A caipirinha derramada

Você já parou pra pensar como seria uma Disneyworld por aqui? Talvez algum religioso endinheirado já tenha pensado nisso, mas faltou fé no retorno da grana a ser aplicada e optou por investir em campanhas políticas de terceiros. Ou viu que não seria fácil convencer seguidores, por mais fanáticos que sejam, a reajustarem o dízimo.

 

Titular do delírio etílico, escolho o local onde se desenrolaria a história: aquele que no período colonial era chamado de Nova Lusitânia ou Capitania de Pernambuco do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, abrangendo os territórios dos atuais estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. 

 

Seria entre as praias de Pajuçara e do Gunga, onde você, ao pôr do sol, mergulharia em águas mornas, degustando uma caipirinha socada no açúcar mascavo, com tira-gosto de agulhinha frita, ouvindo pérolas instrumentais da obra de Djavan como “Oceano”, “Só eu sei”, “Um amor puro” ... 

 

Claro que Mickey e Pato Donald não seriam os personagens principais. Pateta, tampouco, eis que não se distinguiria da multidão. As estrelas seriam Chicó e João Grilo, extraídas dos folhetos de cordel para as proezas da obra “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, a figura mais ligada à nordestinidade que já existiu (“eu não troco meu oxente pelo 'ok' de ninguém!”).

 

Chegando lá, você não veria o castelo de Cinderela no centro do Magic Kingdom, mas sim uma escultura do tamanho do Cristo Redentor, reproduzindo a tela “Retirantes”, de Portinari, obra inspirada no romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, sobre uma família de sertanejos tangida pela estiagem. 

 

“Retirantes” - Cândido Portinari

E um chato que me escuta, da mesa ao lado no boteco, pondera que ficaria melhor se a escultura espelhasse o “Patriota do Caminhão” (ou o “Viking do Capitólio verde-amarelo”), o manifestante de Caruaru inconformado com o desfecho das últimas eleições presidenciais que foi visto sobre o para-choque, agarrado ao para-brisa de um veículo, cantando, quem sabe, “eeeu/ sou brasileiro/ com muito orgulho/ com muito amooor...” A ciência nos deve uma boa explicação acerca do cérebro desse rapaz.

 

Não esculhambemos a ideia no nascedouro, por favor! "Quem é você para derramar meu mungunzá?!" De novo, se o delírio etílico é meu, prefiro a homenagem ao velho Graça e a Portinari.

 

Pois bem. Afora os brinquedos clássicos – carrossel, montanha-russa, roda gigante –, a “Mandacarulândia” permitiria a você, no mínimo, quatro experiências memoráveis:

 

Quilombo dos Palmares – Um simulador replicaria o que aconteceu na Serra da Barriga, na Mata alagoana. Você lidaria com muita água, sol, ventos e cheiros, fugindo com escravos das fazendas de cana-de-açúcar. Pelo caminho, enfrentaria capitães-do-mato e feitores ávidos por devolvê-los ao pelourinho. Cada obstáculo superado seria premiado com guloseimas à base de banana, batata-doce, feijão de corda, milho e tapioca, além de pescados e carnes de galinha de capoeira e bacorinho. No final, faria uma selfie ao lado da escultura em tamanho natural de Zumbi, à beira do chamado abismo civilizatório que nos distingue das principais nações do mundo.

 

Senzala & Casa-Grande – Num trem-fantasma, você colocaria óculos 3D e mergulharia na obra clássica de Gilberto Freyre. Veria que, diferentemente daquilo que foi escrito no início do século passado, a elite branca nunca enxergou como um valor cultural brasileiro a miscigenação com negros e índios, embora a Igreja, diante da escassez de brancas-de-neve, tenha incentivado o casamento de portugueses com indígenas (jamais com negras). Veria também a origem de nossa sem-vergonhice – o famoso jeitinho, que não mais engana ninguém – e do exagero atribuído à sexualidade de indígenas e escravos. E as raízes da opressão contra a mulher, onde machões cultivavam o sentimento de posse, ora refletido no fato de sermos o 5º país com maior taxa de feminicídios.

