quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Foi só começar...

Na semana passada, publiquei neste espaço uma crônica sobre códigos e jargões corporativos que fez alguns leitores voarem de teco-teco pelo passado, cada um revisitando seu próprio álbum de figurinhas.


Ilustração: UMOR (Uilson Morais)

 

Mal deu sete da manhã, e lá estava Seu Vivi, leitor assíduo, alertando para a insuficiência de meus achados: “Faltou coisa aí, hein!” Trouxe uma lista das boas e velhas memórias: o “oitavado”, o post-it raiz sem cola, perfeito para rabiscos e recadinhos internos; a “liga”, a borrachinha que unia pacotes de cédulas; e o “posto efetivo”, aquele cargo inicial que soava quase como sentença perpétua.

 

Outro leitor, Avelar, lembrou-se de um colega da agência de Bom Jesus (PI), que, ao cruzar com alguém solteiro, soltava: “Você está 0.17.019”, referindo-se ao código de um cheque avulso. Já Jaílton evocou o “talo verde”, aquele cartão de alerta na Bateria para que os caixas segurassem o novo talão até resolverem uma pendência.

 

Esclareci que só citei alguns exemplos para caber nas 800 palavras de sempre. Mas, claro, dezenas de outras expressões poderiam nos teletransportar de volta no tempo. Afinal, como costumo dizer, ninguém sabe o valor de um momento até que ele vire memória.

 

Falando em memória, a crônica rendeu pérolas como a do Maurício "Jacaré", que desabafou: “Já vi cliente quase arrancando os cabelos ao saber que o depósito havia ‘caído na vala’ – um lugar onde acumulávamos pendências de processamento no CESEC Arcoverde”.

 

Quatro dias depois, Maria Fernanda trouxe outra história: “No Sedan-Rio, eu orientava pessoas perdidas entre os 41 andares. Um dia, uma senhora desesperada chegou: ‘Meu dinheiro sumiu, mandaram procurar na vala negra!’ Engoli em seco e expliquei que a vala não era nem negra, nem vala…”

 

Já o Antonio Sérgio, de Brasília, relatou que, quando o banco liberou camisas coloridas, ele apareceu com uma listrada em tons suaves. O subgerente, uma espécie de xerife dos bons costumes, chamou-o e, com a autoridade do cargo, sentenciou: “Antonio Sérgio, liberamos cores sóbrias. Mas não todas ao mesmo tempo, e numa só camisa!”. Silas, da Bahia, ainda completou: “O subgerente até podia fazer um trocadilho: liberamos cores sóbrias, mas hoje, na sua camisa, cores sobram!”.

 

Volney relembrou uma situação cômica em Itaberaba (BA), quando um humilde lavrador buscava um financiamento agrícola, confiante no seguro PROAGRO para enfrentar a seca. No entanto, ao revisar o cadastro, descobriram que ele era "responsável pelo protesto de um título cambial", o que impedia o empréstimo. Ao explicar a situação de maneira gentil para evitar constrangimentos, Volney ficou surpreso com a reação: o pequeno produtor rural, decepcionado, reclamou em tom respeitoso que "votava todo ano e seguia todas as regras, mas eles faziam isso com seu título”. Mas não declinou quem seriam “eles”, provavelmente, os de sempre. 

 

Eu já estava satisfeito com a repercussão da crônica quando, na noite passada, um velho amigo esteve em minha casa e me contou a saga de seu concunhado, que esteve tão mal de saúde que a filha foi retirada das férias pela mãe, com uma mensagem curta e aterrorizante: “Pode voltar. De hoje seu pai não passa!”

 

Ao chegar aflita, no dia seguinte, encontrou o pai sentado na cama, distraído, sorriso no canto da boca. Havia lido a crônica e agora rabiscava uma lista de termos que a filha, coitada, não entendeu nada: denorex, arquivo-morto, alívio, reforço, cintado, cheque-de-viagem, dilacerado, genérico… “É esse que vai morrer hoje?” – ela indagou.

 

A filha não imaginava que, nos anos 1980, a propaganda de um xampu popularizou o bordão: “Denorex, parece remédio, mas não é”. Pegou tanto que virou expressão nacional. Assim, quando a empresa foi obrigada a abrir centenas de filiais da noite para o dia, criou-se um arremedo de estrutura que logo ganhou o apelido de “Denorex”: parecia agência, mas não era.

