quarta-feira, 17 de maio de 2023

O povo esquece

Trouxeram até o Chefe uma mulher apanhada em adultério. Propuseram que fosse apedrejada (ou recebesse cacetadas) até a morte ou até ser desfigurada para que nunca mais despertasse, nos semelhantes (e nos diferentes também), desejos libidinosos. 

 

Reprodução/Redes Sociais

O Chefe sentiu a rapaziada disposta ao massacre. A vida daquela mulher não tinha a menor importância. Ninguém estava nem aí para as condições que a levaram a pecar. Também ninguém questionou o que a teria levado a vacilar, mesmo sabendo que a pena capital seria aplicada em caso de flagrante.

 

Nada se apurou sobre eventuais promessas feitas ao ouvido da acusada pelo corresponsável pelo crime. Talvez palavras ternas e poéticas, oferecendo o carinho e o cuidado que o marido já não oferecia. Daí, o coração gritou mais alto, quis algo que nunca experimentara e partiu com tudo para a troca de secreções e lesões corporais desejadas.

 

Agora, sem advogado de defesa para assegurar os direitos cabíveis no rito sumário instalado, ali estava diante do Chefe, abandonada, desiludida e envergonhada, na iminência de uma dolorosa morte. 

 

Embora não fosse deputado ou senador eleito pela comunidade, o Chefe surpreende a tropa, sedenta de sangue, proclamando de forma desconcertante: “Quem dentre vocês não tiver pecado que atire a primeira pedra ou dê a primeira cacetada!”

 

Para encurtar a história, uma vida foi poupada, em primeira instância, por motivos óbvios: ninguém ali era ficha limpa. Talvez tenham se perguntado: “Quem de nós, a bem da verdade, nunca pecou? Onde está o justo, o puro, o santo?” 

 

Não demora muito e aparece um espírito de porco fazendo o que se espera de quem se especializa em complicar situações ou causar constrangimentos em certas ocasiões: “Data vênia, Chefe, cabe recurso!”

 

Depois de ouvir a sentença proferida em primeira instância, o próprio espírito de porco interpõe recurso oral, já de posse de uma banda de tijolo, mirando a testa da adúltera: “Eu nunca pequei. Logo...”.

 

– Peraí! – atalha um dos comparsas da alma suína puritana – Você esquece que anda cubando as partes daquela comadre casada, né mesmo? Toda vez que o marido dela sai para fazer entregas no asfalto, lá vem você com aquela desculpa de que anda chateado, insatisfeito com o que tem pra janta dentro de casa, só de olho no cofrinho e no decote da moça, né não? 

– Opa! Sem maldade, só admirar as tatuagens não é pecado. Pra onde caminha a humanidade? – justifica-se, mas desiste do arremesso da banda de tijolo, temendo que os rumores ganhassem maior repercussão e afetassem sua amizade com o compadre.

 

Outro pega um porrete e se habilita a iniciar a execução sumária com novos e robustos argumentos:

– Nunca desejei a mulher do próximo, não matei nem roubei. Sou puro e casto como um cabritinho de dois dias.

– Por falar nisso – diz o Chefe, segurando-o pelo braço do porrete –, lembra de quando era moleque na Baixada e andou se servindo daquela cabra velha? Você, hein?! Dizia na orelha da coitada que ela merecia ganhar um presente, que só não lhe dava um par de havaianas porque os pés eram redondos...

– Eu... Eu era bem mais novo que o senhor, Chefe…

– Ah, é?! Se eu lhe mandasse comer bosta, você comeria? Larga o cacete, vai...

 

Surge um cara fortão, parecendo uma chave inglesa, pega um paralelepípedo e prepara-se para atirar na adúltera, falando grosso: “Eu nunca fiz nada disso. Não tenho o pecado da luxúria, nem da avareza, da gula, da inveja, da ira, da preguiça ou da arrogância. Pelo contrário, sempre fui humilde e generoso...

 

Silêncio geral. O próprio Chefe então toma a palavra: 

– Mas mente que é uma beleza, hein?! Pensa que não sei?

– De quê, Chefe?

– Até vir trabalhar para mim, você colecionava combos de pecados capitais. Escapava da repartição no horário do expediente para beber e fornicar de cabaré em cabaré, exigindo descontos na tabela de preços dos serviços prestados. Isso quando não pendurava a conta no cheque pré-datado! Desista...

 

E pinta mais um justiceiro, de cassetete na mão, que também desiste ao ser devidamente lembrado de que, alguns anos antes, fora vítima de acusação “sem provas” (corrupção ativa e passiva, charlatanismo, emprego irregular de verba pública, falsificação de documentos, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, leniência e prevaricação), a qual o levaria ao corredor da morte se a sentença não tivesse sido anulada pelos tribunais superiores por conta de deslizes formais nas etapas preliminares do processo.

