Cobras, lagartos e mercadores de ilusões
Não entendo quase nada de marketing. Portanto, as considerações a seguir são feitas por um aprendiz esforçado e metido, jamais um craque no assunto. E creio que minha condição é partilhada pela maioria de vocês. Feito torcedores de mesa de sinuca, temos teorias que julgamos perfeitas, mas, com o taco nas mãos, o buraco é mais apertado.
Na busca por notícias na internet, esbarro a toda hora em links que atiçam a mais elementar carência dos seres vivos: a busca pelo bem-estar. Surgem mais ou menos assim: “Esta fruta poderosa pode fazer sua glicose baixar para...”, “Falhando na hora H? Isso pode te ajudar...”, “Sofrendo com zumbido no ouvido? Temos a solução...”
A captura da suposta necessidade dos internautas acontece com o uso dos chamados cookies (arquivos que os sites hospedam em computadores e celulares, indicando que o usuário já navegou sobre determinadas páginas da rede). É a técnica chamada de retargeting (em tradução livre, “mirar de novo”). Equivale ao que fazia do vendedor de enciclopédias de antigamente um chato de carteirinha.
A propósito da velha expressão “chato de carteirinha”, esses novos mercadores de ilusões me lembram os camelôs de drogas que havia nas feiras livres das cidades em que morei. Quem, como eu, viveu alguns anos no Interior ou em pequenas capitais, sabe do que estou falando.
Imagens: Jessier Quirino |
Conheci um deles que recorria a cascavel, jararaca, jiboia etc. Aliás, a cascavel nunca cheguei a ver, porque estaria dentro de uma caixão de madeira, fechado. Ouvia-se apenas o tinido dos guizos, quando se tocava no baú.
Ele se exibia com cobras enroladas no pescoço e nos braços. Oferecia uma pomada cicatrizante que, nos dias de hoje, provocaria uma revolução na indústria farmacêutica. Passava um canivete no dedo indicador, de onde escorria um filete de “sangue”. A matutada (eu no meio, óbvio) ficava boquiaberta. O gordinho descarado, sem pescoço, falava alto e ligeiro no microfone, apresentando uma bula bastante robusta: “...Serve pra dor-de-barriga, dor-de-cabeça, dor-de-dente, dores nas juntas, frieira, furo de espinho, olho embaçado, lerdeza do homem, papeira, queimadura, rachadura... É só esfregar… E custa bem baratinho...” Daí, untava o dedo “ferido” e, pouco depois, a pele reaparecia lisinha, nova. Um "milagre" diante da matriz da cidade, onde acontecia a feira livre às quartas e sábados.
Conheci outro, que vendia umas garrafadas (mistura de cascas, ervas e raízes) para alívio de "doenças" como “carnegão, catarro preso, lombrigas, prisão de ventre, regra atrasada, tosse de cachorro, unha fofa” e outras. Trazia numa caixa de madeira um filhote de jiboia e um velho teiú. Assim que juntava meia dúzia de fregueses, grunhia algo e chamava pela cobra:
– Salomé, querida, chegue mais, venha cá dar bom-dia ao pessoal!
Claro que a coitada, que não gosta de confinamento, saía com a língua em riste, perscrutando o ambiente. Em seguida, ele chamava o lagarto.
– Joca, venha cá, meu véio, dê bom-dia aos fregueses! Que preguiça é essa!
Num dia nada bom, a jiboia não atendeu ao chamado do camelô. Em seu lugar, apareceu o velho teiú, de olhos esbugalhados, com um barrigão, grávido. O camelô, desconfiando de que o filhote de cobra estivesse adoentado, abriu a caixa, conferiu e esbravejou:
– O fila-da-puta do Joca comeu Salomé! Que miserável!
– Se comeu, tem que casar! – sentenciou um matutinho indignado. Achava ele que a cobra estivesse chocando ovos, feito galinha.
Li outro dia que os primeiros registros sobre o uso da maconha com fins medicinais são atribuídos ao imperador chinês ShenNeng, dois milênios antes da era cristã, que prescrevia o chá da erva para o tratamento de gota, reumatismo, malária e até memória fraca (parece comprovada sua eficácia, neste último aspecto, pois nos lembramos disso até hoje).
A popularidade da Cannabis sativa como remédio se espalhou pela Ásia, Oriente Médio e costa oriental da África. Seitas hindus, na Índia, usavam-na para fins religiosos e alívio do estresse. Médicos da antiguidade prescreviam maconha para tudo, desde alívio da dor-de-ouvido até as dores do parto.
