quarta-feira, 19 de abril de 2023

Durango, paçoca e tranca-portas

De nada adiantou, semana passada, o comunicado do gabinete do líder espiritual do Tibete, Dalai Lama, 87 anos, com o pedido oficial de desculpa diante da revolta de internautas do mundo inteiro com o vídeo em que o budista beija um menino na boca e, em seguida, pede que lhe chupe a língua. 


Quando soube do ocorrido com o carismático religioso defensor da paz, da compaixão e da solidariedade, meu velho amigo Urtiga lembrou que o clero de Portugal, país fortemente católico, abusou de quase 4.500 crianças desde 1950, segundo uma comissão independente, ao anunciar, no ano passado, suas descobertas após ouvir centenas de relatos de vítimas. 

 

Esses relatos têm surgido com espantosa frequência. O Vaticano anda cada vez mais pressionado a enfrentar com o devido rigor os escândalos, alguns capazes de corar rufião na zona de garimpo na Amazônia.

 

Ele me disse que a coisa vem de longe, não é de hoje. Que havia coroinhas nas igrejas de tudo que é canto do Brasil. Que se orgulha de ter jogado no time durante uns três anos.

 

Reprodução: Redes Sociais

Coroinha é aquele que ajuda o sacerdote no serviço litúrgico da missa. Não sei do que se ocupa hoje em dia, mas não deve ter mudado tanto. Quase não tenho ido à igreja. Apenas em casamentos, missas de sétimo dia e olhe lá. Isso com relação a terceiros. No meu próprio caso, nem considero a hipótese.  

 

Ele me contou que vestia uma batina encarnada e uma espécie de jaleco branco (sobrepeliz) sem nada especial nas missas de rotina. E bordado, em casamentos, Páscoa, Missa do galo e outras efemérides.

 

Tentava cantar músicas cujas letras nunca conseguia decorar, fazendo articulação bucal para fingir (feito as dublagens dos filmes no SBT). Isso quando não encaixava, por conta própria, uma letra qualquer criada ali mesmo. 

 

Não foi a fé que o levou à prática do acólito (calma aí, não é o que parece!). Devotou-se à causa para escapar da mãe, que lhe cobrava estudar o tempo inteiro. Além disso, era um “durango” – menor carente de mesada, duro, liso – e recebia do pároco uns trocados pra comprar paçoca de amendoim na volta pra casa.

  

Na Semana Santa, o arcebispo era esperado para a cerimônia do "lava-pés". Antes da chegada, uma senhora com cara de nojo revisava as unhas dos meninos e avaliava a qualidade do ar conferindo, in loco, a possível existência de fungos entre os dedos dos “apóstolos”. E sempre aparecia um candidato disposto a ocupar a vaga de algum excluído por razões sanitárias.

 

Durante a cerimônia, o bispo jogava água sobre os pés da meninada, encenava uma lavagem numa bacia sem água nem sabonete, em seguida simulava um beija-pés, que na realidade se dava sobre o seu anel. Depois, punha um envelope na manga da túnica contendo determinada quantia (digamos, algo como 100 reais). Os “durangos kids” exultavam.

 

Tudo isso escorreu pelo ralo quando se descobriu que o padre da paróquia vinha pedindo a um daqueles moleques que o ajudasse a fechar as portas, diariamente, após a missa das 19 horas. 

 

Diferentemente de quase todos os “durangos”, o prestimoso menino começou a esnobar, usando boné e tênis Conga, além de andar com cédulas de 10 no bolso.

 

Um dia, dois irmãos gêmeos que pretendiam ingressar na confraria dos coroinhas, porque também eram “durangos”, foram escalados por Urtiga para a missão secreta de investigar o que acontecia naquilo que, à época, chamou-se de “rito do tranca-portas”. 

 

Os intrépidos detetives se esconderam no confessionário, perto da sacristia, ao final da última missa de uma quarta-feira. Ao verem circular na área o moleque ostentador, seguiram-no com a respiração presa, de olhos bem abertos e na ponta dos pés. 

 

Meia hora depois, foram até Urtiga prestar contas da missão: o suspeito, na verdade, apenas ajudava o sacerdote a tirar as vestes eclesiásticas e, em seguida, cerravam as portas da casa paroquial. Nada mais. 

  

Só agora, depois do insólito beijo do líder religioso budista do outro lado do mundo, Urtiga se deu conta de que, dois meses após a investigação, as atividades dos coroinhas foram suspensas por tempo indeterminado. Embora os gêmeos nunca mais tenham se queixado da falta de dinheiro.

 

Quando me relatam um caso, tim-tim por tim-tim, trazendo uma visão panorâmica de todos os ângulos e personagens envolvidos, fico com um carrapato graúdo detrás da orelha. Sei lá!