 

Cabocla e os 70 anões – Em ligeira alusão à origem da legítima Disneyworld, outro simulador exploraria imagens do Cânion do Xingó num jogo onde uma rainha malvada, com ciúmes da beleza de Maria Bonita no esplendor de seus 45 anos, manda decapitá-la. Mas descobre que ela não morreu: estaria amasiada numa grota com Lampião e mais 70 anões do orçamento secreto do Reino de Mandacarulândia. 

 

Ondas Eternas – Numa tenda acústica, você, após duas gotinhas de um colírio alucinógeno, enxergaria cada movimento do grande Zé Ramalho, só de chapéu de couro e alpercatas, surfando ondas que viriam como gotas em silêncio, derrubando homens entre outros animais, devastando a sede dos matagais, devorando árvores, pensamentos, palavras... 

 

Daí se mete novamente o chato do boteco, agora entornando o meu copo sobre a mesa. E sugere outra  atração, inspirada em “Marimbondos de Fogo”, obra que levou à ABL o poeta Zé Sarney – engraçado, grandes nomes como Drummond, Graciliano e Verissimo, nunca concorreram à Academia. Deve haver alguma lógica nisso! Sobre o livro do maranhense, aliás, referiu-se Millôr Fernandes como “aquele que quando você larga não quer mais pegar”. 

 

Melhor ir pra casa que a ressaca será cruel. Não vale a pena chorar sobre a caipirinha derramada. Não ia dar certo mesmo. Mas seria interessante!

Comentários

  1. Ademar Rafael Ferreira16 de novembro de 2022 às 06:17

    A ideia é interessante e daria certo principalmente pela nossa capacidade criativa. Eu seria um investidor.

    ResponderExcluir
  2. Quanta criatividade ! Excelente ! Vi um filme de tudo, como se estivesse lá !

    ResponderExcluir
  3. Refleti sobre a frase "aquele que quando você larga não quer mais pegar" e fiquei pensando acerca da quantidade de produções de baixa ou nenhuma qualidade com que somos bombardeados todos os dias. Suas publicações nos salvam às quartas-feiras. Parabéns por mais essa bela viagem.

    ResponderExcluir
  4. Rapaz, que utopia fantástica essa aqui descrita. Nem precisaríamos mais de um "táxi pra estação lunar". Eu, com certeza, queria logo adquirir meu cartão fidelidade para voltar tantas vezes quanto o crédito permitisse. Excelente criatividade.

    ResponderExcluir
  5. Adorei! Maravilhosa sua crônica! Das melhores que já li. Parabéns! Heloisa.

    ResponderExcluir
  6. Seria tão interessante e tenho certeza que se já tivéssemos essa obra prima no Brasil Suassuna certamente teria visitado com muito orgulho e aí sim dito em suas palestra que Disney estaria por fora! rsrs

    ResponderExcluir
  7. E não é que delírios etílicos são capazes de produzir verdadeiras obras-primas?
    Sensacional o poder de criação do ébrio! Que se beba até a caipirinha derramada!
    Nesses tempos desvairados, estamos precisando muito de embriagada lucidez.

    ResponderExcluir
  8. Não sei se o amigo sabe, mas o grande humorista José Vasconcelos tinha um sonho, comprou terreno, investiu e chegou a inaugurar parte da Vasconcelância, que concorreria com a americana, mas que na verdade o levou à completa ruína antes de morrer. Melhor seria se entornasse seus delírios em caipirinhas com açúcar mascavo e cuspisse textos divertidos e revigorantes, como faz o amigo. Bom dia! Dedé Dwight

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não sabia, Dedé. Merecia melhor sorte pelo grande humorista que foi, mesmo sem recorrer a termos chulos em suas apresentações.
      Mas é o tipo de empreendimento que só dá certo nos devaneios etílicos moderados. Não à toa o ator Humphrey Bogart, de “Casablanca”, pregava que “a humanidade está sempre duas doses abaixo do normal”.