 

Quando a turba começa a se dissipar, de mansinho o ajudante-de-ordens consulta o Chefe:

– Que lição a gente pode tirar disso tudo, meu iluminado guru?

– Não se deve fazer julgamentos precipitados.

– Sei…

– Bem, se a tentação for grande, também não se deve resistir. Ela pode não voltar. Mas jogue o celular no vaso e dê descarga. 

– Só?

– E negue, negue tudo. O povo esquece logo. 

quarta-feira, 10 de maio de 2023

O “bem-amado” e as comadres

Ela e ele (um ex-parlamentar, por sinal, muito bem de vida) moram em Curitiba-PR, onde criaram os filhos, os netos crescem e a vida segue, só lhes restando agora, aposentados, implicar um com o outro o dia todo, todo dia. 


Esta semana retomaram uma briga antiga. Diz ela que ele vive dando em cima das mulheres mais jovens que frequentam um pub aconchegante e descolado, com decoração vintage, que serve uns coquetéis e petiscos maravilhosos. Ele nega. Garante que ela está ficando louca, vendo tranças e chifres em cabeça de pulga.

 

Ontem, ela buscou um ombro amigo numa videochamada para sua comadre Márcia, mulher de meu amigo Luizão, que a tudo ouviu porque o tom da prosa foi tão alto que o impediu de cochilar seus 20 minutos pós-almoço.

 

– Ele pensa que sou besta! – dizia ela. – Sou feito aquela que cantava "sinto quando alguém te interessa, mesmo quando finges que não vês..." 

– Calma, comadre! – ponderava Márcia –. Vai me dizer que nunca olha pra ninguém além de seu marido? Olhar não arranca pedaço de ninguém. Lembra quando você me disse que era difícil admitir que Harrison Ford ronca, que Richard Gere arrota, que Brad Pitt peida?

– Epa! Assim, não! Artista não conta...  

– Vai me dizer então que não existe nenhum gatão grisalho no seu prédio? Você não fala nada pra não desagradar o compadre, não é?

– Desagradar, não. Se eu elogiar alguém, na primeira bunda que aparecer na nossa frente ele vai esquecer que estamos juntos há mais de 40 anos. O bicho é safado mesmo. E quanto mais velho, mais sem-vergonha fica!

 

E veio à tona o estopim da encrenca: o noticiário sobre o imbróglio envolvendo o prefeito da cidade de Araucária-PR, que, no frescor de seus 65 anos, acaba de se casar com uma moça de 16. Dois dias antes do casório, ele havia nomeado a mãe da noiva como secretária de Cultura e Turismo. 

 

Imagem: Reprodução/Instagram 

Deu nos jornais que se trata do quinto casamento do insaciável alcaide. Reeleito com 47 mil votos, o bem-amado teria recentemente declarado à Justiça Eleitoral dispor de mais de R$ 14 milhões de patrimônio. Nada mal pra quem está começando uma nova vida a dois.

  

Aqui, legalmente é possível se casar aos 16 anos com autorização do responsável – a menina completou a idade mínima quatro dias antes de se casar. “Mas a ONU considera casamento infantil qualquer união com menor de 18”, argumenta a comadre de Márcia e Luizão. “Isso é uma violação de direitos. Pedofilia, falando português mais claro”, afirma.

 

A suposta prática de nepotismo é que deu visibilidade nacional ao caso. Após a repercussão, o prefeito se viu emparedado e cuidou de exonerar a sogra com menos de duas semanas após empossá-la no cargo.

 

Luizão me conta que, surfando no noticiário enquanto as comadres conversavam, descobriu que o Ministério Público do Paraná investiga a denúncia de nepotismo. Também existe uma análise sigilosa – seja lá o que isso significa – sobre o casamento.

 

O viril burgomestre concedeu entrevista ao jornal "O Popular do Paraná" declarando que o casal está bastante feliz. "Minha esposa me faz muito bem, e eu faço bem a ela...”. Nas redes sociais, ela retribuiu: disse não se importar com a repercussão do caso. "O que importa, sinceramente... É que não nos importamos!".

 

Ai de quem duvidar desses corações apaixonados que decidiram ficar juntos! Arrisca-se, no mínimo, a ser processado por preconceito contra idosos. Afinal, o etarismo (palavrinha na moda, hein?!) pode ser enquadrado como crime de injúria, quando alguém com mais de 60 anos tem a sua honra ou dignidade ofendidas.

