Só um cafezinho, vai...
Não sei de você, mas, para mim, um cafezinho após o almoço tem o atributo mágico de arrumar as gavetas internas onde guardo minhas conquistas e frustrações. Põe cada pedaço no seu devido lugar, separando frios e quentes, doces e amargos, rígidos e flexíveis, antes do cochilo dos desocupados.
Ilustração: Dedé Dwight |
Outro dia me apareceram uma tontura e um zumbido nos ouvidos. O médico me tranquilizou dizendo que possivelmente se tratava de “um transtorno vestibular”. Achei que estivesse de gozação, dado que o último concurso do tipo em que me meti tem quase meio século. Mas ficou claro, logo depois, que falava de um conjunto de pequenos órgãos dentro do ouvido interno (sistema vestibular), responsável inclusive pela manutenção do equilíbrio do corpo. Da mente, nem se atreve!
Confirmado o diagnóstico com exames complementares, o médico me encaminha a uma fisioterapeuta para fazer "reabilitação vestibular". Ela, então, de primeira pontua que seria muito importante para mim evitar café. E seu argumento me deixa pensativo: tudo o que se come ou se bebe todo dia, a vida toda, um dia o corpo cobra. Caro, às vezes.
Penso, mas nada digo: tirando água, canja e chá de hortelã, ela pode ter razão. No entanto, nem deve ter ouvido falar do lendário boêmio Zé do Cavaquinho, que alertava aos frequentadores de seu estabelecimento (“O Trovador Berrante”, em Viçosa, no interior alagoano) de que “em excesso, até água de pote faz mal”.
Resolvo perguntar sobre possível substituto descafeinado, mas ela, de novo, me deixa reflexivo ao indagar se sou daqueles que acreditam que a indústria consegue, de fato, extrair 100% da cafeína, substância estimulante encontrada no café.
Nem me encorajei a contar o que um dia ouvi minha mãe dizer com indisfarçável orgulho: antes de andar ou falar algo inteligível, meus olhos inocentes e semicerrados cintilavam de gozo e prazer diante de café com cuscuz e tapioca, entre uma mamadeira e outra de mingau de maisena.
Com o correr dos anos, já me fizeram abrir mão, a contragosto, de um alfabeto de cheiros e sabores que me remetem a lugares em que fui feliz e sabia disso: acarajé, bolacha de sete capas, bolo Souza Leão, broa de goma, buchada, caldo de cana, canjica, cerveja, chocolate, cocada, doce de leite, goiabada cascão, pamonha, pão doce, pastel de rua, pé-de-moleque, picolé de coco, quebra-queixo, rabada, rabanada, rapadura, sarapatel, sonho, suspiro, tapioca,
Estou convencido de que uma pessoa só é totalmente livre quando pode beber e comer à vontade. Pior: até hoje, ninguém me pediu moderação no consumo de verduras e hortaliças, como se mastigar cebola crua não fizesse qualquer pecador ter uma visão prévia do inferno. Vá lá bem picadinha, no vinagrete, se o pernil de cordeiro estiver suculento e com pouco sal.
Tem quem diga que café é rico em antioxidantes, minerais, vitaminas e flavonoides (mesma substância encontrada no vinho, que, há mais de dois milênios, animou a Santa Ceia). Falam até que a ingestão desse néctar poderoso ajuda o cérebro a liberar estimulantes naturais como a dopamina (o hormônio da felicidade, da motivação) e a adrenalina, associada à disposição e a euforia.
Não boto tanta fé no que circula pela internet porque, quase sempre, existem fabricantes por trás investindo horrores em publicidade. Ou porque as descobertas científicas matutinas nem sempre batem com as vespertinas. Oscilam mais que humor de vascaíno em véspera de jogo decisivo.
Creio, no caso, em coisas mais práticas, intuitivas. Por exemplo, nunca vi ninguém cometendo um crime, uma maldade, uma grosseria sequer, enquanto segura pela asa uma xícara de café, lentamente inalando o vapor e admirando os desenhos que se formam sobre a espuma antes do derradeiro gole.