 

Ela também desconhecia que “arquivo-morto” não guardava relação alguma com os presos políticos desaparecidos durante a ditadura – era só um armário de documentos para expurgo. E “alívio” e “reforço”? Nada mais que transferências para a tesouraria da agência, equilibrando o excesso de dinheiro (ou suprindo as gavetas dos caixas) durante o expediente.

 

Já o infame termo “genérico” – derivado da indústria farmacêutica – designava funcionários contratados a partir de 1998, sem alguns dos direitos trabalhistas dos “dinossauros”, como férias de 35 dias, abonos por assiduidade e licenças-prêmio. Para a organização, custavam menos e produziam o mesmo efeito. Com o tempo, claro, conquistaram a inevitável isonomia de tratamento.

 

Pois é, mexer com esses assuntos – e coçar – é só começar. Os flashbacks não apenas resgatam o passado, mas permitem uma reflexão sobre como as memórias e o vocabulário corporativo evoluem, e como se entrelaçam com a identidade dos “sobreviventes”. Cada exemplo nos remete a uma realidade que, embora possa ter se transformado, deixou marcas duradouras em cada criatura.





 

 

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

A verdade sobre códigos e jargões

O mundo corporativo está cheio de códigos e jargões que, além de facilitar o dia a dia, revelam muito mais do que imaginamos. Não falo da enxurrada de estrangeirismos como approach, benchmark, coach, deadline, feedback, home office, know-how, networking, spread, turnover e outros. Esses já viraram lugar-comum, e a incorporação deles parece irreversível. Até Ariano Suassuna teria dificuldade em chamar o mouse de “rato”. E o notebook de hoje, em suas oito letras, já substitui muito bem o combo caderno, caneta e dicionário, que as crianças de hoje aprendem a usar antes mesmo de falar.


Ilustração: Uilson Morais (Umor)


Depois de quatro décadas nas entranhas de uma organização bicentenária, colecionei expressões impagáveis que só quem viveu esse ambiente entende. Em uma empresa tradicional cuja marca no Brasil é sinônimo de "banco", parte do repertório remontava às grandes guerras do século passado:

Bateria – área dos caixas.

Plataforma – área de atendimento aos clientes.

Retaguarda – setor responsável, então, pelo processamento dos documentos gerados na Bateria.

Ajudante de serviço – cargo comissionado parecido com ajudante-de-ordens, espécie de secretário pessoal de um oficial militar, da polícia ou do governo.

Pé-na-cova – abono concedido a funcionário prestes a se aposentar, mas que a empresa preferia manter por mais algum tempo.

 

As confusões que esses termos criavam também eram inesquecíveis. Um caso famoso ocorreu na Bahia, quando um caixa orientou um cliente a procurar a "Plataforma" para resolver seu problema. O cliente, achando que se referia ao bairro Plataforma, pegou o ônibus até o subúrbio de Salvador.

 

Códigos como o modelo 03/14 – uma folha A-4 usada para correspondências e contratos – eram corriqueiros. Mas, para rabiscos rápidos, um caricaturista genial “inventou” o modelo 03/07: a folha A-4, cortada ao meio. 

 

Para arquivar, utilizava-se o grampo trilho metalizado, conhecido como "macho-e-fêmea", um termo mais revelador de carências afetivas do que da função do material.

 

Outra expressão picante era "gozar no papel". Quando alguém chegava ao prazo fatal para gozar férias, mas não podia se ausentar, a solução era registrá-las formalmente, porém seguir trabalhando. Depois, compensava com folgas, assinando a folha de ponto.

 

Esses códigos e jargões, criados para facilitar a vida, às vezes se tornavam verdadeiros enigmas. Por exemplo, "espelho", para designar o documento que especificava o ordenado bruto e suas deduções, para mim refletia bem mais que isso. Espelho, espelho meu, existiu alguém mais inconformado do que eu diante do salário líquido no começo de tudo?  

 

Outro clássico era a “igrejinha”, um formulário com aba dobrável, usado para pedir documentos ou cobrar dívidas atrasadas. Tinha uma aparência quase solene, como uma convocação divina ao Juízo Final.

 

E o “cheque-ouro”, inovação dos anos 1960, onde o banco garantia o pagamento de cheques de alguns clientes, com ou sem fundos (os cheques, claro!)? Virou sinônimo de cheque especial, alívio para muitos, mas armadilha para outros tantos.