      Excluir
    2. Gostei da “viagem” decorrente do mergulho etílico. O local escolhido para o parque é acertadamente o melhor porque rico de todas formas - lugares lindos, povo espirituoso, cultura marcante, muito alto astral e belezas de tudo que é jeito.
      Sobre a psicologia ter que dar uma resposta ao que passou na cabeça do “patriota do caminhão”, pode puxar o fio que vem mais uma carrada outros exemplos de comportamentos impensáveis até hoje.

      Excluir
  9. Aí, sim! Kkkkk
    Um lugar digno de se visitar, conhecer, desfrutar!

    ResponderExcluir
  10. Bom diaaa
    Esse eu tenho até receio de comentar.
    Sendo eu, viajante das histórias que leio ou escuto, entrei no delírio etílico alheio.

    Interessante como você consegue transformar um peso agressivo das passagens históricas, tipo, "Mandacarulândia" à situação atual (gostei das guloseimas), com suavidade.

    Enquanto volta para casa para curar à ressaca, lembre...
    Sou brasileiro, não desisto nunca, e vou até a última chave 🔑 para abrir o cadeado.

    ResponderExcluir
  11. Rapaz você é demais! Que ideia genial, tomara que apareça alguém para patentear.

    ResponderExcluir
  12. Peguei uma carona nesse sonho etilico . Vc foi genial ,impressionante sua criatividade !. Mariluce Veras.

    ResponderExcluir
  13. Bom Dia...
    É um projeto e tanto...
    Mesmo que seja fruto do "delírio etílico" e da "vingança" por conta da "caipirinha derramada"...
    Dizem que todo bom projeto inicia das visões de uma "caipirinha alucinógena"...
    Mas é isso...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Uma única gota dessa pinga atômica, delirante e alucinógena não deve ser desperdiçada. Vou tomar a minha dose.
      .
      E como não perco oportunidades, vou investir todo o dinheiro que eu não tenho nesse projeto tão necessário. Estamos carentes disso.
      .
      Em tempos de transe coletiva, alguns outros devaneios são necessários.
      .
      Parabéns!
      .

      Excluir
  14. Cleber Pinheiro Fonseca16 de novembro de 2022 às 11:50

    Amigo, em tempo de formação de “equipe de transição”, seu nome ganha força para a composição do futuro Ministério da Cultura do Nordeste. Certamente não faltará companhia para outros tantos delírios etílicos. Santé!

    ResponderExcluir
  15. Quanta criatividade …. Sensacional

    ResponderExcluir
  16. ABEL DE OLIVEIRA MAGALHAES16 de novembro de 2022 às 12:22

    Parabéns por mais um texto. Sempre admiro a sua disposição de escrever semanalmente um texto para os seus leitores. Sei que é difícil e cansativo cumprir a missão.
    Na semana passada eu li a sua crônica e comecei a escrever um comentário sobre ela, mas precisei me deslocar para outra missão. O tempo passou e terminei não concluindo a tarefa. Hoje eu fico a imaginar como você consegue executar essa tarefa, cujo mérito maior é a não obrigatoriedade de fazê-la, pois se trata de algo espontâneo.
    Por tudo isto, receba o meu abraço de admiração e respeito pelo que faz, que revela elevado grau de responsabilidade. Por isto, a minha admiração e respeito pelo que faz. Parabéns!

    ResponderExcluir
  17. Texto genial.
    Como tudo que você faz! Nos fez embarcar na mandacarulândia e curtir cada passagem e cada canto!

    ResponderExcluir
  18. Absolutamente hilária a passagem. Também, querer rivalizar com as belezas do Tio Sam é demais. Sem contar que as escolhas foram, no mínimo, esquisitas. A famosa Baleia, cadela esquálida que enfeia, e não enfeita, um quadro tenebroso do nosso cancioneiro. Xicó e Zé Grilo, duas lendas da esperteza humana. Conseguem enganar até o capeta. E tudo regado a um copo de caipirinha. É dar asas à imaginação mais fértil que há. Excelente história.
    Roberto Rodrigues