Já não sinto qualquer tontura ou zumbido nos ouvidos, mas estou pensando seriamente em firmar declaração, de papel passado, em cartório e com firma reconhecida (para o caso de, um dia, nem com os olhos poder expressar minha vontade), assim: nos próximos 50 anos, se alguém quiser me obrigar a largar essa infusão dos deuses da mãe-natureza, não serei responsável pelos meus atos. Posso, inclusive, recorrer a um canivete que escondo desde criança em minhas bugigangas.
Antes de consumada a desgraça, quem sabe a gente se senta, entra em acordo e toma um cafezinho (com pão de queijo, vai!) para celebrar a paz e a harmonia entre viventes inacabados e imperfeitos que somos, predestinados à inescapável hora de cada um.
A gente começa a ler a crônica e vê que como diz na minha cidade “ é a pura verdade” e mais já vivenciou a situação com uma pessoa em casa, e vemos o quanto vale um cafezinho, o valor de poder comer e beber sem restrições. 👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluirAltamira
ExcluirAqui na minha cidade o sol nasce mais cedo, portanto fazia tempo que eu estava esperando a crônica de hoje, para poder degusta-la com meu café de quarta-feira, como manda a Tradição. A minha.
ResponderExcluirEu diria pro médico deixar meu vestibular pra segunda chamada, porque quem fala em eliminar café simplesmente não tem coração.
Dedé
Concordo plenamente. Certa feita escrevi:
ResponderExcluir"Eu não perdi nenhum grama
numa dieta que fiz,
abandonei o programa
hoje sou gordo e feliz."
Feliz Natal com café e bolo de caco.
O argumento matador: nunca vi alguém cometer um crime ou ou uma grosseria sequer segurando a asa de uma xícara e bebendo um cafezinho.
ResponderExcluirEu sou desses também. Café é uma das delícias da vida. Passei a consumir sempre meia chícara pra poder beber mais vezes durante o dia.
ResponderExcluirSei que muita gente estranha, mas gosto mais depois que passei a beber sem açúcar
ExcluirCertíssimo. A rigor, açúcar só adoça mesmo a vida de usineiros. Desde o Brasil Colônia.
ExcluirUm café fumegante e com leite espumado, xícara de vidro com dupla parede, não tem preço.
ResponderExcluirMais uma crônica que nos faz viajar pela nossa existência... Claro que nesta viagem não pode faltar o nosso tradicional cafezinho.
ResponderExcluirNunca vi bancário que não aprecia um bom cafezinho aqui e acolá... não serei eu, mineiro acima de tudo, a negar essa velha e estimulante tradição. Até senti o cheiro do café ao degustar desse saboroso texto. Rodrigo Gurgel.
ResponderExcluirAssim é a vida, a realidade que se impõe no correr dos anos meu amigo. E se dê por feliz pelos milhares de cafés tomados , e que isso o ajude a amenizar a dura realidade de que na vida às limitações vai surgindo, especialmente para os longevos !
ResponderExcluirO cafezinho também é meu vício, se é que se pode/deve denominá-lo assim. Ficar longe dele, nas minhas crises de labirintite, é uma tortura que me afeta sensivelmente o humor.
ResponderExcluirBoa Hayton!!! Que lembranças: Carlim, toma um cafezim com biscoito de queijo bem quentim! Acabou de assar (no forno a lenha)… como diziam minha mãe e minhas tias, todas mineirinhas de Patos, em minha infância na fazenda! Uai! Pensa se alguém consegue evitar essa benção!!! Manjar dos Deuses!!!
ResponderExcluirTexto arretado…
ResponderExcluirHarmoniza muito bem com um copo americano de café extremamente quente e com um pão de queijo ki-delícia.
Mais alguém percebeu que no alfabeto de cheiros e sabores a ordem alfabética é rigorosamente observada? É TOC que fala? 🤭😂😂😂
ResponderExcluirVocê tem razão, Silas. O cafezinho tem o mérito de arrumar até a gaveta interna de manias…
ExcluirParabéns por mais um texto. Bom dia!
ResponderExcluirZé do Cavaquinho que está certo. Toma teu cafezinho, unzinho, e saboreia intensamente
ResponderExcluirUm verdadeiro ouro negro… ( sem preconceito , aí meu Deus), e os daqui da minha Chapada Diamantina, são soberbos… Aroma e bouquet especiais… parabéns pelo texto … esse distúrbio vestibular, tb tenho mas não largo meu café.