 

Quando passei pela área de RH, descobri outras expressões igualmente curiosas:

Esmolão – funcionário que perdia o cargo e aguardava, recebendo salário, por uma nova função. Quando transitava de um lugar para outro, sem cargo definido, dizia-se que estava "arrastando correntes" – uma imagem longe de glamurosa.

Sorvetão – alguém em situação análoga, mas sem perspectivas de reaproveitamento, cujo salário "derretia" em alguns meses até secar.

 

Mesmo usadas com humor ou resignação, essas expressões escondiam verdades incômodas: elas suavizavam dramas humanos profundos, de gente tensa e à espera de um destino incerto. Funcionavam como uma espécie de escudo, mas, no fundo, havia uma realidade implacável.

 

A história mais curiosa que ouvi sobre esses códigos e jargões me foi contada por um querido amigo. Antigamente, para apurar a reputação de uma pessoa, investigava-se por meio dos "influenciadores analógicos" locais, da igreja ao cabaré (normalmente, o mais certeiro nas informações), passando por barbearia, bodegas e botecos.

 

Meu amigo tinha uma fonte especial: um velhinho que sabia tudo de todos. Enquanto escutava sua fonte, ele resumia os relatos com números. Pares significavam boas referências; ímpares, más notícias. Por exemplo, 10, 12 e 14 eram sinônimos de honesto, bem referido, pontual em seus pagamentos. Já 09, 11 e 13 indicavam emitente de cheques sem fundos, paga com atraso, tem ações cíveis, criminais ou títulos protestados.

 

Certa vez, investigando um comerciante interessado em levantar um “papagaio” – outro jargão exótico para nota promissória –, o velhinho foi categórico: “Esse aí é 11, 13, 15... E olhe lá, hein?! Daqui a pouco chega a 19!”.

 

No fim das contas, na fala cifrada de uma organização ou nas palavras astutas de um contador de histórias, a verdade sempre acaba se revelando, mesmo que venha disfarçada de códigos enigmáticos. 


E jargões podem distorcer ou suavizar, mas a essência das coisas vem à tona. Seja deadline ou pé-na-cova, a verdade sempre retorna, como um cheque sem fundos. Se é que ainda existem – cheques e verdades.





quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Café de ninguém

Estou há três semanas sob o céu esbranquiçado e sem graça de São Paulo. Durante a caminhada matinal, vi, não uma, mas duas vezes, um gari de uniforme cenoura encostado numa esquina da Rua Domingos de Morais, na Vila Mariana, segurando um copo de café. Lá estava ele, do lado de fora, como se o meio-fio fosse seu lugar natural no mundo. 

Na primeira vez, desconfiei, mas fiquei calado. Na segunda, decidi me aproximar. Batizei-o de Jorge, nome de guerreiro, e minha mente viajou à Zona da Mata alagoana em que morei no final dos anos 1960, onde outro Jorge – não o poeta de “Essa Negra Fulô” e “O Acendedor de Lampiões” –, parecido e tão invisível quanto ele, sobreviveu por alguns anos. 

 

Lá em União dos Palmares (AL) não havia água encanada. O Jorge de lá, maneta desde menino, mutilado na colheita de cana, vendia água de cacimba para beber e outra, retirada do Rio Mundaú, para os demais usos. Das quatro às cinco da manhã, dia sim, dia não, ele bombeava água para a caixa de distribuição sobre a laje de nossa casa. E, sempre que o barulho era mais forte, ele nos tranquilizava: “Né ninguém não, sou eu...” Hoje entendo o que ele queria dizer.  

 

Perguntei ao Jorge daqui se ele estava na calçada por escolha, curtindo o seu café enquanto assistia aos passantes apressados tentando aquecer alma e corpo nos 15 graus matinais, ou se o balconista lhe pedira para tomá-lo do lado de fora por algum motivo. Ele, com um olhar conformado, quis me enganar com a dura poesia concreta daquela esquina:
– Tinha tanta gente lá dentro...



Ilustração: ChatGPT

 

Cidade grande é assim. Ela não manda recados, não avisa quando é hora de você deixar de ser alguém e passar a ser ninguém. São Paulo te engole sem mastigar. E ali, entre a esquina pichada, a lixeira e o meio-fio, Jorge parece mais um pedaço da paisagem, como o poste e a sarjeta, invisível para quem passa e não quer ver. Não é só o clima que é frio por aqui.

