O direito de cochilar
Eu não notei, a princípio. De fato, ele tinha atributos para virar um estelionatário de primeira grandeza, como tanta gente que circula por aí leve, livre e operante. Poderia, a vida inteira, desfrutar de grana, poder e glória.
Ao pé da letra, estelionatário é aquele que consegue para si e os seus uma vantagem ilícita, em prejuízo alheio, via artifício ou outro meio fraudulento qualquer, de emissão de cheque sem fundos a falsificação de documentos.
Se descoberta, a punição prevista no artigo 171 do Código Penal provoca riso e estimula a reincidência: apenas cadeia de um a cinco anos e multa, irrisória, muitas vezes.
Quando criança, além de preferir cadernos de caligrafia a tabuadas, ele curtia desenhar a mão livre. Reproduzia quadrinhos extraídos de gibis de Tarzan, Tex Willer e Tio Patinhas, usando lápis e folhas de caderno de desenho, sem borracha. Mais adiante, captando expressões faciais de fotografias.
De tanto ver o pai assinar papéis e fichas gráficas que levava para casa, prorrogando a jornada de trabalho, o filho percebeu que não teria dificuldade em rubricar por ele um boletim escolar ou um bilhete à professora justificando a ausência numa quarta-feira qualquer em que fosse mais negócio se juntar aos colegas para jogar futebol, apanhar papa-capins no alçapão ou pescar jundiás e piabas no rio de sua meninice.
Mas nasceu curioso demais. Tomou gosto por ouvir histórias contadas pelas professoras e guardava o que escutava a cadeado e nó cego, para não perder tempo decorando livros na hora de brincar.
Acabou aprovado com certa facilidade no temido Exame de Admissão – espécie de “vestibular” que havia para ingressar no Ginásio. Dali para frente, aí sim, com as letras se misturando aos números nas questões algébricas, bateu alguma preocupação, mas escapou ileso, sem sequelas.
Órfão de pai, ele começaria cedo a trabalhar. Não completou três semanas e já se familiarizou com o jeitão de rubricar documentos de alguns “chefes”. A curiosidade e o pendor para riscos e rabiscos gritava alto.
Com uma máquina de escrever, poderia provocar “briga de cachorros grandes”, caso se dedicasse às futricas e rasteiras inerentes à malícia do mundo corporativo. Bastaria espalhar que Fulano era ladrão; Beltrano, corno; ou Sicrano, dedo-duro da ditadura. Boatos viralizam nesses ambientes desde a Revolução Industrial.
Mais adiante, quem sabe, poderia criar partidas contábeis ou ordens de pagamento fictícias, e fazer transferências espúrias. Repartiria o resultado com comparsas mais frágeis socialmente, feito um Robin Wood brazuca.
Quanto à lavagem do dinheiro, nem precisaria recorrer a offshore no Caribe, nas Ilhas Virgens ou na Suíça. O paraíso fiscal seria aqui mesmo, sob o céu e o sol do lado de baixo da Linha do Equador.
Faltava a ele, no entanto, um pré-pré-requisito crítico à prática do ofício: a índole para a coisa. O que tem de ser nem sempre tem essa força toda. Quem o protege e guarda é esperto, não brinca em serviço, nunca se distrai, não cochila nem depois do almoço.
Com o andar da carroça pelos descaminhos dos anos, uma hora acabaria enveredando pelo universo político. Despontaria no submundo do crime pra lá de organizado com mandato parlamentar e imunidade legislativa.
Chegando lá, com gabinete cheiroso, água gelada, cafezinho e uma tropa de asseclas, logo aprenderia que, para ser instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito, é necessário um certo número de assinaturas no requerimento de criação. E que bastaria ser subscrito por um terço dos membros do Congresso Nacional para a CPI ser criada.
Para um craque, seria moleza inserir algumas assinaturas de pessoas que, diante de dossiês robustos sobre a vida pregressa de cada uma, não teriam como negar a legitimidade dos garranchos sobre a proposta. Tudo muito simples, sem uma gota de sangue derramada durante a liturgia de convencimento.
Depois, lavaria as mãos. As lideranças do partido cuidariam de ameaçar, coagir, chantagear, constranger e extorquir os alvos potenciais a serem atingidos pelos resultados da CPI, atos esses que nunca seriam imputados a ele, um humilde parlamentar oriundo de uma região onde "se o gado morrer, o carrapato passa fome", como disse outro dia uma emergente preconceituosa, moradora do Rio de Janeiro, em sua inconformada viuvez com o desfecho das últimas eleições.