Acho que os camelôs de drogas nas feiras livres sabiam disso no final dos anos 1960, inclusive porque negociavam discretamente uns cigarrinhos finos, escondidos junto ao fumo de corda para mascar ou combater pragas em hortas domésticas. Tudo pelo bem-estar de alguns fregueses.
Não me lembro se a estratégia de venda desses cigarrinhos também envolvia cobras e lagartos. Eu era apenas um moleque curioso, entre 11 e 12 anos. Não entendia nada de marketing mesmo.
Mais uma crônica 'da vida' espetacular, mas o início sobre sinuca me fez voltar meio século, pois pra dar palpites era o máximo, mas quando era minha vez de jogar... um desastre.
ResponderExcluirParabéns Hayton por mais esta excelente crônica , que nos remete às nossas próprias vivências de criança ! Fez-me lembrar que meu irmão um dia foi escolhido pelo homem da cobra para prestar-lhe assistência , o que lhe valeu a fama de corajoso por ter aprendido a lidar com a jiboia !
ResponderExcluirMuito boa crônica. Voltei no tempo, pois lembrei de tudo o que foi tão bem tratado e relembrado. Sobre os "chatos de galocha" não existe coisa melhor do que relembrar o que disse o poeta Mário Quintana: "No céu é sempre domingo. E a gente não tem outra coisa a fazer senão ouvir os chatos. E lá é ainda pior que aqui, pois se trata dos chatos de todas as épocas do mundo." Infelizmente, enquanto não formos para o céu e, espero que demore bem muito para irmos, vamos aturar os chatos enchendo nossos sacos.
ResponderExcluirUm passeio pelo universo das feiras dos meus "sertões". O autor, falando sobre os "homens das cobras", escreve com a desenvoltura de Dias Gomes. Feliz Natal.
ResponderExcluir“Fala que nem o homem da cobra..” pra mim é ditado novo. Vou adicionar aos meus conhecidos. Kkkk
ResponderExcluirQuanto ao resto, ao ler parecia que estava andando pela feira e encontrando essas figuras.
Mas aqui, no Comércio, tinha um com uma maleta que ele abria sobre um cavalete é que era cheia de potinhos de pomada que servia pra tudo - ou quase tudo - também. Kkkk
Nelza Martins - “Fala que nem o homem da cobra..” pra mim é ditado novo. Vou adicionar aos meus conhecidos. Kkkk
ExcluirQuanto ao resto, ao ler parecia que estava andando pela feira e encontrando essas figuras.
Mas aqui, no Comércio, tinha um com uma maleta que ele abria sobre um cavalete é que era cheia de potinhos de pomada que servia pra tudo - ou quase tudo - também. Kkkk
Postando de novo só para me identificar
Hahahahaha
ExcluirBons tempos!
Milagroso, mesmo, era o óleo do peixe elétrico.
Bom dia, caro Hayton!
ResponderExcluirBeleza de texto para começar a quarta-feira.
Também na praça da minha cidade lá do Interior - a velha e boa Franca do Imperador - também tinha o “homem da cobra”. E ele era muito convincente, pois dava vontade de comprar aquele remédio milagroso que curava tudo.
Obrigado por nos lembrar desses momentos da infância tão ricos de fantasia e curiosidade.
Abração.
Parabéns Hayton por mais uma crônica maravilhosa .Me fez relembrar aninha infância na cidade de União dos Palmares Al ,das feiras nas quartas e domingos onde tudo se vendia Me fez também dar boas risadas da cobra Salomé e o teiú
ResponderExcluirO homem da cobra. Quem tem menos de 40 anos talvez não tenha tido a ventura de conhecer essa instituição.
ResponderExcluirVi muito dessas cenas nas feiras de Bom Conselho-PE, há algumas décadas atrás. Li a excelente crônica ao som instrumental de um fundo musical imaginário de "Feira de Mangaio", composta por Maria da Glória Pordeus Gadelha e Severino Dias de Oliveira e eternizada por Clara Nunes
ResponderExcluirCaro Hayton, vimos você nos mostrar mais um personagem pitoresco. Desta vez, o homem da cobra. Um universo rico, cheio da sabedoria popular. Que trazia consigo ensinamentos que vêm até hoje. Ainda que camuflados por anglicismos ou nomes pomposos, para valorizar algo que era corrente para o povo. Muito bom relembrar mais esta página da vida.
ResponderExcluirMuito pertinente o seu comentário da semana. As pessoas parecem ser muito vazias ao explorarem tanto o lugar-comum de sempre. Para compor o texto, você deve ter garimpado bastante, para concluir mais esse belo trabalho. Parabéns!
