quarta-feira, 5 de abril de 2023

Parafuso frouxo

Nada define melhor as coisas do Interior do Nordeste do que o verso e a prosa matuta que brotam no universo popular, refletindo cenários e circunstâncias numa linguagem singular. Em tudo que é lugar existe pelotões de soldados bem fardados no ofício, de repentistas a cordéis. Passam de mil os prosadores (e poetas) nesse pedaço de mundo, muitos de pouca leitura mas dotados de inegável talento.

 

Um deles é Jessier Quirino, “arquiteto por profissão, poeta por vocação e matuto por convicção”, como se autodefine – no que estamos concordes –, que conheci em 1997, quando o convidei para trocar dois dedos de prosa com os gerentes do Banco do Brasil que atuavam em Pernambuco.

 

Paraibano de Campina Grande, Jessier optara por viver em Itabaiana – terra de Sivuca e Zé da Luz, o poeta –, conciliando com as atividades de Doró, como carinhosamente chama sua mulher, arquiteta como ele. 

 

Dotado de uma memória espantosa, o que mais me impressionou nele foi a presença de palco, a debulhar espigas de saberes que iam de uma narrativa matuta, carregada de gíria, humor, neologismo, sarcasmo e sotaque, até cantigas do mais genuíno regionalismo. 

 

Fui impactado pelas “imagens” de sua obra, pela fartura de nuances do ambiente, de tramas e personagens entrelaçados, quando o vi declamar “Parafuso de cabo de serrote”, poema onde descrita uma bodega sortida, cujo desfecho nunca esqueci:

 

“(...) Tem cabides de copos pendurados

E um curral de cachaça e de conhaque

Logo ao lado se vê carne de charque

Tira gosto dos goles caneados

Pelotões de garrafas bem fardados

Nas paredes e dentro dos caixotes

Uma rodilha de fumo dando um bote

E um trinchete enfiado num sabão

E o bodegueiro despacha ao artesão

Um parafuso de cabo de serrote (...)”

 

Reprodução: Redes Sociais

Depois da "palestra", quando nos sentamos pra conversar, eu quis saber de seu processo criativo. Ele me contou de sua meninice no Interior, de ser devoto da sabedoria e da simplicidade do sertanejo, coisas que o fizeram um “prestador de atenção das ‘aconteçencas’ do mato”. 

Nunca mais deixamos de nos falar (bem menos do que eu gostaria, claro!). Descobri, inclusive, que sua sogra (Celinha) foi amiga de infância de minha mãe, a ponto de dona Pixitita, mãe de Celinha e avó de Doró, haver tentado, em vão, adotar Doça (Eudócia, minha mãe).

 

Reprodução: Redes Sociais

Com oito livros publicados, Jessier segue intercalando recitais em teatros, escolas, universidades e eventos corporativos, com seu “Papel de Bodega”, canal no YouTube onde, ao pé do balcão, declama poemas autorais, conta causos e recebe figuras caras à cultura brasileira.
 

Conversando com ele, numa tarde dessas, soube de um sujeito com um parafuso frouxo que, toda vez que se entupia de cachaça, ameaçava tomar veneno, cortar os pulsos, furar os olhos, mas nunca chegava às vias de fato graças à intervenção de terceiros.

 

Bêbado e tocado por uma paixão devastadora, certa vez o sujeito sobe numa dessas torres que existem em toda cidade interiorana disposto, numa visão “buarqueana”, a flutuar no ar como se fosse um pássaro, a agonizar no meio do passeio público e a morrer na contramão, atrapalhando o sábado.

 

Em minutos, o povo se aglomera em oração a pedir para que não cometa a desgraça. Ele, no entanto, resoluto como um camicase, faz o derradeiro apelo: que lhe mandem por uma corda alguns pertences de estima.

 

E iça uma gaiola, um rádio de pilhas e uma bicicleta em petição de miséria, parceira de andanças e confidências nos raros momentos de sobriedade.