 

Eu carregava uma sacola com algumas roupas que ia doar à Paróquia de Nossa Senhora da Saúde. Decidi dar outro destino: no banheiro da estação Santa Cruz do metrô, Jorge vestiu parte delas, lavou o rosto, deu uma ajeitada no cabelo. Voltaríamos ao mesmo local para uma refeição decente – suco de laranja, pão na chapa, ovos mexidos e café com leite. Ele aceitou com silenciosa gratidão.

 

Jorge agora de calça de sarja, camisa polo e agasalho, foi recebido com simpatia pelo mesmo balconista que, meia hora antes, o pediu para se servir do lado de fora. Vai ver que nem o reconheceu. É curioso como uma troca de roupa muda a percepção das pessoas, não é? O balconista, que antes nem o notou, agora o cumprimentava com um sorriso e até puxou conversa sobre as eleições para prefeito. Perguntou o que achava de um abaixo-assinado sugerindo três candidatos no segundo turno, já que a diferença entre eles fora de menos de 1% dos votos. Jorge, desconcertante, desarmou o balconista: 

– E se o terceiro colocado fosse um dos dois primeiros ele toparia?

 

O balconista calou-se. Mas a cidade, essa não cala nunca. Continua rugindo com seu trânsito doido, suas sirenes e seus prédios apontando para céu branco, enquanto reservam elevadores de serviço aos invisíveis. Para os privilegiados, sempre haverá quem não passa de “carga”. E o que me assombra não é essa divisão, mas a passividade com que aceitamos ser apenas plateia nesse espetáculo cujo final se imagina qual será. Ainda assim, fingimos surpresa quando as cortinas caem e as luzes se apagam.

 

Otto Lara Resende, em sua famosa crônica “O monstro da indiferença”, que já decorei de tanto reler, acertou em cheio. Ela narrou a história de um homem que, por 32 anos, cruzava todos os dias com o mesmo porteiro. Dava-lhe um “bom dia” automático, pegava a correspondência, um ou outro recado. Até que, um dia, o porteiro cometeu a descortesia de morrer. Só então o homem percebeu que nunca soube seu nome, nunca olhou na sua cara, nunca quis saber se ele melhorou da tosse da semana anterior. O porteiro precisou morrer para ser notado.

 

E assim seguimos. Elevadores de serviço, café no meio-fio (longe dos clientes habituais, limpos e perfumados – se bem que caráter ainda não tem cheiro!)Garis, faxineiras, porteiros e zeladores invisíveis. Não são os monstros que nos assustam, mas nós mesmos, quando o espelho nos revela a deformidade que criamos ao banalizar a indiferença.

 

Esta é uma história parcialmente fictícia, porém absolutamente verdadeira, pois refletindo sobre a brutalidade silenciosa da exclusão, já não me lembro sobre o que é uma coisa ou outra.

 

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Jogos de poder

O eleitor que não foi às urnas no último domingo e não apresentar justificativa em até 60 dias vai ter que pagar à Justiça Eleitoral uma multa de R$ 3,51 (isto mesmo que você leu!). O que justificaria essa “promoção” para uma omissão tão séria na vida democrática do País? 


No Brasil, as siglas partidárias adoram confundir o eleitor. O nome? Pode ser qualquer um, menos o que de fato representam. Socialistas que são trabalhistas, trabalhistas que flertam com o social-democrata, social-democratas com alma liberal, liberais com traços autoritários, rentistas com jeito de rentistas mesmo. E, claro, progressistas que parecem conservadores, além de conservadores que têm um pezinho no reacionário. Um verdadeiro baile de máscaras que deixa o eleitor se perguntando se foi parar na festa errada. 


Os partidos? Viram coadjuvantes no grande palco eleitoral. E quem fica no centro das atenções? O candidato, é óbvio. O eleitor cada vez mais vota "na pessoa", não na ideologia. Escolher alguém pela autobiografia – ou ficha policial, em alguns casos – virou moda, como se o sujeito fosse uma ilha, alheio ao grande circo político.


Os políticos perceberam o truque: basta caprichar na embalagem. Nas campanhas, o partido é quase irrelevante. O que vende é o pretenso currículo. A desinformação, então, brota como erva daninha. Boatos se espalham com o vento, alimentando uma plateia que já não sabe distinguir entre o real e o imaginário das siglas. 

 

O nome pode não dizer nada, mas a retórica revela intenções. Claro, não é fácil, mas se o eleitor não fica atento, acaba como prato principal no banquete do marketing político – e nem notará que está engolindo desinformação, fria e sem tempero.

