uma espécie de Pix-perdão.

 

O meu, no entanto, segue dispensando intermediários na linha direta com o dono do tempo, fonte de onde tudo emana e para onde tudo se encaminha. Mas não tenho pressa em provar nada!

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Veja bem...

Sexta-feira passada, conversando numa live com Dedé Dwight, que ilustrou com belas imagens o livro “Frestas” (Fontenele Publicações), ele me perguntava sobre o que me levou a escrever e compartilhar textos neste espaço criado há quatro anos, depois de 40 anos no ofício bancário.  

 

Dona Artemy, folheando "Frestas"

Respondi ao filho de Dona Artemy que não sou (nem pretendo ser) um especialista em gramática ou em técnicas de redação. Talvez, por ter prestado bastante atenção ao que escreviam alguns colegas de trabalho, e ter sido leitor compulsivo de O Pasquim (em especial dos textos de Millôr Fernandes, Henfil, Ivan Lessa, Jaguar e Paulo Francis), aprendi a redigir melhor, ainda que tudo continue muito intuitivo, como “tocar de ouvido” sem conhecer teoria musical.

 

Reconheço que li menos do que deveria, mas tenho visto e ouvido lugares incomuns,  estranhas construções mesmo a olhos e ouvidos menos exigentes como os meus. E antes que a comunidade linguística me corte o pescoço ou me condene à fogueira dos estúpidos – depois destas linhas, meu caro leitor! –, espero que ela releve e tome apenas como um resmungo de um galo velho metendo o bico onde não é chamado.

 

Não me refiro a construções  como “recordar o passado”, “prever o futuro”, “elo de união”, “subir para cima, “sair para fora”, “descer para baixo” ou “entrar para dentro”. Essas asneiras, contudo, têm o condão de nos provocar terríveis dores visuais e auditivas, e a ciência ainda deve à humanidade um colírio e uma solução otológica para torná-las menos incapacitantes. 

 

Minha rabugice lateja é com outras bobagens que tentam me enfiar goela abaixo, como jargões fardados do tipo: “O elemento empreendeu fuga” (fugiu?). “O comparsa trajava... (nunca vestia!). Ou, “O meliante não resistiu e veio a óbito” (Se morreu, não tinha mesmo como resistir). Ė dose pra mamute!

 

Deve haver um bom motivo para o uso da expressão “respeito à pessoa humana”. Juro pelo cachimbo da parteira que me puxou que nunca encontrei na vida uma pessoa canina ou suína. Claro, nos anos 90 houve o caso da cadela do ex-ministro Magri, "um ser humano como qualquer outro", mas eu não cheguei a conhecê-la. Já vi, isto sim, muito cachorrão em suas relações desumanas. Ou porco, quando, por exemplo, se senta à mesa e chafurda tudo. Mas não é disso que se trata.

 

Essa coisa de “pessoa humana, aliás, é tão comum pelo mundo afora que na Declaração dos Direitos do Homem, onde escrito “na dignidade e no valor da... “, lê-se human person no Inglês, personne humaine no Francês, persona humana no Espanhol epersona umana no Italiano. Sem falar no que está escrito em documentos oficiais de ONU, OMS, Unesco, ou no título de milhares de livros jurídicos e religiosos. 

 

Como não me enxergo cachorro nem porco (ainda!), quem sabe não passo de uma pessoa equina – uma espécie de cavalo de desfile, trotando e relinchando para o palanque que me vê passar.

 

A obsessão por certos termos parece uma cachaça para advogados, padres, pastores, políticos, jornalistas, locutores e outros que lidam com a palavra. “Todos são unânimes em reconhecer”, dizem uns. Pergunto: Teria como uma unanimidade não envolver a todos? “Mas isso é regra geral”, dizem outros. A regra deveria ser parcial? “São pequenos detalhes”, muitos dizem. Ora, existem grandes detalhes? 

 

Até você, leitor, um dia já usou a expressão “Veja bem”. Quem recorre a essa espécie de fôlego reflexivo, antes de dar uma resposta, na verdade quer enrolar quem pergunta. Não quer que veja coisa nenhuma. 

 

Por exemplo: o marido certificando-se de que a esposa comprou aquela bolsa de R$ 5 mil.

