Coisas profundas
Duas semanas antes do Natal de 1995, tia Ritinha (era assim que a chamavam) me contou que ouviu um barulho estranho na porta de casa, por volta das nove da noite. Foi até lá e deu de cara com dois desconhecidos. Preocupou-se com eles:
— O que cês tão aí no sereno? Entrem que a friagem não faz bem.
Quase cega pelo avanço da catarata, 88 anos, ela tocava a hospedaria (com a ajuda de sua única neta) num casarão antigo cujo quintal dava para um rio temporário onde restavam apenas algumas poças barrentas sobre o leito de areia, capim seco e pedras, no Sertão pernambucano. Para cortar caminho até a praça da matriz, os moradores da cidade atravessavam o casarão, de porta a porta.
Mário Édson (@meatelierdafotografia) |
Sua neta, cerca de 30 anos, baixinha, simpática, tinha compulsão de limpeza e não podia ver uma coisa fora do lugar. Fora criada pela avó. Perdera a mãe havia muito tempo numa rara enchente do rio, ao tentar atravessá-lo pouco antes de uma tromba d’água que devastou em questão de minutos boa parte do lugarejo.
No começo de 1996, estive na região por três dias. Avaliava o fechamento (ou não) de agências de dois bancos federais e um estadual que disputavam entre si os escassos recursos que ali circulavam.
Num fim de tarde, ouvi tia Ritinha perguntar a alguém que atravessava o casarão de porta a porta, pegando atalho até a praça:
— Tá com fome, filho? Vá lá na cozinha, fale com minha neta, coma alguma coisa, beba um copo d’água... Puxe a cadeira, descanse um pouco...
Do meu quarto, bem cedo, já havia visto quando ela acertava as contas com o leiteiro. Quem pagava e quem recebia não tinha a menor intenção de enganar ninguém:
— Quanto tem aí? — Ela perguntou, olhando pro nada, a repassar algumas cédulas.
— 30...
— E agora?
— Inteirou 50. Faltam 15.
— Pronto! Pegue aqui...
— Sobrou, comadre. Tá aqui o troco.
Na noite em que os desconhecidos apareceram em sua porta, após acender a luz da sala e convidá-los a se sentarem, sentiu pena:
— Tão imundos! Precisam de banho. Venha cá, meu filho, pegue toalha e sabonete, corra pro banheiro e tire este grude. E cuide pra não escorregar...
Em seguida, acariciou a cabeça do outro:
— Coitado... Tu deve tá morto de fome. Vou esquentar a sobra do jantar. Tem galinha guisada e inhame.
Mais tarde, eles se entreolharam sem saber o que falar. Ela quebrou o silêncio:
— Cês vão dormir aqui na sala, um aqui no sofá e o outro naquela rede. Os quartos estão arrumados pros hóspedes que chegam amanhã. Agora, vou rezar antes de pegar no sono... Boa noite!
Era madrugada quando eles acordaram com o bater de asas do galo no quintal. Na cozinha, a mesa já estava posta por dona Ritinha: cuscuz, pão, ovos e café com leite.
Um deles foi direto ao ponto:
— Quer dizer que a tia nem imagina o que a gente veio fazer por aqui?
— Deixe de conversa fiada, meu filho! Sente aí, coma e mais tarde cuide de arranjar um serviço que é o melhor que cê faz. E bote um boné que o sol tá um horror!
Do jeito que chegaram, eles partiram. Nunca mais foram vistos na região. Ela se queixou:
— Essa gente é mal-agradecida mesmo! Some no mundo sem se despedir… Que coisa, hein?!
— A senhora, pelo menos, perguntou o nome deles? — eu quis saber, imaginando o que poderia ter acontecido com ela e a neta numa noite em que não havia hóspedes na casa.
— Precisava mesmo, filho? Já era quase Natal… — respondeu, afagando um gato que dela não se afastava.
Fiquei sem compreender direito o que fazia ali, defendendo "interesses de mercado" (leia-se, de acionistas minoritários do banco que me empregava), que não enxerga com bons olhos manter agências naquele “fim de mundo”, mesmo sabendo que isso condena esses lugarejos à escuridão da desigualdade e da miséria.
"Tentei descobrir na alma alguma coisa mais profunda do que não saber nada sobre as coisas profundas. Consegui não descobrir", diria o poeta Manoel de Barros.
Voltei para casa comovido com a generosidade dessas sertanejas. Querer compreender certas coisas só apequena ainda mais a vida rasa e miúda que a gente leva.