 

Foi nessa confusão de siglas que lembrei da minha primeira experiência política, igualmente desorganizada e cheia de "jogos de poder". Desde moleque, descobri que esse caminho não era pra mim. Meus irmãos podem confirmar: um dia, lá em 1966, fui eleito prefeito... da nossa rua. Verdade! Aconteceu em Patos, no Sertão da Paraíba, na época da disputa acirrada pra governador entre João Agripino (UDN) e Ruy Carneiro (MDB), acompanhada voto a voto pela Rádio Espinharas.


Ilustração: ChatGPT


A molecada andava solta no meio da rua, colecionando "santinhos" dos candidatos. Nessa agitação, surgiu a ideia de eleger um prefeito para a Rua Bossuet Wanderley. Sabe Deus pra fazer o quê, sem verbas públicas pra gastar nem novos impostos a arrecadar. Mas, na política, quem liga para o que vem depois da vitória?

 

Ninguém queria enfrentar Lindomar, o "Lindo", um moleque brigão e dentuço, que imitava o lutador Ted Boy Marino. Derrota garantida. Mas, sem disputa, que graça teria? Me colocaram na jogada, sabendo que a vitória seria quase impossível. Dos 20 eleitores, uns 15 juravam voto pro Lindo antes mesmo de começar.

  

Primeiro, fui até Zé Augusto, o mais velho e respeitado da turma. Éramos vizinhos. Ele recusou, pois não queria encrenca com Lindomar. Mas num cochicho, prometeu ajuda secreta. Bastou lembrá-lo do dia em que eu o vi insinuando saliências à cozinheira da casa dele, casada com o vigia noturno. 

 

Cleto e Flávio, dois amigos de Lindomar, também mereceram uma "conversa de pé-de-orelha". Flagrei os dois numa situação, digamos, delicada, e propus: votem em mim e fica tudo apenas entre nós, mas podem dizer que votaram nele. E teve Gilmar, que mudou de lado depois de levar uns sopapos do irmão de Lindomar, Elpídio. De olho no possível lucro eleitoral, seja qual fosse o desfecho da encrenca entre eles, cruzei os braços e não apartei a briga.

 

Eu poderia ter um belo futuro, não fosse o sonho desfeito a poder de zanga da principal autoridade eleitoral da época. Uma espécie de Cármen Lúcia sem papas na língua, como veremos adiante.

 

No grande dia, a surpresa: ganhei por um voto. Furioso, Lindomar pediu recontagem, mas já era tarde. Só faltou me dar uma cadeirada, ferindo o decoro da disputa. Se tivesse justiça eleitoral de rua, eu estaria respondendo por "lesão corporal política". Cantei vitória, mas não durou muito. Minha mãe apareceu na janela com um chinelo na mão:

– Venha já pra casa, cabra safado! Saia daí antes que eu conte pro seu pai no que você tá se metendo!

 

Como uma juíza implacável, ela me fez renunciar antes mesmo da posse. Um pouco mais tarde, nossa família mudaria para Alagoas. Trinta e cinco anos depois, quando voltei à Paraíba, descobri que boa parte dos “eleitores dentes-de-leite” daquele tempo tiveram um trágico destino, vítimas de brigas de gangues e da violência que tomou conta de suas vidas.


Sei lá! Os pais têm uma habilidade sobrenatural de cortar as asas dos filhos antes que eles subam ao palco errado. Pressentem quase tudo. Mas será que, se não fosse pela bronca da minha mãe, teria feito alguma diferença naquele destino cruel que aguardava meus amigos de rua? Ou já estávamos todos predestinados a sermos apenas peças de um grande jogo, sujeito a regras que nunca entenderíamos?





 


quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Prêmios luxuriosos

No frenético reality show que a vida moderna vem se tornando, confesso que não me surpreende nem um pouco descobrir que a popstar Katy Perry, aos 39 anos, encontrou uma maneira inusitada de transformar as tarefas domésticas do marido, Orlando Bloom, em algo digno de um Oscar... ou, quem sabe, de um Grammy. Durante uma entrevista ao podcast americano "Call Her Daddy", Katy revelou que, em troca de uma cozinha impecável e armários bem fechados, Orlando pode muito bem esperar por uma recompensa especial – o tipo de prêmio que nem todo o dinheiro de uma Ferrari vermelha poderia comprar.