ResponderExcluirSem açúcar e grãos 100% arábica, da minha terra, Patrocínio, maior produtor de café do país, torrado e moído em casa!.. rsrsrs. Tive que moderar o consumo, porque cheguei a ter labirintite pelo excesso.
ResponderExcluirMeu Deus,é bem assim. Ficamos velhos e nos tiram um dos maiores prazer da vida que é degustar um bom café.Mas vamos vivendo e driblando até que a morte nos separe.
ResponderExcluirFoi quase como sentenciar um último pedido ou capricho. A derradeira vontade. Pontuada pelo pretume da seiva que serve de bebericagem há tempos imemoriais. Um compromisso firmado com o deleite trazido pelo encontro dos sentidos com um café bem forte e quente. Coisa de quem se entrega aos prazeres mundanos. Sem falar no poder agregador da bebida, que reúne, sempre às mesmas horas, pessoas queridas ou não. Excelente provocação.
ResponderExcluirQue conto espetacular. Me vi na mesma situação por duas vezes e não acho que o cafezinho seja o gatilho. Se o prazer não vier pelo cafezinho vem pela leitura desse texto.
ResponderExcluirNós bancários que digamos, qual bateria de caixas não mantinha uma garrafa de café para que ao nos dirigirmos à conferência de assinatura do cheque não traziamos o famoso cafezinho?
ResponderExcluirPerpetua
Ainda não me passaram a receita “pare de tomar café “ porque se esse dia chegar vou ignorar. Amo café, se for com um pouquinho de leite melhor! Rsrs
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirO texto me fez pensar no quanto é gostoso um cafezinho após as refeições ou acompanhando o lanche das 15h, acompanhando um delicioso beiju (a tapioca de outros lugares) ou de um cuscuz de fubá de arroz. Espero que o autor tenha melhorado da labirintite (?).
ResponderExcluirParabéns pela habilidade de encantar através das palavras.
ResponderExcluirViver, é saborear a vida, seus encantos, suas delícias, aquilo que leva-nos a refletir, a sonho e buscarmos a construção de dias melhores. Mais produtivo caminharmos sonhando, produzindo e sendo feliz.
ResponderExcluirO cafezinho tem seu valor, mas pode, nem sempre, proporcionar satisfação. Que as "úlceras" da vida o digam...
ResponderExcluirHá situações, no entanto, em que o "gostosinho" é vilão... Certamente, alguns já foram vítimas da xícara virar e causar aquele estrago nos documentos sobre a mesa de trabalho...
Mas, deixemos o desprazer de lado e apreciemos o sabor de um bom cafezinho...
Forte abraço...
Amei o texto! Sua forma de escrever é leve, agradável e divertida. Me identifiquei demais com tudo isso, e por mais q a gente tente ser saudável ( por necessidade mesmo), concordo demais qdo vc diz q perdemos nossa liberdade qdo não podemos comer e beber o q queremos. Tive q abrir mão do cafezinho noturno por problemas de insônia decorrente da menopausa, mas o da manhã e o depois do almoço, esses não consigo abrir mão. E o descafeinado não consegue arrumar as gavetas da mesma forma.
ResponderExcluirAh, essa crônica de hoje com sabor de café nos deixou muito felizes. Sobre essas proibições de prazeres, cada vez mais somos seus alvos, seja pela idade, seja pelo avanço das descobertas no mundo científico. Só que muito cuidado com estas. Nunca esqueço de uma crônica de Veríssimo, O Ovo, sobre a qual peço licença a Hayton para publicar um trecho. “ O fato é que quero ser ressarcido de todos os ovos fritos que não comi nestes anos de medo inútil. E os ovos mexidos, e os ovos quentes, e os omeletes babados, e os toucinhos do céu, e, meu Deus, os fios de ovos. Os fios de ovos que não comi para não morrer dariam várias voltas no globo.”
ResponderExcluirCaro Hayton, você como sempre nos presenteia com suas excelentes crônicas nas quartas feiras para nossa alegria; e falar de um delicioso café, ainda mais com um pão de queijo fresquinho, nem se fala. Mas o maior dilema, é surgir na nossa vida, algo que nos impeça de tomar o gostoso cafezinho, como o aparecimento de uma certa tontura e cuja ordem médica é suspender o pretinho, já pensou? foi o que aconteceu comigo nestes últimos dias, fui na emergência do Hospital dos Servidores aqui do Maranhão, e fui surpreendida por esta sentença, mas vou me cuidar para que não elimine de vez a apreciação do famoso cafezinho. Mas obrigada mais uma vez por este texto de presente, Hayton, um forte abraço.