 

Nisso, surge sua enteada no meio da multidão, de banho tomado, cheirando a água de colônia, trajando um shortinho e uma blusa “tomara que caia”. E, ainda que de longe, estende os braços ao padrasto, tentando evitar a doidice: “Não faça isso com mainha! Desce daí, vamos conversar...”

 

Mas o bêbado, nem-nem! Com o olhar dos desiludidos, prepara-se para o salto no escuro da eternidade. 


É quando aparece sua esposa, uma baixinha da cara de lua cheia, de buço e sobrancelhas grossas, braba feito uma gata parida, gritando: “Se quer morrer, cachaceiro safado, pule logo! Ou pare com essa cachorrada, desça daí e pegue o beco pra casa, agora!”

 

Um doidinho – toda cidade do Interior tem o seu, com um parafuso mais ou menos frouxo –, que a tudo assistia calado, só observando o desenrolar do drama, levanta-se do meio-fio, balança a cabeça, ergue o dedo indicador e opina com a segurança dos letrados no tema: “Oxente! Se nem pra moça ele desceu, vai descer pra essa aí?” 

 

Mas o infeliz desistiu. Jurou à esposa que não quer mais saber do cabide de copos pendurados nem do curral de cachaça da bodega. E foi-se embora costurando a rua, debaixo de vaia da molecada. 

31 comentários:

  1. Jessier Quirino é um grande brasileiro e eu sou fã há muito tempo de suas produções sobre o nordeste, como este painel tão belamente ilustrado de um causo do Nordeste que sua crônica entrega. Daquelas leituras de fazer ressoar o sotaque de um velho matuto longe do sertão. Dedé Dwight

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  2. A gente vê tanta “sustança” nesses artistas de vocês, que lamento não cheguem como deveriam em todos os cantos do pais !
    Essa arte, se espalhada, faria o pais melhor…
    Basta ver onde se concentrou a votação que nos salvou a todos !
    Eu mesmo ando com vontade se “subir” no mapa pra viver o tempo que me falta…

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  3. Caro Hayton, bodega do interior, que lá na minha terra chamávamos de venda, tinha de tudo: arroz, feijão, bacalhau, doces caseiros, frutas e verduras, querosene, fumo de rolo, chinelos, botinas, roupas de brim, cachaça, prego, parafuso e tudo que se imagina. E tudo misturado, empilhado, amontoado, pendurado, encaixotado. E tem mais, vendia fiado com anotações na caderneta. Que saudade desse tempo. Obrigado por relembrar nos versos do poeta e nos seus próprios. Abração, meu amigo. Zé Alípio

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  4. Uma vez tive o prazer de levá-lo na Ditec, para uma palestra cantada. Foi um sucesso. Jessier é um trovador, um catador de esperanças, um apanhador de cotidianices que humaniza e liberta quem delas se apropria, em forna de poesia. Uma alma perfumada que registra com magistral beleza o que temos de mais sensível, nossa vida. Gosto muito de um outro poema dele chamado Vou me embora pra o Passado.

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  5. JOSÉ AFONSO QUEIROZ5 de abril de 2023 às 07:13

    É muito rica a cultura popular brasileira! Gosto muito da sabedoria dos poetas nordestinos!

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  6. Falando em artista popular do nordeste, me lembrei do lindo Patativa do Assaré. Jessier é brilhante, li o livro dele Agruras da Lata d'água. E acho maravilhosa a piada que ele conta sobre o compadre que viajou p Europa e voltou p se vingar do barbeiro invejoso. Hayton, sau crônica é uma homenagem a Jessier e à instituição da Bodega, como chamamos no interior do Rio Grande, daquelas que vendem de fumo em rama ao sapato e linguiça num balcão de madeira que chega a ter suas tábuas arredondadas pelo tempo.