 

A mídia, arvorando-se no papel de termômetro social, avalia a temperatura de uma possível investigação por exploração sexual, mas só na hipótese de o Ministério Público encontrar indícios robustos – de novo, seja lá o que isso significa. 

 

Uns dizem que, apesar de esse tipo de união ser legalmente permitido no Brasil, uma menina de 16 anos sequer tem o corpo (e a mente) completamente formado e, por isso, não há que se falar em consentimento. Outros defendem que não se pode acusar de ambição material uma criatura inocente, sem maldade.

 

Mas para a comadre de Márcia, no entanto, "houve, sim, jogo de interesses, pois a mãe da ninfeta foi nomeada pouco antes do casamento. E se o sujeito recompensou a mãe por autorizar a filha a se casar, teve exploração sexual..."

  

Ao perceber que meu amigo Luizão estava acordado, ouvindo o desenrolar da prosa, Márcia tenta envolvê-lo:

– E você, meu bem, o que acha disso?  

– Sei lá! Não vou me meter em conversa de comadres, mas...

– Mas o quê?

– Pode atrapalhar os planos do compadre. Outro dia ele me contou que será candidato a prefeito, aqui na região metropolitana, nas próximas eleições...

– Só capando aquele velho safado! – despediu-se a comadre, lacrando a videochamada. 


E Luizão, enfim, pôde cochilar. 

terça-feira, 2 de maio de 2023

Trocando em miúdos

Celebrou-se em Portugal, na semana passada, o aniversário de 49 anos da Revolução dos Cravos, revolta pacífica que pôs fim ao Salazarismo   governo de inspiração fascista desde os anos 1930, uma das mais duradouras ditaduras da Europa. 

Coincidiu com um momento marcante na vida de Chico Buarque, autor da mais célebre canção brasileira sobre aquele evento histórico, “Tanto Mar. Quatro anos depois do seu anúncio como vencedor do Prêmio Camões, principal honraria literária da língua portuguesa, Chico pôde finalmente recebê-lo no Palácio Nacional de Queluz, em Sintra, a meia hora de Lisboa. 

 

A recusa do ex-presidente Bolsonaro em assinar o diploma de premiação explica a demora. Quem acabou assinando foi o atual presidente Lula, que participou da cerimônia junto do presidente português, Marcelo de Sousa, e do primeiro-ministro, Antonio Costa.

 

O Prêmio Camões foi criado há 35 anos pelos governos de Brasil e Portugal e é escolhido por um júri composto por dois brasileiros, dois portugueses e dois representantes dos demais países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Já premiou nomes como João Cabral de Mello Neto, Jorge Amado, José Saramago, Lygia Fagundes Telles, Mia Couto, Rachel de Queiroz, Rubem Fonseca, dentre outros.

 

Voltei no tempo, aos meus 10 anos, mais precisamente a 1968. Apareceu na radiola lá de casa um compacto simples — pequeno disco de vinil com apenas duas músicas: de um lado, “Bom tempo”; de outro, “Ela desatinou” — de um cantor e compositor desconhecido para mim. 

 

Meu pai falava de canções mais interessantes do que aquelas dos cabeludos da Jovem Guarda. Tive dúvidas. Eu já começara a escutar no rádio “Eu sou terrível”, “Por isso corro demais”, “De que vale tudo isso”. Mas ouvi um bom conselho e nunca mais deixei de prestar atenção no que fazia Chico. 


Cresci admirando as múltiplas facetas do maior cronista-poeta musical de seu tempo.Tanto mar depois, embora Chico seja reconhecido em várias partes do mundo pelo conjunto de sua obra como cantor, compositor e escritor, com centenas de canções, cinco livros e tantas outras criações artísticas, alguns brasileiros o apedrejam nas ruas, nos bares e nas redes sociais, com a mesma intolerância e ingratidão com que se tratou Geni.

 

Reprodução: Redes Sociais

Lembra as pedras lançadas sobre Pelé, nos anos 1970, porque não usava de seu prestígio para denunciar torturas que aconteciam numa certa nação do faz-de-conta. Foi apedrejado inclusive porque teria dito que seus conterrâneos não estavam preparados para votar. Ironicamente, desde lá,
quem é derrotado nas eleições dá razão a Pelé.

 

Nos anos 1980, João Saldanha, um dos mais respeitados jornalistas esportivos, ao opinar sobre a decisão do então treinador da seleção, Telê Santana, de excluir do grupo o atacante Renato Gaúcho — o jogador caíra na esbórnia às vésperas da viagem para a Copa do Mundo —, foi taxativo: “Eu não preciso dele pra casar-se com a minha filha, mas pra jogar futebol. E esse cara joga pra burro!”.