O mundo dá suas voltas, e agora parece que lavar a louça pode valer mais que uma viagem ao espaço com Jeff Bezos. A praticidade absurda da vida moderna: pratos limpos, prêmios luxuriosos. Katy, em tom de brincadeira, explicou que não precisa do carrão esportivo, porque pode comprar à hora que quiser. Mas uma cozinha limpa? Bem, isso vale ouro! E o maridão que se prepare para ganhar uma caprichada sessão de sexo oral! Se a moda pega, a lava-louças vai acabar se tornando o novo objeto de desejo dos lares.


Ilustração: Uilson Morais (Umor)
 


Katy e Orlando estão juntos desde 2016 e têm uma filha, Daisy, de 4 anos. A cantora voltou a brilhar no Rock in Rio 2024 na sexta-feira, 20 de setembro, e não é de hoje que ela imprime sua marca no Brasil, como fez em sua última turnê em 2018. Mas, deixando os palcos de lado, quem diria que uma das maiores estrelas do pop mundial trocaria o glamour pelo brilho de uma faxina bem-feita?

 

Claro, todos sabemos que nem todo mundo é fã da limpeza da casa. Mas, sem ela, o lar se transforma em um território minado, onde cada passo é um lembrete de que a bagunça saiu vitoriosa. Então, organizar-se não é apenas uma necessidade – para Katy, é um ato de amor digno de “prêmios” cinematográficos.

 

Enquanto Katy e Orlando encenam suas próprias dinâmicas de troca em grande estilo, no mundo real, onde as estrelas não brilham tanto, outros casais também negociam suas rotinas. Conheço um sujeito que entrou nessa dança das recompensas sensíveis, embora sem o glamour de popstars. Em troca de sexo com maior assiduidade, ele topou ajudar sua esposa nos trabalhos universitários voltados à tão sonhada graduação, além de assumir boa parte das tarefas de casa - arrumava as camas, lavava a louça, mantinha o fogão limpo, varria e retirava o lixo. Em um deslize freudiano, no boteco, até se saiu com essa: “Quando iremos receber nosso diploma, querida?”

 

Pena que a esposa, apesar do esforço extremo, não conseguiu se encaixar no mercado de trabalho como pretendia, voltando à rotina doméstica de anos e anos. No Brasil, aliás, mesmo quando trabalham fora, as mulheres dedicam até 25 horas por semana a afazeres domésticos e cuidados, enquanto os homens dedicam cerca de 11 horas, segundo um estudo da Fundação Getúlio Vargas divulgado em outubro do ano passado.

 

Nos países com maior igualdade de gênero, essa disparidade diminui, mas ainda existe – na Noruega e na Suécia, elas completam, respectivamente, 42 e 50 minutos a mais de trabalho não remunerado por dia do que eles. No outro extremo, no Egito, as mulheres têm 5,4 horas de trabalho não remunerado diariamente, enquanto os homens têm apenas 35 minutos.

 

Independentemente da geografia, as mulheres tendem a ser responsáveis por essas tarefas diárias, enquanto os homens muitas vezes cuidam da construção e dos reparos da casa ou dos cuidados com jardim ou quintal  – tarefas normalmente realizadas com menos frequência. 

Voltando ao caso de Katy Perry e Orlando Bloom, posso imaginar o que ela teria a oferecer ao maridão em troca de desentupir uma pia repleta de pratos engordurados ou enfrentar um vaso sanitário daqueles que desafiam até o mais valente dos encanadores. Talvez a melhor saída seja criar uma tabela de conversão, quem sabe com uma trilha sonora épica e um contrato com uma produtora de Hollywood, porque, convenhamos, em tempos de relações nada ortodoxas, tudo vale a pena, especialmente quando a alma é pequena.

 

Agora, deixando de lado a ironia e voltando à realidade, essas trocas cotidianas, embora possam parecer inofensivas, perpetuam um ciclo de desigualdade que molda silenciosamente as relações de poder nas tarefas domésticas. 


No fim das contas, o bem-estar de uma cozinha impecável pode esconder a escuridão de padrões que já deveriam estar ultrapassados, mas que ainda ditam as dinâmicas de gênero em muitos lares. E, se os envolvidos não abrirem os olhos, podem acabar trocando mais do que deviam por bem menos do que merecem.





 

 

Foi só começar...

Na semana passada, publiquei neste espaço uma crônica sobre códigos e jargões corporativos que fez alguns leitores voarem de teco-teco pelo ...