quarta-feira, 5 de junho de 2019
Vai um pastel aí?
Era sábado. Cochilei um pouco depois do almoço e, quando acordei, saí de casa de fininho e fui em busca de um dos maiores prazeres que o ser humano, a partir de certa idade – se você me entende! –, pode experimentar: pastel de carne moída e azeitonas.
Já na primeira mordida deveria ter desconfiado do gosto um tanto esquisito, mas a gulodice não me deixou perceber que estava em curso violento atentado à flora intestinal do cristão aqui.
Passei o resto do fim de semana xingando uma certa padaria da Asa Norte, com enjoos, cólicas, perda de apetite, mas nem sinal de diarreia ou vômitos. Havia a esperança da eliminação espontânea do miserável agente causador daquilo.
Quando apareceram alguns calafrios na manhã de segunda-feira, o pânico veio junto. Febre é febre! Apavorado, chamei um táxi às pressas e fui bater na emergência de um dos maiores hospitais de Brasília.
O antiespasmódico colocado no soro para atenuar minhas dores abdominais desencadeou quadro clínico que na mesma hora me fez refletir sobre o breve sopro que é a vida. Não nos manda aviso-prévio do seu fim nem nos prepara para quem iremos deixar por aqui.
Praticamente reduziu a zero o chamado peristaltismo intestinal – movimentos involuntários que ajudam o trânsito do bolo alimentar durante a digestão – e em minutos instalou-se o que os médicos chamam de Geca (Gastroenterocolite aguda).
Mesmo sonolento, ainda deu para ouvir rápido cochicho entre dois deles, ambos com semblantes carregados:
– O que achou da Geca? Será que foi salmonella?– indagou o primeiro.
– Não estou ouvindo sinais de luta... – respondeu o outro...
Como ainda me restavam traços de humor, quis perguntar mas faltou coragem: haveria algum conflito ideológico entre meus órgãos internos? Ou entre cantoras de uma dupla sertaneja de quem nunca ouvira falar? Geca fazia a primeira ou a segunda voz? Nada disso! Apenas um jeito, no dialeto deles, de dizer que não havia “nó nas tripas”.
Endoscopia, ultrassonografia e tomografia foram realizadas para afastar a hipótese de problema mais grave, como tumor ou coisa parecida. Mas a barriga não parava de distender, a cara amarelava, as mãos e os pés gelavam...
– Vamos ter que transferir o senhor pra UTI. Lá é melhor do que aqui no ambulatório – disse alguém.
O silêncio e a penumbra gelada dos corredores até a UTI meteram em minha cabeça um punhado de interrogações. O que me restava de lucidez alertava que a vida, esse "jogo de culpa que faz tanto mal" – como diria Gonzaguinha – , estava perto do fim.
Nunca havia deitado numa maca nem para deixar campo de futebol e a primeira vez, poderia ser a última. Era meu corpo carente admitindo que sim – claro, poderia acontecer! –, mas minha alma, inconformada, gritando que não.
Deu para perceber que alguns familiares e amigos chegavam para ver com os próprios olhos o que um pastel de carne moída e azeitonas era capaz de fazer com um cidadão em plena forma, no esplendor de seus 50 anos.
Ouvi gemidos, gritos e lamentos de outros pacientes enquanto me instalavam monitores, até chegar um moleque com 20 e poucos anos, barba por fazer e jaleco amassado – intensivista estagiário, creio – e me enfiou goela abaixo um catéter que achei que fosse vazar na outra extremidade.
Santo remédio! Um jorro de vômito escuro inundou a cama. Em poucos minutos, já me sentia bem melhor, levantei e fui ao banheiro tomar um banho restaurador.
Enquanto isso, um porta-voz do hospital foi até a sala de espera e, para desanuviar o recinto, disse em tom de pilhéria, óbvio:
– O pior aconteceu... Ele vai sobreviver!
Passei ainda a noite inteira com uma sonda nasogástrica no pré-sal de minhas vísceras, sugando tudo o que o desgraçado do agente causador havia feito para impedir que eu testemunhasse o crescimento de meus netos.
De alta hospitalar 72 horas depois, passava em frente a uma lanchonete quando a balconista, quem sabe comovida com minha cara de fome, mas sem saber de meus antecedentes intestinais, quis ser gentil:
- Vai um pastel de queijo ou carne moída aí, moço?