Ficha limpa, o anti-herói, até então improvável, mais à frente estaria apto a alçar voos mais altos, com pós-doutorado em manipulação de otários e trambiques correlatos.
Se nada disso vingasse, poderia partir para o exercício de uma profissão ainda não regulamentada, escorada no exercício vocacional da fé, embora seja ilegal usar a estrutura de templos religiosos para coagir fiéis a votar “certo”. A lei não “pegou” por aqui.
Sim, meus caros leitores e leitoras, o cara da cabeça branca que agora vejo no espelho teve tudo para virar um respeitável estelionatário. Poderia agora deitar em berço esplêndido, com grana, poder e glória. Mas foi tão incompetente quanto cada um de vocês.
Nunca quis abrir mão do direito ao cochilo da tarde e de poder acordar sem saber onde está nem que dia é. Apesar dessa gente que circula por aí leve, livre e operante.
Hayton, muito divertido. De falsificador e propagador fe fake news, deu de tudo 🤣🤣🤣
ResponderExcluirHá, há, acertei, desde o começo dessa longa e real crônica, imaginei será o próprio, mas que desfecho valioso e protegido, melhor mesmo é poder encostar a cabeça no travesseiro e cochilar em paz. 👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluirTempo de vida ainda terá para exercer a profissão abandonada. O que impede é a sobra de dignidade e vergonha na cara. Zero chance de prosperar. Siga nos divertindo semanalmente.
ResponderExcluirMaravilha!!!!
ResponderExcluirCoincidência ou não, 171 também é um terço dos integrantes da nossa Câmara dos Deputados! 🤭🤣🤣🤣
ResponderExcluirA capacidade de tirar o cochilo da tarde e o sono tranquilo à noite é uma bela recompensa, em troca das escolhas que fez. Certamente os que andam livres, leves e operantes, têm as noites povoadas por pedadelos.
ResponderExcluirÓtima e com desfecho surpreendente. Lembrei-me da expressão que ouvi muito por aí, "O preço da liberdade é a eterna vigilância". Parabéns!
ResponderExcluirExcelente! deitar a cabeça no travesseiro com a consciência tranquila não tem preço.
ResponderExcluirComo dizia meu avô, a pessoa é pra o que ela nasce. A vida é um diálogo interno e eterno entre o que se pode, o que se deve é o que convém. Que delícia de reflexão. Dedé
ResponderExcluirCortella deveria aplicar o que ele fala na hora de controlar a alimentação. Só acho.
ExcluirSe seria mais fácil o mar secar, do que o autor ser encontrado sem a fiel companheira em um encontro de trabalho, em Sauípe, só no pesadelo do fim do mundo caberia tanta bagaceira
ResponderExcluirMuito bom.
ResponderExcluirDesenho minucioso, pintado com riqueza de detalhes e final espetacular. Sim. Porque o fecho foi o inverso do que o leitor imaginara. Mas tudo está bem concatenado. Aula de vida e mostra poética de um arquétipo completo. Com perfil e tendências. O autor tem o domínio do conhecimento dos diversos tipos que grassam por aí. É um artista dito psicoentendido. Traz mais um personagem rico, cheio de "qualidades" natas ou adquiridas. Mas todas bem reais.
ResponderExcluirPessoas como nós, que podemos nos dar ao luxo de dar um cochilo, à tarde, somos a grande maioria e não temos nada a invejar, daqueles que estão por aí, operantes…rsrsrs. Excelente crônica!
ResponderExcluirÉ, lamentavelmente, não deu certo.
ResponderExcluirFelizmente!
Esse texto traduz com tanta profundidade, clareza e crueldade, os variados caminhos que podemos percorrer, que assusta. Você disse tudo, amigo: "faltava a índole para a coisa". O que nós dá alguma esperança nesse mundo, de que a maioria é desprovida dessa índole maligna.
ResponderExcluirMuito bom Hayton. Abração.
ResponderExcluirGradim.
Sua resposta ao comentário do Dedé lembrou-me de outro ensinamento que o professor e filosófo Mário Cortella costuma repetir:
ResponderExcluirA ocasião não faz o ladrão. Ela apenas oferece a oportunidade de
escolha para alguém que já trazia essa intenção. Podia, mas não devia...
Luiz Andreola
Bela reflexão.
ResponderExcluirTodos temos alguns dons e habilidades. Que podem ser utilizados para construir, destruir, orientar, dissimular, apoiar, derrubar, estimular, rebaixar, defender, atacar, incluir, extirpar, compreender, ofender, ter compaixão, odiar.