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  7. Jessier Quirino é, de fato, um prodígio dos versos bem gramados. Mas não apenas na rima ele se excede. Na prosa romanesca e coloquial é um mestre. Também, a sua verve para declamar, cantar e contar causos é única. Parece coisa dos vizinhos paraibanos. Logo me lembro do seu conterrâneo: Ariano Suassuna. Outro mestre. Com eles nos enebriamos com a coisa simples e bem dita. Ficamos felizes em escutar tanta e tamanha sabedoria. Além da forma. Que, com ditos sempre risíveis, divertem nossos ouvidos e nossas vidas.

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  8. Conhecer Jessier Quirino, um presente 🎁, ouvir suas prosas e versos uma melodia para nós e alegria para o coração. Você, amigo Hayton , Nos deu esta oportunidade. Muito Bom.

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  9. Maravilha!
    Tem de ser “muito” genial para fazer poesia com cabo serrote!
    Depois que faz, a gente pensa: “mas, também, com uma coisa tão poética quanto cabo de serrote, até eu faria!”.

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    1. E quando o assunto é "doença das partes"? Tratar com leveza e bom humor uma crise/cirurgia de hemorroidas não é para qualquer um. Aos que ainda não conhecem sugiro ler/ouvir "Quer ver matuto humilhado é tá doente das partes". E que Deus os livre de um pós-operatório "daqueles" que, ao que parece, o poeta teve e eu, infelizmente, também. Saúde para o fiofó de todo mundo.

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    2. É ainda mais específico que o cabo de serrote; é o parafuso de cabo de serrote!

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  10. Esse filho da Borborema é fera. Tudo que escreve e fala tem cheiro de sertão e amplitude de mundo.

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  11. Parabéns por mais um texto publicado. A homenagem ao Jessier Quirino é muito importante. Precisa ser um iluminado para fazer o que ele faz. Receber o reconhecimento é o complemento necessário. Quem tem a lembrança e a iniciativa de fazê-lo, fica próximo do homenageado. Por isso, parabéns para os dois. Grande abraço.

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  12. Que beleza relembrar dessas histórias. Volta e meia respiro um pouco dessa bela cultura no mercadão do Bandeirante e, sempre que viajo, também costumo frequentar os mercados, onde sempre tem esses artistas! Muito bom!

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  13. Ótima crônica, Hayton. E o Jessier é um artista e tanto. Pudera, nasceu onde se fabrica até bainha pra machado!
    Abração. Gradim.

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  14. Uma crônica e dois gênios: Jessier e o cronista!!
    Espetacular!!!
    👏👏👏

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  15. O que mais me impressiona no Jessier, é a simplicidade e riqueza do vocabulário que emprega em suas narrativas, que nos remete a uma belíssima viagem pelo tempo, resgatando lembranças que permanecem “vivas” dentro de nós. Quanto à desistência do bebum em tirar a própria vida, lembrei do ditado popular: “o boi sabe onde arromba a cerca”.

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  16. Excelente.
    Eu tive o privilégio de estar presente nesse encontro de administradores que você citou.

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  17. O grande Jessier Quirino merecia uma crônica porreta. Hayton deu conta do recado! Parabéns à história do primeiro e à escrita do segundo! Valeu cada linha e cada causo!

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  18. Jessier Quirino tem realmente um talento ímpar, seja na construção de suas obras, seja no declame delas, com uma memória de fazer inveja, quando verbaliza várias, a exemplo da extensa "Vou-me embora pro passado", sem esquecer nenhum dos muitíssimos parágrafos que compõem a obra prima. Essa e mais outras tantas primorosas estão no excelente livro "Prosa Morena", o primeiro dos livros de sua autoria que eu adquiri, há 17 anos atrás ,e virei um assíduo leitor.
    Já tive oportunidade de assistí-lo ao vivo várias vezes, quando em algumas delas pode autografar alguns de seus livros.
    A crônica sobre o artista certamente já deveria estar madura há um bom tempo, só esperando a lapidação final para ser-nos socializada. E eis que veio à altura do arquiteto/poeta/matuto!