– Você teve coragem?

– Veja bem... – ela responde (leia-se: comprou!).

 

Ou a esposa querendo saber se ele chegará mais cedo em casa, adiando o chope com os colegas após o trabalho:

– Tô esperando, hein?!

– Veja bem... – ele diz (leia-se: vai cair na farra!).

 

E ninguém está livre do pecado. Andei relendo alguns textos que escrevi e, confesso, descobri construções imperdoáveis:

 

– “Pra dizer a verdade...” – Ora, então eu sou mentiroso? Tenho que avisar quando for pra valer, sério...

 

– “Pra começo de conversa...” – Por acaso, eu estaria no final da prosa?

 

– “Eu, se fosse você...” – Peraí! Se não sou você, nunca vou raciocinar como se fosse!

 

– “Não dou o braço a torcer...” – Alguém já deu? Se deu, a torção pode ter deixado o membro bem dolorido.

 

– “Sendo bem sincero...” – Será que, no geral, eu não passo de um fingido?

   

Estou seguro de que você também já ouviu alguém dizer que “isso é sopa no mel”? Quem inventou essa expressão tinha o paladar, no mínimo, duvidoso. Não provo uma colher dessa mistura nem com um pão francês quentinho. 

 

Mas, veja bem... Se você achou graça no que leu até aqui, saiba que algum sabichão da comunidade linguística poderá lhe pedir para tirar o sorriso dos lábios, dizendo que exagerei. Bem, de onde mais poderia tirar o sorriso? Das orelhas? Das sobrancelhas?  

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

A caipirinha derramada

Você já parou pra pensar como seria uma Disneyworld por aqui? Talvez algum religioso endinheirado já tenha pensado nisso, mas faltou fé no retorno da grana a ser aplicada e optou por investir em campanhas políticas de terceiros. Ou viu que não seria fácil convencer seguidores, por mais fanáticos que sejam, a reajustarem o dízimo.

 

Titular do delírio etílico, escolho o local onde se desenrolaria a história: aquele que no período colonial era chamado de Nova Lusitânia ou Capitania de Pernambuco do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, abrangendo os territórios dos atuais estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. 

 

Seria entre as praias de Pajuçara e do Gunga, onde você, ao pôr do sol, mergulharia em águas mornas, degustando uma caipirinha socada no açúcar mascavo, com tira-gosto de agulhinha frita, ouvindo pérolas instrumentais da obra de Djavan como “Oceano”, “Só eu sei”, “Um amor puro” ... 

 

Claro que Mickey e Pato Donald não seriam os personagens principais. Pateta, tampouco, eis que não se distinguiria da multidão. As estrelas seriam Chicó e João Grilo, extraídas dos folhetos de cordel para as proezas da obra “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, a figura mais ligada à nordestinidade que já existiu (“eu não troco meu oxente pelo 'ok' de ninguém!”).

 

Chegando lá, você não veria o castelo de Cinderela no centro do Magic Kingdom, mas sim uma escultura do tamanho do Cristo Redentor, reproduzindo a tela “Retirantes”, de Portinari, obra inspirada no romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, sobre uma família de sertanejos tangida pela estiagem. 

 

“Retirantes” - Cândido Portinari

E um chato que me escuta, da mesa ao lado no boteco, pondera que ficaria melhor se a escultura espelhasse o “Patriota do Caminhão” (ou o “Viking do Capitólio verde-amarelo”), o manifestante de Caruaru inconformado com o desfecho das últimas eleições presidenciais que foi visto sobre o para-choque, agarrado ao para-brisa de um veículo, cantando, quem sabe, “eeeu/ sou brasileiro/ com muito orgulho/ com muito amooor...” A ciência nos deve uma boa explicação acerca do cérebro desse rapaz.

 

Não esculhambemos a ideia no nascedouro, por favor! "Quem é você para derramar meu mungunzá?!" De novo, se o delírio etílico é meu, prefiro a homenagem ao velho Graça e a Portinari.