ResponderExcluirExcelente!
ResponderExcluir👏👏👏👏
Se algum médico me disser pra suspender café, pastel ou chocolate, minha reação será “inodora e invisível”: nunca mais volto ao consultório.
😂😂😂
Já fiz isso com um ortopedista…
No nutricionista, que insiste nas tais “cores no prato”, volto porque tornou-se um bom amigo. Ainda que até hoje não tenha me indicado qualquer suplemento de verduras e legumes “em cápsulas”, apesar da minha insistência.
"Quem não gosta de coffee/bom sujeito não é/é ruim da cabeça/ou doente do... coração, fígado ou estômago". Tá certo! Confesso que não sou muito bom de rima, mas de café eu entendo um pouco, a ponto de tomá-lo, forte e quente, a qualquer hora do dia ou da noite, inclusive antes de dormir o sono dos justos. Há muito o café superou o futebol, o samba e até mesmo a cachaça como o grande paixão nacional. Não por acaso, o Brasil ocupa hoje a primeira posição no ranking mundial de produção de café, com volume estimado em cerca de 55,7 milhões sacas de 60Kg para o ano de 2022. Em tempos de ressaca de Copa do Mundo, a crônica publicada nesta quarta é capaz de embriagar qualquer leitor. Apenas a título de informação, o nome café é originário da palavra árabe qahwa, que significa vinho.
ResponderExcluirQuerido Hayton … comecei a ler suas cronicas regularmente enviadas por sua gd fanzoca : Sua irmã Zuleide …estudei com Zuleide ( Galega ) no colegio sagrada familia em MCZ e tb morava no mesmo bairro Gruta de Lourdes , duas ruas abaixo da padaria( sua rua) . Sua outra irmã Mana tb era amigona das baladas de garagem !! Tempo bom demais!! Dai enveredei pelos caminhos da medicina ( cardiologista agora aposentada) e casada com um Goiabo tb moro em Brasilia !! Quem sabe um dia você não aparece aqui em casa para tomarmos um cafezinho …
ResponderExcluirPois é, de que valeria a vida, não fossem os pequenos vícios? 🤣
ResponderExcluirE a gradação fica por nossa conta.
Texto perfeito! A vida sem o nosso sagrado cafezinho não tem muito sentido. Tb já fui aconselhada a tira-lo da minha vida! Tentei, mais não resisti ao seu cheiro e sabor!
ResponderExcluirExcelente! Bom demais sô! Café, conversa, biscoito, amigos, livros, vinho... esqueci algo? Sei que sim, cada um com suas preferências.
ResponderExcluirAs quartas-feiras são um bálsamo para nós outros - ou "nosotros", em homenagem aos hermanos - seus leitores. Não bastasse a beleza dos textos, ainda ficamos mais intelectualizados, até de café passamos a entender mais.
ResponderExcluirTambém eu sou um viciado em um cafezinho após as refeições, até tenho uma maquininha que me permite tomar um expresso.
E que ninguém venha me proibir de fazê-lo, sob qualquer pretexto, até de manutenção de saúde, afinal, à esta altura do campeonato posso me permitir algumas extravagâncias.
Pra não dizer que não falei de flores, lembro da grande homenagem ao café através da piada do dito popular - "Quando o café é bom, o cara já sente no co...ador". Será verdade???
Como sou desobediente desde o grupo escolar, também não obedeço a médico. Bons vinhos (de preferência um português tinto e bem encorpado), café e cervejas dão suporte a saúde e a alegria de viver.
ResponderExcluirPrincipalmente aqui pelas Minas Gerais, quem não toma um café com um pedaço de queijo, ou um pão de queijo, não pode ser tratado como gente. Se café provocasse zumbido, tinha é que colocá-lo pra tocar trompete ou trombone... mas ficar sem não dá não.
ResponderExcluirLembro-me do meu tempo de criança, wuando
ResponderExcluir...quando nossos pais, principalmente nossas mães, nós davam um purgante horroroso e só tínhamos o direito de tomar café quando o vermifugo fizesse efeito. kkkkķk
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