Devo confessar que recusei a contragosto. Minha família me internaria – noutro tipo de hospital, certamente! – se soubesse que ainda cogitei provar a iguaria. Mas era só uma mordidinha de leve, na casca. Nem atrapalharia o almoço.
Há mais de 10 anos ninguém me tira da cabeça que foi o enfeite com salsinha mal lavada que me estragou aquele fim de semana. Pastel é do bem! Não faria uma crueldade dessas com um velho admirador.
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Rapaz, não sabia que você havia passado por esse sufoco! Passei por algo parecido em Salvador, depois de comer uma maionese numa churrascaria, que fechou logo depois, que ficava na litorânea. Agonia ruim!
ResponderExcluirO bom é poder rir depois e contar pros amigos e amigas a nossa versão dos fatos.
ExcluirMeu pai sempre recomendava: -" Não como nada com carne na estrada ou fora de casa. Recomendação que até hoje observo. Sem arrependimento.rsrsrs
ResponderExcluirO velho Lansac tinha razão. Acontece que a carne é fraca!
ExcluirQuem nunca? Somos todos sobreviventes, rs
ResponderExcluirAté a próxima garfada. Como disse Millôr, “não devemos resistir às tentações... elas podem não voltar”.
ResponderExcluirTio Hayton, você é demais!!!!! Kkkkkk Deus é mais!!
ResponderExcluirQue sufoco heim!! Não sabia que você tinha passado por esta. Adoro pastel, mas depois deste depoimento acho que vou ter que me resguardar um pouco mais. Abs
ResponderExcluirNão vamos condenar o santo pastel! Foi a salsinha, meu amigo Canindé. Não se poupe. Comer pastel e coçar é só começar!
ExcluirCome na rua tem esse risco! Principalmente pastel! Não vai esquecer pro resto da vida!
ResponderExcluirOu vai?
O preço da tranquilidade é a eterna vigilância. Pra falar a verdade, João, toda vez que vejo um bom pastel faço de conta que não aconteceu nada daquilo.
ExcluirComer(corrigindo)
ResponderExcluirEm situações semelhantes, o santo remédio é encarar o velho pastel de vento por um tempo, até que a memória do indigesto esteja completamente apagada.... depois é voltar, com coragem, à mesma quadra da Asa Norte e saciar-se.
ResponderExcluirNessa época eu morava em Palmas e pouco pude fazer pela recuperação do amigo, a não ser rezar, claro. Mas continuei comendo pastel, só que de tucunaré, toda sexta-feira no final do expediente, numa feirinha que ficava perto do escritório onde trabalhava.
ResponderExcluirHuuummm, Mané, já me deu água na boca. Se bem que recheio de tucunaré a mais de 40 graus de temperatura ambiente pode ser um novo atentado à flora intestinal.
ExcluirKkkkkkkk eu sempre tive curiosidade pra saber os detalhes dessa história do pastel de carne kkkk confesso que, mesmo sabendo do seu sofrimento, ainda foi muito divertido ler o poder que um pastel de carne moída pode ter em nossas vidas 😂😂😂 vamos pra próxima
ResponderExcluirSó aparece anônimo meus comentários kkk Fabrício Di Pace
ExcluirQue coisa meu amigo um simples pastel te levar até s pensar que era o fim. Vê se esquece pastel viu? Kkk
ResponderExcluirNão esqueço o pastel, Perpétua. A carne é fraca - a minha! É só moderar. Como dizia um poeta matuto alagoano, “em excesso, até água de pote faz mal.”
ResponderExcluirKkkkkkkkk
ResponderExcluirAprendi alguns nomes técnicos, que deixam a dor de barriga bem mais elegante.
Mas seu problema foi um só: faltou o caldo de cana, antídoto perfeito. Nada teria acontecido!
Pois é, Zé, mas quando penso nas mãos “limpas” que raspam a cana antes de esmagá-la, o meteorismo já avisa: “abra o olho, cabra véi!”. Como nossa vida era mais doce quando o caldo de cana se fazia presente! Gelado então...
ResponderExcluirPor acaso este acontecido foi o do dia do meu casamento? Rsrs!
ResponderExcluirNão, Karla. Dor de barriga nunca dá só uma vez. Aquela foi outra memorável que merece outra crônica, inclusive por conta de outros fatos hilários devidamente “armazenados”.