Que coisa boa que é acordar com suas histórias quentes e profundas, como uma boa xícara do meu café coado. Obrigado pela companhia de sempre, irmãozinho é um ano novo abençoado pra você e sua linda família. Dedé Dwight
ResponderExcluirQuem nasceu no sertão e conhece suas veredas entende perfeitamente essa linha de raciocínio: "Servir sem perguntar".
ResponderExcluirO mundo fora desse universo tem outras regras. Feliz ano novo.
Retrata aqui a solidariedade do sertanejo. Fazer o bem sem olhar a quem. Pureza de Alma, que infelizmente está acabando
ResponderExcluirEla é manjedoura. Manjedouras são anjos disfarçados em pessoas. Acolhedores, gentis, bondosos, justos e fraternos as pessoas-manjedoura, como Dona Ritinha, iluminam caminhos e eternizam convivências. Obrigado Dona Ritinha que para servir não pergunta: a quem? por que? quando? ou com que? Apenas serve, subvertendo a realidade que nega atitudes como a de acolher estranhos que foram aquebrantados pela força do amor.
ResponderExcluirUma crônica que parece simples, mas muito profunda, retrata bondade, inocência, o mundo de Tia Ritinha, e como o narrador bem diz “ querer compreender certas coisas só apequena ainda mais a vida rasa e miúda que a gente leva”.
ResponderExcluirO que foram fazer, não sabemos, mas é certo que saíram modificados pelo acolhimento generoso de tia Ritinha.
ResponderExcluirBoa crônica para o Natal.Fazer o bem,sem olhar a quem.Do alto,nós.so protetor maior,nós abençoa
ResponderExcluirGrande lição de vida. Daquelas que só se aprende a partir da ciência de outrem. E o que dizer, ou esperar, das Ritinhas do mundo. Quanto conhecimento, tamanha sagacidade. Presenciou diversas passagens na vida. E, com isso, ficou sábia. Bom encontrar luz donde, a princípio, soa não ter nada a oferecer. Ledo engano.
ResponderExcluirRoberto Rodrigues
Gente assim, hoje, muito difícil. O "cada um pra si" é o mais comum. Pureza de coração já é coisa rara.
ResponderExcluir"Algumas pessoas nunca vão deixar de fazer falta. Os anos passam, você nem sente mais como no começo, mas de alguma forma a falta daquela pessoa nunca passa" (Mário Quintana). Neste mundo de hoje dificilmente se encontram Tias Ritinhas. Comovente crônica.
ResponderExcluirTempos de ouro … atitudes nobres hoje em completo desuso … ultimamente tenho entendido a história de “ no meu tempo “, “naquele tempo”… todas as gerações passarão por isso … uma lástima é que não evoluímos … triste
ResponderExcluirSim, essas várias “Ritinhas” (minha mãe tinha “um quê” disso) só nos mostram, cruamente, como somos medíocres.
ResponderExcluirProfundo mesmo! Sou otimista e acredito que são muitas as tias Ritinhas e que, predominantemente, as pessoas são boas! Felizmente, em contraponto ao festival de notícias negativas que dão mais audiência, o Hayton nos traz essa crônica de presente. Obrigado!
ResponderExcluirSe Tia Ritinha não existisse precisaria ser inventada, né, Hayton? Pra nos lembrar que a vida não é só network, que relacionamentos não são só investimentos em alguma reciprocidade no futuro. Que os retornos mais profundos e mais significativos acontecem quando não “investimos” neles, mas quando apenas somos verdadeiramente humanos.
ResponderExcluirConfiança. Tão bom ver que existem lugares onde ainda se pode confiar, uns nos outros, sem saber, ou como está aí no texto, sem querer saber, quem está do outro lado!! Eis um dos pontos que a acentuada urbanização minou!! Saudades do interior!!!
ResponderExcluirHoje não vemos mais isso, nem nas minúsculas cidades do interior. Mesmo as pessoas de bem já carregam a desconfiança (dúvida sistemática)... essa crônica nos remete aos tempos de infância na metrópole Caicó, quando uma turma de "moleques" acordava às 5 horas da matina pra jogar uma pelada no caminho da escola e contemplava janelas e portas das casas, ainda fechadas, com sacos de pães e baldes de leite deixados pelo padeiro. E ninguém mexia... a conta era na caderneta e nem precisava ser conferida. Tempos distantes que não voltam mais..
ResponderExcluirQue belo texto, Hayton. É inacreditável a honestidade e a bondade das pessoas simples do interior. Já vivi na roça e presenciei isso. Será que ainda é assim? Obrigado por compartilhar sua obra. Abração. José Alípio
ResponderExcluirEntre a maldade e a generosidade, a generosidade sempre vence.