    ResponderExcluir
  19. Amigo!!!!
    Parabéns pela crônica!
    Ou melhor! A Crônica!
    Se não a melhor, está pelo menos no top 3.
    Gratidão 🙏🏻
    👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

    ResponderExcluir
  20. Eu até já coloquei aqui, mas nunca é demais repetir.
    Seu cérebro possui uma energia que nem usina nuclear - acho eu, e creio que muitos de seus leitores também - é capaz de produzir.
    Houvesse um instrumento com capacidade pra fazer tal medição, eu entraria pra história por ter antevisto isso.
    Essa crônica de hoje é antológica, você consegue produzir uma verdadeira paródia, digna de ser transformada em um filme que encantaria gerações - falta é um cineasta genialmente louco pra estar à altura de produzí-lo.
    O que mais me encuca é sua capacidade de colocar e descrever tantos detalhes, há momentos, durante a leitura, em que paro pra respirar, com medo de ter um troço, tão forte é o exercício mental pra absorver tudo. E o pior é que a gente vai lendo, absorvendo e instintivamente querendo mais.
    Pô, amigo, humilha, mas não tripudia.
    Grande abraço.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Falar de coisas sérias mantendo o senso de humor tem sido um desafio permanente. Talvez fruto de meus tempos de “pasquimaníaco”, mergulhando em cérebros privilegiados como de Millor, Jaguar, Henfil. Ou a admiração de hoje por cabeças geniais como de Gregório Duvivier, Xico Sá…
      Sei lá! Pior que tem alguns pervertidos como você que me dão cartaz! Rsrs

      Excluir
    2. Amigo, fico honrado por ter mais essa identificação com você, também fui leitor fanático do PASQUIM, como sou do Duvivier e do Xico Sá - este, impagável. Adoro também o estilo de Martha Medeiros, conquanto diferente dos citados, mas imperdível, sob minha ótica.
      Bola pra frente...

      Excluir
  21. 😂😂 me diverti com a ideia, tive a oportunidade de viver na prática a experiência de administrar um parque temático - fui presidente do Conselho de Administração do Beto Carrero, de 2002 a 2005. Qualquer coisa que se faça no Brasil não é coisa pra amador. Também teve o Parque de Aparecida que a Previ enfiou uma grana e não deu certo, esperavam contar com os romeiros que iam na Basílica e não contavam que eles só iam pra lá, por conta de uma imagem de mais ou menos 30 centímetros, que hipnotiza os fiéis. Na Disney tem sempre um herói ou anti-herói com um novo espaço que justifica uma nova ida. No Brasil, tudo que você lembrou foi obra de autores maravilhosos que nossos jovens nem sabem quem foram, nossa geração não tem muita disposição para as montanhas russas e para as caminhadas sem fim. Tudo isso pra dizer que não investiria 😂😂😂😂😂😂😂😂😂😂🤩😂😂😂🤩😂😂
    Mas me diverti muito caminhando pelos espaços desse seu parque imaginário, quem sabe com os meus netos, tentando explicar a importância de cada um desses autores. Na expectativa que pelo caminho pudesse encontrar uma barraca de Acarajé. 🙏❤️🍀

    ResponderExcluir
  22. Parabéns por outra bela crônica! criatividade inigualável.

    ResponderExcluir
  23. Que bela viagem ao mundo da cultura, realmente a gente não sabe qual a parte mais atraente, é uma boa ressaca com muitas reflexões.

    ResponderExcluir
  24. Lembrei-me de uma das histórias de Ariano Suassuna, quando ele contava sobre conversa com uma senhora que se referia à Disneylândia como um passeio obrigatório pra todas as pessoas de “alto nível”. E ele não sabia o que dizer, por nunca sequer ter pensado em visitar. Fabuloso sempre!
    Na Mandacarulândia eu começaria o passeio pelas Ondas Eternas, mas certamente não sairia sem uma porção de selfies com Chicó e João Grilo.

    ResponderExcluir
  25. Gostei da idéia... se precisar de acionista eu estou dentro.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Que chato, não?!

Perfume raro

Abacaxi de ponta-cabeça