 

Chico é pelé (cai bem o novo verbete incorporado ao dicionário Michaelis!) no que faz. Mas, como Saldanha, não preciso dele para ser meu genro, pai de meus netos. Nem tenho interesse em suas preferências futebolísticas, políticas, religiosas ou sexuais. 


Meus netos, sim, precisam ouvir antigas estórias de um país do faz-de-conta de casas simples, com cadeiras na calçada, em que na fachada estava escrito que era um lar. Ali morava uma criança que, mesmo sem ter fé, pedia a Deus por sua gente, gente tão humilde que dava vontade de chorar.

 

Com o tempo, essa criança foi vista chegando suada e veloz do batente, trazendo um presente para encabular seu pai. Eram tantas correntes de ouro que faltava pescoço para enfiar. Trouxera até uma bolsa com tudo dentro: chave, caderneta, terço, patuá, lenço e uma penca de documentos pra finalmente o pai se identificar.

 

Criança que cresceu desiludida com o futuro da nação do faz-de-conta. Um dia, bebeu e soluçou como se fosse um náufrago, dançou e gargalhou como se ouvisse música e acabou no céu como se fosse um pássaro. Restou a seu pai uma saudade que dói mais que o revés de um parto ou arrumar o quarto de um filho que morreu.

 

Chico, assim como você e eu, tem o direito de fazer o que bem quiser da própria vida, inclusive de vestir a camisa que lhe pareça mais bonita e confortável. Ainda que as tribos que racham a nação do faz-de-conta só falem a mesma língua num ponto: ou se está com elas ou contra elas. Não têm adversários, têm inimigos.

 

Em tempos de indigência cultural, com tantas obras descartáveis despejadas sobre nós, essas tribos insistem nesse espetáculo dantesco de “olho por olho, dente por dente” que transforma a nação do faz-de-conta num sanatório geral de banguelas e caolhos. 

 

Trocando em miúdos, estou vendo a hora de Chico pedir para deixarem em paz o seu coração — hoje, um pote até aqui de mágoa! — apagar a luz, bater o portão sem fazer alarde e sumir no mundo sem nos avisar. E aquela esperança de tudo se ajeitar... Pode esquecer.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

O espírito das coisas

Admiro as pessoas que simplificam hábitos e pertences ao estritamente necessário. Não sou minimalista, longe disso, mas já renunciei a muitos bens materiais e tento tocar a vida mais centrada em experiências com poucas coisas.

 

De novo, não sou minimalista. Ainda estoco comida e parte acaba no lixo, fora do prazo de validade. Isso é loucura num país onde um terço da população não faz três refeições por dia, mas já estou quase curado. Talvez o mal remonte aos períodos de escassez de meus ancestrais, mistura caboclo-indígena que sobrevive desde o Brasil colônia.


Fotografia: Dedé Dwight

A esta altura da travessia, deve-se levar no “barco” apenas a carga leve das paixões que vêm de dentro, como diria o menestrel de São Bento do Una. No meu caso, eis aqui o espírito das coisas:


Óculos – Primeira que pego ao acordar e última que largo na cabeceira antes de dormir. Ninguém consegue mantê-los limpos por mais de 10 minutos. Desconfio de que minha cabeça cresceu em torno deles e que a única utilidade prática das orelhas foi servir de suporte para a armação. 

 

Escova dental – Quando criança me ensinaram que sua função seria evitar cáries e remover a placa bacteriana. Mais tarde, que não deveria ser usada com movimentos bruscos, sob pena de remover inclusive os heróicos cacos da resistência. Nunca aprendi direito como usá-la. Aliás, aprendi que só em filmes e novelas os casais se beijam de língua assim que acordam e não engulham.

 

Chinelo de dedo – Mais que um calçado despojado para se usar em casa ou na praia, vejo com prazer que vem ganhando adeptos, sobretudo nas regiões tropicais, porque arejam os pés, diminuindo o risco de chulé e frieiras. Ando pensando seriamente em usá-lo com paletó e gravata no próximo casamento que for convidado. Em último caso, um par de alpercatas cai bem em qualquer situação.

 

Bermuda de cordão – Até agora não se descobriu nada que se ajuste melhor às oscilações da bolsa (abdominal, bem entendido!), nesse vaivém doido dos ponteiros da balança, tentando administrar uma barriga com mais de meio século rendida ao pecado da gula. 