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  19. Jessier é um cara fantástico. Vez por outra me deparo com uma de suas recitices... muito inteligente e sabe enfileirar as coisas. Não tem memória, tem uns 300 HDs de 50 teras... impressionante. Agora estou imaginando o decepção do doidinho. Se queria ver desgraça, acho que viu. O cara foi pra casa apanhar....

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  20. Causo legal. Temos muita gente boa, neste nosso Nordeste, contadores de histórias boas, a exemplo do Jessier Quirino. Achava que o doidinho iria dizer: - Homi! Desce daí porque "chifres" não têm asas.

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  21. Delícia de texto! Que dizer mais? Diniz.

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  22. No Nordeste há muitos contadores de histórias e poetas através dos "romances" (literatura de cordel), ou outras publicações. São pessoas que têm uma facilidade de escrever como ninguém. Rimam otimamente os versos. A grande mídia tornou-os quase extintos, mas muitos ainda resistem. Parabéns pela excelente crônica.

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  23. Faltava isso - faltava mesmo?? -, você discorrer com proficiência as qualidades do gênio Jessier.
    E ao fazê-lo, produz uma poesia em prosa. O contido no primeiro parágrafo consagra minha afirmação, pois até rima há.
    Talvez Jessier não tenha recebido, até hoje, homenagem maior, certamente está mais que emocionado e envaidecido com tal reverência.
    Mas vou me permitir uma digressão e irreverência - que me perdoem os puritanos, se houver algum aqui.
    Em outra versão da história que o Jessier lhe contou, o que aconteceu de fato foi que o pretenso suicida - também devidamente bêbado - alegava que iria se matar porque sua mulher o traíra.
    Após frustradas as tentativas dos presentes em fazê-lo desistir do intento, alguém sugeriu trazer a mulher para pedir-lhe a desistência de intenção da tragédia.
    Não deu outra, ao chegar, a mulher bradou alto e bom som - "DESCE DAÍ PALHAÇO, EU TE BOTEI FOI CHIFRE, NÃO FOI ASA NÃO".
    Há versões de que ele desceu, reconciliou-se com a mulher e os dois foram felizes para sempre...

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  24. Graças ao amigo Hayton tive o privilégio de assistir a "palestra" de Jessier Quirino no encontro de Administradores do BB. Parabéns pela justa homenagem a este excepcional poeta Nordestino!

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  25. Acho muito difícil mudanças tão radicais, depois de tantos anos da criação de nossa bandeira. Os fatos e acontecimentos narrados são verdadeiros, mas nenhuma bandeira conseguiria ultrapassar o tempo sem ver suas cores manchadas pelo comportamento do povo que ela representa ou de seus governantes. Melhor encontrar inspiração para ressignificar o verde, o amarelo, o azul e o branco. Sem esquecer que ela quase foi confiscada por um recente aventureiro e quase a maioria da população até concordou. SMJ. Grande abraço meu querido amigo.

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  26. Bom Dia! Grande Jessier Quirino, sou fã dele desde muito tempo. Acompanho sua trajetória há muito. Ele é genial e fantástico!

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  27. Belíssimo texto, é assim que começa, lembramos de algo e isso vai puxando outras coisas e aí passam por momentos bons, também ruins, mas tudo faz parte da vida. Ganhar, perder e saber lidar com tudo isso. Também um grande apanhado histórico e que por tanto tempo nos fizeram acreditar na falácia das cores da nossa bandeira que se refletiu nas cores da seleção “canarinho”.
    Parabéns por provocar tantas reflexões!

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  28. Essa bodega da foto é a cara da venda do meu tio Zé Romildo, no interiozão de Minas, onde eu costumava trabalhar nas férias pra ganhar uns trocados...

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