 

Pois bem. Afora os brinquedos clássicos – carrossel, montanha-russa, roda gigante –, a “Mandacarulândia” permitiria a você, no mínimo, quatro experiências memoráveis:

 

Quilombo dos Palmares – Um simulador replicaria o que aconteceu na Serra da Barriga, na Mata alagoana. Você lidaria com muita água, sol, ventos e cheiros, fugindo com escravos das fazendas de cana-de-açúcar. Pelo caminho, enfrentaria capitães-do-mato e feitores ávidos por devolvê-los ao pelourinho. Cada obstáculo superado seria premiado com guloseimas à base de banana, batata-doce, feijão de corda, milho e tapioca, além de pescados e carnes de galinha de capoeira e bacorinho. No final, faria uma selfie ao lado da escultura em tamanho natural de Zumbi, à beira do chamado abismo civilizatório que nos distingue das principais nações do mundo.

 

Senzala & Casa-Grande – Num trem-fantasma, você colocaria óculos 3D e mergulharia na obra clássica de Gilberto Freyre. Veria que, diferentemente daquilo que foi escrito no início do século passado, a elite branca nunca enxergou como um valor cultural brasileiro a miscigenação com negros e índios, embora a Igreja, diante da escassez de brancas-de-neve, tenha incentivado o casamento de portugueses com indígenas (jamais com negras). Veria também a origem de nossa sem-vergonhice – o famoso jeitinho, que não mais engana ninguém – e do exagero atribuído à sexualidade de indígenas e escravos. E as raízes da opressão contra a mulher, onde machões cultivavam o sentimento de posse, ora refletido no fato de sermos o 5º país com maior taxa de feminicídios.

 

Cabocla e os 70 anões – Em ligeira alusão à origem da legítima Disneyworld, outro simulador exploraria imagens do Cânion do Xingó num jogo onde uma rainha malvada, com ciúmes da beleza de Maria Bonita no esplendor de seus 45 anos, manda decapitá-la. Mas descobre que ela não morreu: estaria amasiada numa grota com Lampião e mais 70 anões do orçamento secreto do Reino de Mandacarulândia. 

 

Ondas Eternas – Numa tenda acústica, você, após duas gotinhas de um colírio alucinógeno, enxergaria cada movimento do grande Zé Ramalho, só de chapéu de couro e alpercatas, surfando ondas que viriam como gotas em silêncio, derrubando homens entre outros animais, devastando a sede dos matagais, devorando árvores, pensamentos, palavras... 

 

Daí se mete novamente o chato do boteco, agora entornando o meu copo sobre a mesa. E sugere outra  atração, inspirada em “Marimbondos de Fogo”, obra que levou à ABL o poeta Zé Sarney – engraçado, grandes nomes como Drummond, Graciliano e Verissimo, nunca concorreram à Academia. Deve haver alguma lógica nisso! Sobre o livro do maranhense, aliás, referiu-se Millôr Fernandes como “aquele que quando você larga não quer mais pegar”. 

 

Melhor ir pra casa que a ressaca será cruel. Não vale a pena chorar sobre a caipirinha derramada. Não ia dar certo mesmo. Mas seria interessante!

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

O direito de cochilar

Eu não notei, a princípio. De fato, ele tinha atributos para virar um estelionatário de primeira grandeza, como tanta gente que circula por aí leve, livre e operante. Poderia, a vida inteira, desfrutar de grana, poder e glória.

Ao pé da letra, estelionatário é aquele que consegue para si e os seus uma vantagem ilícita, em prejuízo alheio, via artifício ou outro meio fraudulento qualquer, de emissão de cheque sem fundos a falsificação de documentos. 


Se descoberta, a punição prevista no artigo 171 do Código Penal provoca riso e estimula a reincidência: apenas cadeia de um a cinco anos e multa, irrisória, muitas vezes.

 

Quando criança, além de preferir cadernos de caligrafia a tabuadas, ele curtia desenhar a mão livre. Reproduzia quadrinhos extraídos de gibis de Tarzan, Tex Willer e Tio Patinhas, usando lápis e folhas de caderno de desenho, sem borracha. Mais adiante, captando expressões faciais de fotografias. 

 


De tanto ver o pai assinar papéis e fichas gráficas que levava para casa, prorrogando a jornada de trabalho, o filho percebeu que não teria dificuldade em rubricar por ele um boletim escolar ou um bilhete à professora justificando a ausência numa quarta-feira qualquer em que fosse mais negócio se juntar aos colegas para jogar futebol, apanhar papa-capins no alçapão ou pescar jundiás e piabas no rio de sua meninice. 