 

Liquidificador – Se o café da manhã não incluir vitamina de abacate ou banana, alguma coisa está fora da ordem mundial, diria o poeta. O hábito vem do tempo em que minha mãe abastecia até a tampa o tanque de combustível dos filhos antes de irem à escola, alguns ainda lambendo os bigodes leitosos.

 

Tablet – Para mim, tão multifuncional quanto um computador. Já esqueci até que escrever um texto exigia papel, caneta, mesa, cadeira etc. Correm agora sério risco de extinção aparelhos de TV, boa parte dos álbuns de fotografias e livros que nunca reli.


Celular – Complementa o tablet como tapioca e queijo. No meio da rua, serve de bússola e de bloco de anotações. Mesmo que eu já não faça (ou receba) nem meia dúzia de ligações ou mensagens por dia.  

 

Cortador de unhas – Passei a valorizá-lo ainda mais desde a partida de um amigo, vítima de AVC, que tentava aparar as unhas dos pés. Pena que o inventor da “coisa” não a concebeu mais funcional, pelo menos em relação aos pançudos. A dificuldade no manuseio está no comprimento e na curvatura, em relação ao cabo. Precisava ter acoplado um periscópio.  

 

Ar-condicionado – Há quem duvide da existência do ser humano sobre a Terra antes do surgimento desse aparelho mágico, tanto mais quando recordo, vagamente, de que já usei terno completo, camisa de mangas compridas, gravata, cueca, meias e sapatos. Inclusive no trânsito engarrafado, ao meio-dia, nas ensolaradas Maceió, Recife e Salvador.


Rede de dormir – Desaparece com minhas dores lombares em questão de minutos. Com suas indiscutíveis propriedades anestésicas, substitui com vantagens não só anti-inflamatórios, como colchão, poltrona e cadeira de balanço, trazendo, no meu caso particular, relaxamento e completa indiferença ao que se passa nos arredores.


Tapa-olhos – Já se foi o tempo em que a escuridão me metia medo (o obscurantismo, sim, ainda me assusta). Dormir sem penumbra absoluta, agora, não é de todo repousante. Sou dos que acreditam que a diminuição da luminosidade induz a produção de melatonina, o hormônio do sono. Tanto que o cochilo à tarde pode ser reparador, mas é outra coisa quando se usa tapa-olhos e cpap (do inglês, significa pressão positiva contínua nas vias aéreas).

 

Cpap – É um troço utilizado no tratamento da apneia do sono para impedir a obstrução das vias respiratórias e evitar o ronco. Exalto-o (em nome inclusive de todos os usuários que conheço) pelo sacrossanto resgate do direito de voltar a sonhar durante o sono, de sobrevoar de novo a infância e até mesmo antigos ambientes de trabalho. Quem usa sabe que nem copo d’água gelada depois de uma colher de doce de leite dá tanto prazer. É viciante.

 

E você, já parou pra pensar na lista de coisas realmente indispensáveis no seu barco a essa altura da travessia? Só de pensar, acredite, já reduz bastante o peso. 



quarta-feira, 19 de abril de 2023

Durango, paçoca e tranca-portas

De nada adiantou, semana passada, o comunicado do gabinete do líder espiritual do Tibete, Dalai Lama, 87 anos, com o pedido oficial de desculpa diante da revolta de internautas do mundo inteiro com o vídeo em que o budista beija um menino na boca e, em seguida, pede que lhe chupe a língua. 


Quando soube do ocorrido com o carismático religioso defensor da paz, da compaixão e da solidariedade, meu velho amigo Urtiga lembrou que o clero de Portugal, país fortemente católico, abusou de quase 4.500 crianças desde 1950, segundo uma comissão independente, ao anunciar, no ano passado, suas descobertas após ouvir centenas de relatos de vítimas. 

 

Esses relatos têm surgido com espantosa frequência. O Vaticano anda cada vez mais pressionado a enfrentar com o devido rigor os escândalos, alguns capazes de corar rufião na zona de garimpo na Amazônia.

 

Ele me disse que a coisa vem de longe, não é de hoje. Que havia coroinhas nas igrejas de tudo que é canto do Brasil. Que se orgulha de ter jogado no time durante uns três anos.

 

Reprodução: Redes Sociais

Coroinha é aquele que ajuda o sacerdote no serviço litúrgico da missa. Não sei do que se ocupa hoje em dia, mas não deve ter mudado tanto. Quase não tenho ido à igreja. Apenas em casamentos, missas de sétimo dia e olhe lá. Isso com relação a terceiros. No meu próprio caso, nem considero a hipótese.  

 

Ele me contou que vestia uma batina encarnada e uma espécie de jaleco branco (sobrepeliz) sem nada especial nas missas de rotina. E bordado, em casamentos, Páscoa, Missa do galo e outras efemérides.