ExcluirAcho que foi a danada da azeitona, insidiosa, querendo ganhar um bocado de mel. Não viu que, com isso, você se rasgou, engagou, enguliu, mas saiu dessa. Sem dúvida, foi a humilhante azeitona, ahahahha
ResponderExcluirGostei da paráfrase, Marcão, mas continuo achando que foi a danada da salsinha. Rsrsrs
ResponderExcluirPois é...Não existe N S do Bom Começo. Bingo,para o N.S. do Bomfim
ResponderExcluirNão vi menção ao caldo de cana, talvez tenha sido a falta dele.😂😂😂
ResponderExcluirNão ia dar caldo... Literalmente. 🤣
ExcluirEta! Momento difícil, advindo de uma irresistível pratica, Comer Pastel. Se acompanhando de um caldo de cana, então.
ResponderExcluirE quem não gosta dum pastel?
ResponderExcluir... também não gosta de doce de leite, queijo ralado, caldinho de feijão-preto etc.etc.
ExcluirMeu Deus... O riso foi inevitável ao ler. �� Que sufoco.
ResponderExcluirAinda bem que no final deu tudo certo! ��
Sei não... Está chegando a hora do almoço e estou de olho em um pastel maravilhoso de camarão que tem ali na praça de alimentação do shopping...
ResponderExcluirDeixe eu terminar essa Odisseia: lá vai a notícia chegar em Rondônia - Hayton tá na UTI infartado.
ResponderExcluirSai as duas doidas : Mana e Dayse , na madrugada para conseguir um voo rápido do fim do mundo para a capital, antes que o homem morra!
No final das contas, a irmã médica abelhuda, futucas o prontuário, conversa com o paciente e conclui , finda peste, quase morre pela boca!! Isso não é infarto nada!!
Internação é pior do que boato de chifre: corre rápido e cheio de de disse-me-disse! Haja coração... literalmente.
ExcluirHayton, ainda não nos conhecemos e já estou a seguir as suas histórias. O "causador" desse encontro inesperado é nosso amado JM Rabelo que reverencia as suas palavras e seu estilo, citando você em nossas conversas que são tantas... Estou curtindo os seus "causos", como dizemos aqui nas Minas Gerais e aguardando com interesse o próximo post. Abraço de uma nova seguidora!
ResponderExcluirQue bom! A responsabilidade triplica quando você me fala do carinho que me devota um gênio do bem como JM. Vamos em frente!
ExcluirQuem já teve algo parecido com essa tal de GECA sabe o que é suar frio por todos poros... Divertidíssima sua maneira de nos contar esse episódio - que não foi nada divertido pra vc...
ResponderExcluirVez por outra ouço falar em “falência de múltiplos órgãos”. Acho que os únicos que se mantém operantes do nascimento até a morte são os intestinos. Todo cuidado é pouco, Andreola!
ExcluirAlgumas vezes o crime não compensa. Ri demais com essa história, principalmente pelas paráfrases do Gonzaguinha. Você está cada vez melhor.
ResponderExcluirO amor pela boa música é similar ao carinho pelos pastéis. Logo...
ExcluirKkkkkkkkkkkkkkkkkkk. Rindo alto!!!!! Certeza que foi a ausência do caldo de cana.
ResponderExcluirComo sempre, mestre Hayton, um bom texto prá degustar sem medo! Agora, o cara come pastel a vida toda, centenas, talvez milhares... um dá errado, ai fala mal e ai abandona o prazer, e esquecendo a estatística, 1 em 1.000, resolve abandonar os outros 999. Cadê a velha coragem de outrora, amigo velho? Mantenha o prazer, risco não tá baixo não? Rsrs...
ResponderExcluirtiberio
Quem lhe disse que deixei, Tibério? Deixei de usar salsinha pra não correr o risco de vir mal lavada. Não fosse assim o título desta crônica seria “Pastel nunca mais!”
ExcluirVirei leitor assíduo destas crônicas fantásticas. Entretanto, não tenho visto comentários anteriores que fiz. Dependem de aprovação prévia?
ResponderExcluirDe jeito nenhum, Silas. Os comentários são livres. Às vezes até eu tenho dificuldade de postar respostas no meu próprio blog. Mas reconheço que não tenho tanto domínio da ferramenta.
ExcluirRapaz... que sufoco... e é verdade... peixe morre pela boca. É preciso muito controle.... Narrado dessa forma, até achamos engraçado, mas não foi não....
ResponderExcluirDifícil resistir a um pastel, né tio? Sou desse time também, já sei a quem puxei! Só espero não passar por um sufoco desses! hahaha
ResponderExcluirComo no Canadá não existe salsinha, nem se preocupe. Pode comer pastel à vontade, Carol!