 

Mas preferi não esticar a conversa. Vai que meu amigo Urtiga, que até hoje não dispensa uma paçoca de amendoim, se ofende.

21 comentários:

  1. Ademar Rafael Ferreira19 de abril de 2023 às 07:10

    Este assunto é mais escorregadio que piso de ardósia após receber o sereno da madrugada. Texto impecável.

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  2. Eita que agora você mexeu num vespeiro! Não se preocupe, o homem morre pela boca, não pela mão que escreve. No caso, essa boca falada vai matar o "homem".

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  3. Hayton, esse assunto vez por outra volta à tona. No dia em que a igreja católica autorizar o casamento isso diminui. Obrigado por me prestigiar com seus textos. Abração.

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    1. O tema é controverso. Impedir qualquer animal de satisfazer necessidades básicas acarreta problemas sérios. Se bem que casamento nunca foi remédio para falta de caráter.

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  4. E o Dalai resolve fazer um gesto esquisito que vai empurrá-lo literalmente pra "Lama".... inexplicável e imperdoável.

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  5. O Dalai já estava na lama agora então no lamaceiro Dayse

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  6. Não sou de fomentar intrigas, mas fiquei com um carrapato atrás das orelhas: todo este primor de texto, com pesquisas embutidas, pra lançar suspeitas sobre seu amigo Urtigão? Kkkkk

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  7. Meu avô sempre dizia, com uma boa dose de preconceito, é verdade, "sempre desconfie de mulher e menino que exibe, ostenta e diz que acha dinheiro". No caso presente, ao que parece, não era bem achado. Era preciso pagar pelos relevantes serviços prestados.

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  8. Bom Dia... De fato, situação intrigante e preocupante. O dia em que algumas "cortinas" forem suspensas, poderá deixar às claras sujeiras que o "tempo" pretendia esconder...

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  9. Em todas as áreas dos humanos existem acertos e pecados…paciência e tolerância devemos ter, para que não aumentemos o percentual de défict de almas!!!

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  10. Sei não!
    Tudo muito intrigante!
    Sempre achei mais prudente ficar longe desse meio. E, a cada revelação, diminui meu potencial arrependimento.

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    1. No caso, o meio justifica os fins. É uma mão na roda, como dizem os antigos…

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  11. Kkk. Assunto polêmico, mas tratado com humor e verdades. Os papa hóstias não gostam muito não, mas fazer o quê?

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  12. Nos dois casos, o problema é a força do Hábito. Dedé Dwight

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  13. Assunto bastante polêmico. Cada um que cuide dos seus filhos e não entregar à igreja

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  14. Só hoje acessei o texto. Ele me fez lembrar dos tempos de adolescente. Por algum tempo eu fui coroinha, mas não tive experiência mais esquisita, não. Felizmente. Hoje, percebo a malícia intrínseca reinante no tema. Por trás do pano de fundo, deve haver muitas histórias impublicáveis. Enquanto a igreja não alterar o regulamento, vai ser sempre assim. Ninguém tem condições de alterar as leis da natureza, sem punição severa. Quem tentar, pagará o preço. Parabéns por mais uma crônica.

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  15. Existem canalhas que se escondem sob uma vestimenta de santidade. Pregam tudo o que não praticam e são capazes de punir em nome de Deus. Nunca ousem mexer em suas vestimentas, é onde o lixo está escondido. E muitos pedem a bênção...

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  16. Teria muitas histórias e com vários ângulos, afinal dos 11 aos 18 anos fui seminarista. Com o passar dos anos foi fácil perceber que não teria nenhuma dificuldade com os votos de pobreza e obediência.
    O que pegou foi a castidade rsrsrs.
    Então meu reitor me sugeriu um ano de provações no mundo dito “impuro” para ver se eu resistiria a um rabo de saia. Não resisti. Mas só tenho gratidão pois tive excelentes mestres e uma educação exemplar. Devo muito aos meus 7 anos de internato. Mas também soube, nesse período, que pelo menos um educador de batina teve que ser afastado pelas suas “fraquezas”. Dos demais tenho muitas saudades. O Celibato na igreja católica foi introduzido na Igreja Católica em 1123. Não justifica mantê-lo. Aliás, celibato foi introduzido não por questões divinas. Parabéns pelo texto amigo Hayton.

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    1. Tentei editar meu comentário mas não consegui.
      Abs
      Tarcisio Hubner

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  17. Que assunto cabeludo, meu caro Hayton! O tema é delicado e mexe num vespeiro. Sou católico, mas acho que a Igreja precisa passar por uma ampla reforma, como liberar as mulheres para o sacerdócio. Hoje a CNBB não passa de um grande partido político.

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  18. Este e um assunto que urticária. Rsrs

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