ResponderExcluirMarketing é isso. Escrever uma deliciosa crônica no lugar certo, pras pessoas certas e no tempo certo, kkķkkk. Que delícia..."Quem não viu, na infância ou madureza, os marqueteiros de mesa vendendo seus badulaques com u'a bela singeleza? Cobra, teiú ou lagarto, ou mesmo uma "salamanta", o doente tendo fé, essas coisa não lhe espanta", como já dizia nosso cantador Genésio Tocantins. Adorei.
ResponderExcluirParabéns pela excelência de crônica!
ResponderExcluirEita, a garrafada eu queria mesmo saber! Esses dias uma paciente minha, do interior, estava atrás da danada. Disse que do interior que ela vinha ela tomava sempre que ficava doente. E como não encontrou mais, não estava mais tendo saúde. Para você vê o poder da crença.
ResponderExcluirFalando em feira do interior, havia há anos atrás, uma feira em Bebedouro, bairro à época, o mais distante da cidade de Maceió. Um cidadão abastado de nossa rua, chamou meu primo vindo de Murici(AL), para vender lá na dita feira, uns retalhos de pano. E ele me levou junto para ajudar. O pessoal mexia nos panos, alguns compravam e outros seguiam em frente. De repente um freguês puxou do bolso um retalho enorme e o estendeu a nossa frente, dizendo: vocês precisam prestar mais atenção. Coloquei esse retalhos todo dentro do bolso e vocês não viram. Resultado: o nosso lucro foi diminuto pois o dono dos retalhos percebeu as mutretas que haviam acontecido na tal feira!
ResponderExcluirCumpade Hayton
ResponderExcluirA sua crônica tá arretada.
De fato. A modernidade e as leis ambientais acabaram de vez com os artistas vendedores: o homem da cobra ou o homem da mala, restando a expressão “o mala.” Esta, aplicável a qualquer vivaldino da política nacioná.
O camelô, além de enganar o povo, ainda tinha que pagar o velho toco. A grana da polícia, do fiscal de feira e até do padre no pátio da igreja. E na hora do rapa, tinha que ser rápido, ou perdia tudo.
O camelô sem alto-falante é um derrotado.
Ele precisa chamar a atenção da praça.
Uma fala típica do camelô pra o início da conversa: “ Meu amigo, minha amiga, pai de família, mãe de família, eu mudo de roupa mas não mudo de cara!... eu gosto de todo mundo, só não gosto de quem se ocupa em falar da vida dos outros, porque? Porque essa pessoa não tem salário. Soldado de poliça tem salário; costureira tem salário; varredor de rua , lixeiro, enfermeira, cozinheira tem salário; a sonhora aí tem seu salário, mas quem fala da via alheia não tem salário...
Se você parar pra ouvir, fudeu. Vai pagar R$20,00 conto por uma banha de peixe poraquê, feita de cera e terebentina. 💫💫👍
Esta narrativa é mais uma daquelas receitas com o poder de se fazer destrancar a gaveta de nossa memória. Certamente cada leitor teve oportunidade de resgatar essa lembrança dos tempos em que os espaços multiculturais das feiras livres não se limitavam tão somente à oferta de gêneros alimentícios. Não existia melhor palco para exibição dos experientes feirantes e camelôs, que ali compartilhavam com galhardia seus saberes políticos, científicos e medicinais. De cobras, camaleões a peixes elétricos, todos os artifícios eram válidos quando se buscava convencer o incauto e esperançoso consumidor.
ResponderExcluirDevo confessar que fui assíduo espectador desses milagrosos mercadores, em minha querida Nazaré das Farinhas. Conhecia de cor e salteado todo a oratória utilizada por um certo tagarela Carlito, vendedor de um poderoso óleo medicinal, com promessa de amplo poder curativo, que se fazia acompanhar de um desastrado coadjuvante, nascido poraquê na região amazônica, denominado Seu Pascoal, e que só faltava gerar raios e trovões para desespero de quem se atrevesse a tocá-lo.
Para nossa alegria, ainda que menos vibrantes, as feiras livres seguem preservando muito da sua essência, sobretudo no Nordeste, como importante repositório de tradições e costumes de um povo.
To falando que esse escriba ta se esmerando na arte de engambelar seus leitores. A prosa ta quase igual ao falatório do homem da cobra. Mas no melhor dos sentidos.
ResponderExcluirO escriba seduz, captura, envolve, nos torna dependentes de suas histórias e, principalmente, do seu jeito de contar.