ResponderExcluirLendo o seu texto fico a imaginar o que é que você faz para ter tanta inspiração. Tem-se a impressão que é fácil, mas na minha opinião, não é. Principalmente quando se tem a obrigação de publicar algo todas as semanas. Num determinado momento a coisa parece fácil, mas noutras vezes, não. De qualquer maneira, há dois fatos a considerar. Independente da inspiração chegar ou não, no final das contas a missão é cumprida. Por conta disso, a obra cresce, se agiganta e se transforma em livro. O autor se sente feliz e por outro lado, os leitores se sentem recompensados. Parabéns pela bela missão.
ResponderExcluirFica difícil dizer algo aqui, quando Sérgio Riede "matou a charada" em seu comentário aí acima. Também por Abel Magalhães ao sintetizar os "encucamentos" que nos toma ao ler suas crônicas - essa aí causa uma emoção e reflexão que verdadeiramente mostra nossa pequenez.
ResponderExcluirQue 2023 continue lhe inspirando. Só repetindo, tenho esperança se fundar seu fã-clube e dele servo primeiro presidente.
Grande abraço.
Corrigindo erros cometidos em função da pressa em redigir - afinal estou em uma praia com toda a família - mulher, o filho, duas filhas, dois genros e três netos.
ResponderExcluirLeiam, "Abel Magalhães sintetizar" , "de" fundar seu fã-clube, "dele ser o primeiro presidente".
Agora, pernas pro ar...
Boa Tarde... Acredito que a maioria tenha tido a experiência de pernoitar em hospedaria típica de interior, mas, cada uma tem suas peculiaridades. Ainda hoje encontramos aquelas que atendem pelo sistema "pensão completa", ou seja, o "viajante" chega à tarde de um dia, janta, dorme, toma café da manhã, vai à rua fazer seus "negócios", volta para o almoço, paga sua diária e segue seu destino. E, em alguns casos, a dona da hospedaria ainda oferece serviços de lavanderia.
ResponderExcluirMas o mais interessante são as histórias que são contadas nas "rodas da prosa", pois os hóspedes permanecem no mesmo ambiente, geralmente onde está a TV. E ficar no quarto, só para dormir...
É uma vida sem muitas preocupações...
Criativa, leve e refinada, a crônica brasileira conquistou seu lugar e inventou um estilo, modo de escrever e viver. Mistura as artes do espírito sensível com os fatos da atualidade, mesmo que seja aquela realidade passando embaixo apenas da janela do autor. Pois é falando na primeira pessoa, com voz poética ou perplexa, jornalística ou irônica, que o cronista nos encanta.
ResponderExcluir"Querer compreender certas coisas só apequena ainda mais a vida rasa e miúda que a gente leva."
Ao concluir o texto com esta frase, o autor encerra o ano em grande estilo, demonstrando enorme respeito à arte de escrever, bem como aos leitores que o acompanham nessa trajetória. Parabéns! Boas Festas e Feliz Ano Novo!
Um pintura de crônica, história da vida, retrata a solidariedade humana e o mundo pequeno do lucro. Parabéns!
ResponderExcluirMais um texto suave e reflexivo, para fechar em grande estilo o ciclo das quartas de 2022
ResponderExcluirSei bem o que é isso, na cidade da minha família, Anadia, inteiro de Alagoas, aconteceu exatamente isso. Olhe que não é nem tão fim de mundo assim. Essas ações acabam gerando um retrocesso na cidade incalculável, terrível mesmo. Mas voltando ao texto como um todo é no interior que tudo é mais calmo e tranquilo. Tem trabalho, mas não é a mesma correria da cidade. Quem é de lá, morre de orgulho das suas origens e de tudo o que o fazem ser quem é. A saudade é o que faz as coisas pararem no tempo. A saudade é o que faz as coisas pararem no tempo. Não se vive de passado, mas é nele que estão nossa história e raízes. Por isso é precioso preservá-lo. Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirAlma boa como a dessa senhora é raríssimo hoje em dia. Quem faz um milímetro de caridade, posta nas redes sociais para se promover. Texto maravilhoso!
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ResponderExcluirGenerosidade e amor ao próximo.
Essas qualidades, hoje bem mais raras, você descreveu com extrema maestria, utilizando para isso a figura de Tia Ritinha, que representa o que de melhor há no ser humano.
Parabéns caro amigo Hayton . Que exemplo desta senhora . Ótima crônica . Abraço
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