ExcluirEsta é uma das magias da crônica, dar leveza a um assunto "pesado". Excelente narrativa. Passei por algo parecido quando numa viagem de Marabá para Belém fui vencido pelo vício de comer bolo de milho. Na rodoviária de Muju degustei um "taco de bolo" e em menos de uma hora conheci todas as barrancas dos igarapés nas margens da rodovia.
ResponderExcluirOutra magia da crônica é tornar denso um assunto banal. Mas isso seu amigo aqui ainda não aprendeu a fazer. É coisa de escritor.
ResponderExcluirPastel é bom demais.
ResponderExcluirA crônica é ótima.
Isso me lembrou a "estória" do cabra no P. Socorro da cidadezinha do interior, gemendo feito quem come pastel com salsicha. E tome-lhe exames... até que a enfermeira resolve perguntar já no amanhecer do dia:
ResponderExcluir- o que o senhor comeu no jantar ?
Ele:
- acho que "só" uns 12 ou 13 pastéis na Rodoviária...
Qualquer semelhança...
@braços e parabéns "tio" Hayton.
Rindo muito ... Graças a Deus acabou tudo bem. Final feliz e não trágico rs rs toda vez que ver um pastel de carne com azeitona, irei lembrar dessa crônica.
ResponderExcluirQuando isso acontecer, Juli , é só trocar o recheio. Largar o pastel, nunca!
ExcluirMeu amigo, adorei à associação com o Gozaguinha. Explode Coração, ops, cagão. A do pré sal foi felomenal, como diria o Ronaldinho. Tu tem o dom de nos conduzir, pelas travessas e vielas das letras, aquelas que nos levam aos lugares mais bonitos, longe do trânsito de palavras encaixotadas nas grandes avenidas. Tu debulhar emocoes, e com simplicidade e muita humanidade, nos conduz a quintais preciosos da vida e do viver. Amando todas elas.
ResponderExcluirVindo de vosmecê, vou começar a acreditar nisso, ouvisse? Mas é assim: muitas vezes a palavra só enfeia a imagem. Por isso algumas fotografias dispensam legendas.
ResponderExcluirHayton, a gente realmente não consegue ler sua bela crônica, sem dá boas risadas. Excelente! Isso já aconteceu com todo mundo; comigo, com uma filha minha, só que com o pastel, veio a maionese caseira, e o processo foi o mesmo. Um abraço
ResponderExcluirIsso mesmo, Leda, acontece com todos e não apenas uma única vez. Quem sobreviver, verá! Rsrs
ResponderExcluirkkkkkk Você já comeu pastel de novo, depois desse episódio desastroso? Morri de rir! Mas brincadeiras à parte, assusta como a vida é frágil, pode se acabar por um pastel. Mas como são bons, a vida e o pastel! kkkkk
ResponderExcluirClaro que sim, Helô! Não existe vida sem pastel. Insisto, o problema naquele fim de semana decorreu da miserável da salsinha! Kkk
ResponderExcluirkkkk, é verdade!Como o sujeito que passa mal depois de uma bebedeira, foi aquela azeitona! kkkkkk
ResponderExcluirLendo o texto fiquei pensando que meu destino pode estar selado numa comida de pé-sujo... Mas uma coisa tenho certeza, não foi a salsinha. Foi a azeitona. Se tiver azeitona, eu não como!
ResponderExcluirSerá que o premiado pastel era “dormido”? Que baita susto, Hayton. Melhor é poder contar a história!
ResponderExcluirEm 2018, Hayton, conforme relatei, instalou-se uma suspeita em meu organismo contra a qual continuo em alerta. Não cheguei a ir a UTI, mas sei da sensação de estar numa maca de hospital, sendo levado a um centro cirúrgico (meu procedimento não foi considerado cirurgia, mas foi tão assustador quanto). Um dia, quando a poeira toda sentar, tomo coragem para relatar. Os pastéis, atualmente, para mim, por mais atrativos e suculentos que possam parecer, são parte de uma alimentação que deixei para trás, junto com tantas outras tentações culinárias.
ResponderExcluirEm que pese esse agonizante depoimento, acho que vou manter o pastelzinho de feira em meu cardápio, caro Hayton.
ResponderExcluirE se tiver caldo de cana então … É a combinação perfeita, uma delícia.
Acho que vale o risco.