 

Tentava cantar músicas cujas letras nunca conseguia decorar, fazendo articulação bucal para fingir (feito as dublagens dos filmes no SBT). Isso quando não encaixava, por conta própria, uma letra qualquer criada ali mesmo. 

 

Não foi a fé que o levou à prática do acólito (calma aí, não é o que parece!). Devotou-se à causa para escapar da mãe, que lhe cobrava estudar o tempo inteiro. Além disso, era um “durango” – menor carente de mesada, duro, liso – e recebia do pároco uns trocados pra comprar paçoca de amendoim na volta pra casa.

  

Na Semana Santa, o arcebispo era esperado para a cerimônia do "lava-pés". Antes da chegada, uma senhora com cara de nojo revisava as unhas dos meninos e avaliava a qualidade do ar conferindo, in loco, a possível existência de fungos entre os dedos dos “apóstolos”. E sempre aparecia um candidato disposto a ocupar a vaga de algum excluído por razões sanitárias.

 

Durante a cerimônia, o bispo jogava água sobre os pés da meninada, encenava uma lavagem numa bacia sem água nem sabonete, em seguida simulava um beija-pés, que na realidade se dava sobre o seu anel. Depois, punha um envelope na manga da túnica contendo determinada quantia (digamos, algo como 100 reais). Os “durangos kids” exultavam.

 

Tudo isso escorreu pelo ralo quando se descobriu que o padre da paróquia vinha pedindo a um daqueles moleques que o ajudasse a fechar as portas, diariamente, após a missa das 19 horas. 

 

Diferentemente de quase todos os “durangos”, o prestimoso menino começou a esnobar, usando boné e tênis Conga, além de andar com cédulas de 10 no bolso.

 

Um dia, dois irmãos gêmeos que pretendiam ingressar na confraria dos coroinhas, porque também eram “durangos”, foram escalados por Urtiga para a missão secreta de investigar o que acontecia naquilo que, à época, chamou-se de “rito do tranca-portas”. 

 

Os intrépidos detetives se esconderam no confessionário, perto da sacristia, ao final da última missa de uma quarta-feira. Ao verem circular na área o moleque ostentador, seguiram-no com a respiração presa, de olhos bem abertos e na ponta dos pés. 

 

Meia hora depois, foram até Urtiga prestar contas da missão: o suspeito, na verdade, apenas ajudava o sacerdote a tirar as vestes eclesiásticas e, em seguida, cerravam as portas da casa paroquial. Nada mais. 

  

Só agora, depois do insólito beijo do líder religioso budista do outro lado do mundo, Urtiga se deu conta de que, dois meses após a investigação, as atividades dos coroinhas foram suspensas por tempo indeterminado. Embora os gêmeos nunca mais tenham se queixado da falta de dinheiro.

 

Quando me relatam um caso, tim-tim por tim-tim, trazendo uma visão panorâmica de todos os ângulos e personagens envolvidos, fico com um carrapato graúdo detrás da orelha. Sei lá!

 

Mas preferi não esticar a conversa. Vai que meu amigo Urtiga, que até hoje não dispensa uma paçoca de amendoim, se ofende.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Cores do jogo

A camisa da Seleção brasileira ainda é tida como uma das mais “pesadas” do futebol mundial, status conquistado por craques lendários e cinco títulos mundiais. Mas nem sempre o Brasil jogou com a “amarelinha”.

 

A primeira era branca, com detalhes em azul na gola e nas mangas. Mas já teve que usar outras, como uma vermelha, em 1917 e 1936, e as do Boca Juniors e Peñarol, numa época em que não havia uniformes reservas.

 

Reprodução: Redes Sociais

Mudou após a trágica derrota para o Uruguai, em 1950, na partida final da primeira Copa do Mundo realizada no Brasil. A CBD (precursora da atual CBF) resolveu trocar as cores e, antes do torneio seguinte, na Suíça, em 1954, um concurso organizado pelo jornal O Correio da Manhã definiu o novo modelo de uniforme, inspirado nas cores da bandeira nacional: camisa amarela com detalhes em verde, calção azul e meias brancas. 

  

Talvez por conta do que o jornalista Nelson Rodrigues chamou de “Pátria de chuteiras”, expressão que, mais tarde, a imprensa e a ditadura militar tomariam emprestada para mobilizar o povo em torno dos semideuses do “País do futebol”.  