Espero que nunca precise lançar mão da cascavel!!! Kkkkk
Caro amigo Hayton, acredito que todos nós tivemos alguma experiência desses "chatos de carteirinha" que, muitas vezes, acabavam vencendo o cansaço da gente.
ResponderExcluirNessa lista de "chatos" acrescentaria os mascates que vendiam "as melhores sedas do mundo" e as ciganas que sempre vendiam algum tacho de cobre e liam a "suerte"...
Independe de cobras e lagartos, as técnicas de marketing sempre ajudam, até para a pessoa que apenas quer sair da invisibilidade. Para tudo tem que ter o "jeitinho", a depender do público-alvo...
Eu dava voltas para não passar perto dessas pessoas pois sempre tive pavor a cobra, Em Itambé sempre tinha na praça da feira. Você lembra de coisa que Deus dúvida. Rsrs
ResponderExcluirPerpetua
Adorei navegar em cada venda. Não sem razão, e ainda contaminado pelas propagandas de políticos, notadamente os de cargo mais inferior na cadeia alimentar do Parlamento, têm também os Políticos da Mala. Aqueles que em 60 segundos prometem até levar o mar para o sertão. Metem descaradamente e pelas ondas do rádio e TV. São a derivação perversa destes personagens tão bem descritos por você. Outro dia tive acesso a uma pesquisa mostrando o poder dos placebos, quando a pessoa acredita realmente neles. Então, as feiras livres, com seus médicos raizeiros da mala, acaba por suprir a ausência do Estado. Num país que se entra na fila da marcação de consulta pela madrugada e só é atendido às 17h, esses vendedores de santilidades acabam por fazer saúde coletiva, prescrevendo entre as sandices, ervas que hoje são estudadas e industrializadas e vendidas a peso de ouro. Como o óleo de andiroba e o amido de araruta. E afrodisíacos que sempre acredito que funcionam. Rsrsrsrs
ResponderExcluirQue maravilha de texto e de recordações!!! Quem nunca tomou uma dose de cachaça curtida com cascavel dentro? Ou uma colherada de mel com um monte de ervas dentro? Essas coisas curam até mal olhado! Rsss
ResponderExcluirVocê é insuperável, "seduz" até o genial Jessier Quirino. Não bastasse nos remeter a lembranças inesquecíveis até da infância - principalmente pra um sertanejo como eu - ainda nos explica o significado de termos tão "singelos" como Cookies e Retargeting - as aspas são necessárias.
ResponderExcluirPra usar um termo bem popular, PORRA, humilha mas não tripudia...
Sobre o início do texto, “O que é o coaching”?
ResponderExcluir“É uma metodologia que ajuda a encontrar e melhorar os pontos fortes dos indivíduos. Portanto, para fazer o processo, um coach ou mentor, aplica técnicas que despertam o potencial interno. Mas, para isso, a pessoa precisa estar disposta.”
Sinceridade: não estou e detesto, as redes sociais estimularam o “fiscal da vida alheia”. Você prefere parto de cócoras ao som de mantras tibetanos? FAÇA o seu assim! Sua religião é a verdadeira e única? ENTREGUE-SE inteiramente a ela. Suas escolhas são SUAS. Sem falar desse marketing abusivo e desenfreado!
Quanto a continuação, a nossa arte é cor, ideia, sentimento e movimento. E a arte brasileira tem seus maiores templos e locais de exposições permanentes durante todos os dias das festas, celebrações, eventos e entretenimentos das culturas populares nacionais. A cultura, a educação e a arte são partes indivisíveis de uma mesma moeda geopolítico-social do mais alto valor. Viva nossas raízes que precisa cada vez mais de incentivo
ResponderExcluirLembrei-me dos tipos que apareciam nos locais onde os camelôs dividiam espaço, em Caxias (MA). Idênticos ao da crônica. Realmente ele falava mais do que o homem da cobra (ele mesmo). Também tinha seus animaizinhos de estimação, como lagartos, cobras e até mucura (gambá) hahahaha... Texto real e muito divertido.
ResponderExcluirMe levou ao meu tempo de criança no interior do Paraná. Era tudo desde jeito mesmo. E a molecada ia chegando pra ver os bichos. De repente o vendedor falava que o lagarto iria subir na perna de quem mijou na cama hoje... não sobrava um guri pra conferir a história. Ótima crônica.
ResponderExcluirLegal
ResponderExcluirMuito bom
ResponderExcluirHahahaha que maravilhoso!
ResponderExcluirNão posso falar nada. Ainda tenho e faço uso dos digestivos milagrosos vendidos nas feiras. Aqueles com mil e uma ervas. Curam tudo! Kkkk
ResponderExcluirMarina
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