O que define quem somos de fato são as escolhas que fazemos quando não tem nenhuma outra pessoa olhando.
Pois é... O "direito de cochilar" certamente é o melhor prêmio que alguém pode almejar... Dizem que o "meio" ajusta o perfil do ser humano, mas, a índole vem do berço, talvez do "DNA" dos ascendentes consanguíneos. Os princípios morais falam mais alto. Forte abraço.
ResponderExcluirFelizmente ainda existe muita gente de caráter ilibado. Claro, excluindo em sua maior parte, nossos políticos. E se avançar para outros poderes, "a coisa fica preta". Porém somos seres predestinados ao bem. O mais perigoso bandido ou assassino, um belo dia na torrente da existência, tomará o caminho certo. Ainda ontem éramos hominídeos, experimento no processo evolutivo do planeta. A civilização é fina camada de verniz
ResponderExcluirQuanto desperdício! Com tais habilidades e competências, seria facilmente nomeado no Parlamento o líder de seus pares, a ponto de humilhar os deputados Justo Veríssimo e João Plenário. Faltou-lhe, porém, a necessária índole para tão nobre ofício. Preferiu o sagrado sono dos justos à maquiavélica glória dos políticos. Afinal, a paz não é determinada pelo que acontece em torno de você, mas sim pelo que acontece dentro de você. Parabéns, irmão! Não apenas pelo ótimo texto, mas também pela sábia decisão de tornar-se um respeitado bancário e admirado cronista.
ResponderExcluirHayton, como disse você, o melhor ainda é o direito ao cochilo pós almoço e a paz de espírito. O resto vamos tocando pela vida.
ResponderExcluirComo dizia o grande Vinicius de Moraes: Se todos fossem iguais e você...rsrs
ResponderExcluirCaro primo Hayton, como sempre ricos textos os seus; tem nos encantado em todas as quartas feiras; e como bem disse alguns leitores, o direito de cochilar é uma conquista que não é pra todo mundo. É apenas para aqueles que preferem permanecer na boa índole. Parabéns, o caráter do personagem da crônica é sinônimo de uma boa educação de casa. Vale a pena continuar com o direito ao cochilo. Um abraço.
ResponderExcluirÓtima crônica, mais uma para nossa coleção, retratando a Vida e exemplo de uma pessoa especial: Hsyton Jurema da Rocha.
ResponderExcluirNem adianta achar que um dia você vai se agoniar por falta de assunto. Só sua vida já é rica demais em episódios que você transforma em pérolas literárias.
ResponderExcluirComo sempre pesco algum detalhe mais determinante, verdadeiramente singular, o de hoje é por demais marcante. Afinal, "submundo do crime verdadeiramente organizado" é desses acertos que fariam corar de inveja os mais consagrados letristas de Pindorama.
Enfim, há um detalhe que une convergentemente todos nós, seus leitores - os comentários aí mostram.
Você brilharia ainda mais se tivesse enveredado pela política em nossa Pindorama. Certamente seria o presidente mais votado de toda nossa história, se tivesse enveredado pelos descaminhos que norteiam a atuação de nossos políticos.
Felizmente você não fraquejou.
Para quem usa CPAP e tem trocentas apneias por hora, perder o sono vespertino por uma delinquência qualquer não seria uma boa opção de vida.
ResponderExcluirMelhor aproveitar em paz aquela soneca pós almoço, e é o que tenho feito.
Agora, só para eu entender: emergente preconceituosa é a mesma coisa que falsa rica? Aquela que aparenta ser o que não é?
Se for atrás deve ser uma tremenda de uma 171.
Provavelmente saberá que é pobre quando tiver que pagar alguma indenização pelo tanto de asneiras que falou.
Tomara que perca o sono e algum dinheiro também.
A realidade levou a um desfecho melhor. Perderíamos muito se o primeiro propósito tivesse florido. Ainda bem....rs
ResponderExcluir"Quem Tem Inimigos não Dorme". Era o nome de um bloco famoso de Maceió das décadas 40/50. Nada melhor a esta altura da vida que o sono dos justos. No carnaval da vida, você pulou as tentações e, portanto, está livre, leve e solto para tecer excelentes crônicas do cotidiano.
ResponderExcluirExcelente! Inestimável "o direito" de poder dormir sem se preocupar com a possibilidade de acordar às 6h com aquele SUV preto e dourado na porta.
ResponderExcluirAdorei! No começo achei que sabia quem era. Depois, virou ficção e eu viajei na história. Até a revelação final e deliciosa. Agora, cochilar todas as tardes é para poucos! Diniz.
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