Reprodução: Redes Sociais

Ou porque a execução de hinos antes das partidas de Copa do Mundo demarca a origem de cada time, remetendo os torcedores a símbolos nacionais, mesmo aqueles, como eu, que questionam o mofo e a poeira de certas expressões (de “raios fúlgidos”, “impávido colosso” ao “lábaro que ostentas estrelado”).

 

Implico também com as cores do uniforme da Seleção. Inspirado numa bandeira que representa a independência, a soberania e a unidade da Nação, foi concebida, há 133 anos, a partir dos olhos do colonizador português.  

 

O verde vem do escudo da família real de Bragança e não representa mais nossas florestas. O Brasil tornou-se fomentador de queimadas, um dos seis países do mundo (ao desonroso lado de Indonésia, Bolívia, Venezuela, Congo e Malásia) responsáveis pelo desmatamento de 60% da área total de matas que sumiu do Planeta de 1970 para cá. 

 

O amarelo remete à cor da casa de Habsburgo, da imperatriz Leopoldina, e também ao ouro, metal nobre e vil que, atualmente, nos impõe severos prejuízos com o garimpo fora de controle, inclusive nos territórios indígenas remanescentes, devastados pela ação de dragas e retroescavadeiras, resultando erosão e poluição de rios e solos pelo uso de mercúrio. Sem contar a tragédia humana da fome, da exploração sexual e de toda sorte de doenças “brancas”.

 

O azul e o branco, presentes na bandeira do Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves, um dia já traduziu o céu estrelado do Rio de Janeiro, onde agora só se fala de crime organizado e enchentes transbordando cursos d’água assoreados por derramamentos de óleo, além de favelas e condomínios desmatando encostas, num círculo de flagelo anualmente anunciado.

 

Em 2022, a jornalista e escritora Milly Lacombe defendeu em sua coluna no UOL “uma campanha por uma camisa preta... De um preto jamais visto, jamais usado por nenhuma outra seleção... Uma camisa preta que evoque os horrores dos quase 400 anos de escravidão para que, enfim, possamos começar a superá-los. Uma camisa preta que abra espaço para que a verdadeira história desse país seja contada...”.

 

Prefiro a mistura de branco e preto (diga-se, indevidamente chamados de cores), nada mais que a presença ou a ausência de luz. O branco é luz pura, reflexão abrangente de todas as cores. O preto, a total ausência de luz, quando as cores são absorvidas mas não se refletem. 

 

Defendo uma camisa simples, cinza, entre o branco e o preto. Um cinza grafite (inclusive no calção e nas meias) que nos remeta à ponta do lápis que faltou na alfabetização de mais de 10 milhões de brasileiros, segundo o Serviço Social da Indústria (SESI), com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2019.


A identificação do atleta (apelido e número) seria em vermelho, como o sangue derramado há mais de meio milênio de história pelas minorias sociais em situação de desvantagem cultural, econômica, étnica, política e religiosa.

 

Se quiserem uma referência histórica ao colonizador, cairia bem uma faixa branca diagonal atravessando o peito, símbolo das grandes travessias marítimas que levaram ao descobrimento do Brasil. Com uma cruz de malta na altura do coração, evocando o primeiro clube brasileiro a aceitar a participação de negros, pardos e caixeiros viajantes. 


Reprodução: Redes Sociais

Há 99 anos, aliás, esse clube se recusou a excluir pretos e pobres de seu grupo de jogadores, ato que ficou conhecido como “Resposta Histórica” à condição estabelecida para inscrição na Associação Metropolitana de Desportos Atléticos do Rio de Janeiro .

 

Ano que vem, no centenário desse marco histórico, seria arrebatador ver a próxima Seleção brasileira perfilada antes de uma partida eliminatória de Copa do Mundo, cantando, à capela, “Maria, Maria”, de Fernando Brant e Milton Nascimento.

 

Afinal, é a cinza (e o sangue) dessa gente humilde, “que traz na pele essa marca e possui a estranha mania de ter fé na vida”, que pode e vai virar esse jogo sem graça que se arrasta por aqui. No braço, nem que seja no ultimo lance da prorrogação.


quarta-feira, 5 de abril de 2023

Parafuso frouxo

Nada define melhor as coisas do Interior do Nordeste do que o verso e a prosa matuta que brotam no universo popular, refletindo cenários e circunstâncias numa linguagem singular. Em tudo que é lugar existe pelotões de soldados bem fardados no ofício, de repentistas a cordéis. Passam de mil os prosadores (e poetas) nesse pedaço de mundo, muitos de pouca leitura mas dotados de inegável talento.

 

Um deles é Jessier Quirino, “arquiteto por profissão, poeta por vocação e matuto por convicção”, como se autodefine – no que estamos concordes –, que conheci em 1997, quando o convidei para trocar dois dedos de prosa com os gerentes do Banco do Brasil que atuavam em Pernambuco.