 

Mas nasceu curioso demais. Tomou gosto por ouvir histórias contadas pelas professoras e guardava o que escutava a cadeado e nó cego, para não perder tempo decorando livros na hora de brincar.

 

Acabou aprovado com certa facilidade no temido Exame de Admissão – espécie de “vestibular” que havia para ingressar no Ginásio. Dali para frente, aí sim, com as letras se misturando aos números nas questões algébricas, bateu alguma preocupação, mas escapou ileso, sem sequelas.

 

Órfão de pai, ele começaria cedo a trabalhar. Não completou três semanas e já se familiarizou com o jeitão de rubricar documentos de alguns “chefes”. A curiosidade e o pendor para riscos e rabiscos gritava alto.

 

Com uma máquina de escrever, poderia provocar “briga de cachorros grandes”, caso se dedicasse às futricas e rasteiras inerentes à malícia do mundo corporativo. Bastaria espalhar que Fulano era ladrão; Beltrano, corno; ou Sicrano, dedo-duro da ditadura. Boatos viralizam nesses ambientes desde a Revolução Industrial.

 

Mais adiante, quem sabe, poderia criar partidas contábeis ou ordens de pagamento fictícias, e fazer transferências espúrias. Repartiria o resultado com comparsas mais frágeis socialmente, feito um Robin Wood brazuca. 

 

Quanto à lavagem do dinheiro, nem precisaria recorrer a offshore no Caribe, nas Ilhas Virgens ou na Suíça. O paraíso fiscal seria aqui mesmo, sob o céu e o sol do lado de baixo da Linha do Equador.

 

Faltava a ele, no entanto, um pré-pré-requisito crítico à prática do ofício: a índole para a coisa. O que tem de ser nem sempre tem essa força toda. Quem o protege e guarda é esperto, não brinca em serviço, nunca se distrai, não cochila nem depois do almoço.

 

Com o andar da carroça pelos descaminhos dos anos, uma hora acabaria enveredando pelo universo político. Despontaria no submundo do crime pra lá de organizado com mandato parlamentar e imunidade legislativa.

 

Chegando lá, com gabinete cheiroso, água gelada, cafezinho e uma tropa de asseclas, logo aprenderia que, para ser instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito, é necessário um certo número de assinaturas no requerimento de criação. E que bastaria ser subscrito por um terço dos membros do Congresso Nacional para a CPI ser criada. 

 

Para um craque, seria moleza inserir algumas assinaturas de pessoas que, diante de dossiês robustos sobre a vida pregressa de cada uma, não teriam como negar a legitimidade dos garranchos sobre a proposta. Tudo muito simples, sem uma gota de sangue derramada durante a liturgia de convencimento.

 

Depois, lavaria as mãos. As lideranças do partido cuidariam de ameaçar, coagir, chantagear, constranger e extorquir os alvos potenciais a serem atingidos pelos resultados da CPI, atos esses que nunca seriam imputados a ele, um humilde parlamentar oriundo de uma região onde "se o gado morrer, o carrapato passa fome", como disse outro dia uma emergente preconceituosa, moradora do Rio de Janeiro, em sua inconformada viuvez com o desfecho das últimas eleições.

 

Ficha limpa, o anti-herói, até então improvável, mais à frente estaria apto a alçar voos mais altos, com pós-doutorado em manipulação de otários e trambiques correlatos.

 

Se nada disso vingasse, poderia partir para o exercício de uma profissão ainda não regulamentada, escorada no exercício vocacional da fé, embora seja ilegal usar a estrutura de templos religiosos para coagir fiéis a votar “certo”. A lei não “pegou” por aqui.

 

Sim, meus caros leitores e leitoras, o cara da cabeça branca que agora vejo no espelho teve tudo para virar um respeitável estelionatário. Poderia agora deitar em berço esplêndido, com grana, poder e glória. Mas foi tão incompetente quanto cada um de vocês. 


Nunca quis abrir mão do direito ao cochilo da tarde e de poder acordar sem saber onde está nem que dia é. Apesar dessa gente que circula por aí leve, livre e operante.