 

Paraibano de Campina Grande, Jessier optara por viver em Itabaiana – terra de Sivuca e Zé da Luz, o poeta –, conciliando com as atividades de Doró, como carinhosamente chama sua mulher, arquiteta como ele. 

 

Dotado de uma memória espantosa, o que mais me impressionou nele foi a presença de palco, a debulhar espigas de saberes que iam de uma narrativa matuta, carregada de gíria, humor, neologismo, sarcasmo e sotaque, até cantigas do mais genuíno regionalismo. 

 

Fui impactado pelas “imagens” de sua obra, pela fartura de nuances do ambiente, de tramas e personagens entrelaçados, quando o vi declamar “Parafuso de cabo de serrote”, poema onde descrita uma bodega sortida, cujo desfecho nunca esqueci:

 

“(...) Tem cabides de copos pendurados

E um curral de cachaça e de conhaque

Logo ao lado se vê carne de charque

Tira gosto dos goles caneados

Pelotões de garrafas bem fardados

Nas paredes e dentro dos caixotes

Uma rodilha de fumo dando um bote

E um trinchete enfiado num sabão

E o bodegueiro despacha ao artesão

Um parafuso de cabo de serrote (...)”

 

Reprodução: Redes Sociais

Depois da "palestra", quando nos sentamos pra conversar, eu quis saber de seu processo criativo. Ele me contou de sua meninice no Interior, de ser devoto da sabedoria e da simplicidade do sertanejo, coisas que o fizeram um “prestador de atenção das ‘aconteçencas’ do mato”. 

Nunca mais deixamos de nos falar (bem menos do que eu gostaria, claro!). Descobri, inclusive, que sua sogra (Celinha) foi amiga de infância de minha mãe, a ponto de dona Pixitita, mãe de Celinha e avó de Doró, haver tentado, em vão, adotar Doça (Eudócia, minha mãe).

 

Reprodução: Redes Sociais

Com oito livros publicados, Jessier segue intercalando recitais em teatros, escolas, universidades e eventos corporativos, com seu “Papel de Bodega”, canal no YouTube onde, ao pé do balcão, declama poemas autorais, conta causos e recebe figuras caras à cultura brasileira.
 

Conversando com ele, numa tarde dessas, soube de um sujeito com um parafuso frouxo que, toda vez que se entupia de cachaça, ameaçava tomar veneno, cortar os pulsos, furar os olhos, mas nunca chegava às vias de fato graças à intervenção de terceiros.

 

Bêbado e tocado por uma paixão devastadora, certa vez o sujeito sobe numa dessas torres que existem em toda cidade interiorana disposto, numa visão “buarqueana”, a flutuar no ar como se fosse um pássaro, a agonizar no meio do passeio público e a morrer na contramão, atrapalhando o sábado.

 

Em minutos, o povo se aglomera em oração a pedir para que não cometa a desgraça. Ele, no entanto, resoluto como um camicase, faz o derradeiro apelo: que lhe mandem por uma corda alguns pertences de estima.

 

E iça uma gaiola, um rádio de pilhas e uma bicicleta em petição de miséria, parceira de andanças e confidências nos raros momentos de sobriedade.

 

Nisso, surge sua enteada no meio da multidão, de banho tomado, cheirando a água de colônia, trajando um shortinho e uma blusa “tomara que caia”. E, ainda que de longe, estende os braços ao padrasto, tentando evitar a doidice: “Não faça isso com mainha! Desce daí, vamos conversar...”

 

Mas o bêbado, nem-nem! Com o olhar dos desiludidos, prepara-se para o salto no escuro da eternidade. 


É quando aparece sua esposa, uma baixinha da cara de lua cheia, de buço e sobrancelhas grossas, braba feito uma gata parida, gritando: “Se quer morrer, cachaceiro safado, pule logo! Ou pare com essa cachorrada, desça daí e pegue o beco pra casa, agora!”

 

Um doidinho – toda cidade do Interior tem o seu, com um parafuso mais ou menos frouxo –, que a tudo assistia calado, só observando o desenrolar do drama, levanta-se do meio-fio, balança a cabeça, ergue o dedo indicador e opina com a segurança dos letrados no tema: “Oxente! Se nem pra moça ele desceu, vai descer pra essa aí?” 

 

Mas o infeliz desistiu. Jurou à esposa que não quer mais saber do cabide de copos pendurados nem do curral de cachaça da bodega. E foi-se embora costurando a rua, debaixo de vaia da molecada.