quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Palavras que (en)cantam

Sei de ouvir falar que, há muito tempo, o poeta Manuel Bandeira (1886 – 1968) teria sentenciado que “Tu pisavas os astros distraída”, de Orestes Barbosa (1893 – 1966), era o verso mais bonito de nossa língua, numa visão bem mais ampla do que a própria MPB. 

 

Antes que os puristas (em literatura e em música) argumentem que existem diferenças entre a poesia e a letra de uma canção, digo que, para um simples curioso como eu, poetas e compositores fazem praticamente a mesma coisa. Isto é, pintam quadros com os mesmos pincéis e tintas, ainda que usem telas de material diferente.


Trovadores. Anônimo alemão (séc. XIV)

Sei de ouvir falar também que os antigos trovadores foram artistas da nobreza do período medieval. E a própria origem deles se conecta com a música, pois, como poetas-cantores, compunham poesias e melodias para se acompanharem ao alaúde (instrumento de cordas). 


Portanto, letra de música é poesia e poesia é letra de música. A depender da melodia, um poema pode virar uma bela canção, como fez o compositor Fagner ao musicar “Fanatismo”, soneto da poetisa portuguesa Florbela Espanca (“Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida, meus olhos andam cegos de te ver…”). No álbum (“Traduzir-se”), de 1981, ele musicou ainda o poema de Ferreira Gullar que titulou a obra (“…Uma parte de mim pesa e pondera, outra parte delira…”).


O mesmo Fagner que, no início da carreira, viu-se envolvido num episódio meio nebuloso, no caso de “Canteiros” (“Quando penso em você, fecho os olhos de saudade...”), que possui estrofe “inspirada” no poema “Marcha”, de Cecília Meireles. Questões de autoria à parte, ali nasceu uma das canções mais populares da segunda metade do século passado.

 

Quanto à sentença proferida por Bandeira, porém, considero-a tão polêmica quanto escolher entre Cartola e Nelson Cavaquinho quem era o melhor dos dois. O primeiro triscou o céu quando confidenciou à sua musa: "... Queixo-me às rosas...Mas que bobagem, as rosas não falam. Simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti..." O segundo não ficou para trás quando fez chover metáforas na Mangueira: "Tire o teu sorriso do caminho que eu quero passar com minha dor...". 

 

É controverso também escolher entre Chico Buarque e Caetano Veloso. O primeiro foi poeticamente cirúrgico quando escreveu: “... Se na bagunça do teu coração, meu sangue errou de veia e se perdeu...”, além de definir o mais brasileiro dos sentimentos de maneira esplêndida: "...Saudade é o revés de um parto, é arrumar o quarto do filho que já morreu...". 

 

Já Caetano resplandeceu quando compôs “Luz do sol, que a folha traga e traduz em verde novo em folha, em graça, em vida, em força, em luz...” E já havia dito, no começo de sua jornada, do tamanho de sua alma ao confessar: “Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer... Meu coração vagabundo quer guardar o mundo em mim”.  

 

Voltemos a Bandeira. Óbvio que apenas expôs seu ponto de vista. Ele conhecia a obra de outros contemporâneos geniais, como Caymmi, Lupicínio, Tom e Vinicius, mas optou pelo verso de “Chão de estrelas”. Lamenta-se apenas porque nos deixou em 1968, quando brotava uma safra de ótima cepa, como os já citados Cartola e Nelson, Chico e Caetano. 

 

Depois da partida do autor de "Vou-me embora pra Pasárgada", choveu bastante em nossa horta. Posso escalar um timaço, em ordem meramente alfabética: Alceu; Aldir, Belchior, Djavan e Erasmo; Fagner, Gil e Milton, Paulinho, Raul e Roberto. 

 

Escalo outro capaz de entrar em campo com a mesma pegada poética: Cazuza; Gonzaguinha, Luiz Melodia, Marisa e Oswaldo; Nando e os Renatos (Russo e Teixeira); Rita, Toquinho e Zeca Baleiro.

 

Imagina-se que, numa partida entre os dois timaços, os torcedores vibrariam na arquibancada, mas sem o menor risco de guerra entre eles. O jogo estaria menos para futebol e mais para frescobol, “o único esporte com espírito esportivo, sem disputa, vencidos ou vencedores”, como dizia o genial cartunista, dramaturgo, escritor e poeta Millôr Fernandes (1923 – 2012).

 

Os mais entusiasmados teriam nas mãos bandeiras estampando versos extraídos do fundo da alma desses artesãos de palavras que (en)cantam, como:

 

“... O passado é uma roupa que não nos serve mais...” (Belchior).

 

“... Cada um de nós compõe a sua história, cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz...” (Renato Teixeira).

 

“... Porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos. E sonhos não envelhecem...” (Milton Nascimento).

 

“... É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...” (Renato Russo).

  

“... Porque metade de mim é o que grito, mas a outra metade é silêncio..." (Oswaldo Montenegro).

 

“Se a gente falasse menos, talvez compreendesse mais...” (Luiz Melodia).


"...Viver é todo o sacrifício feito em seu nome..." (Djavan).


 

“Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar...” (Paulinho da Viola).

 

“... Melhor é dar razão a quem perdoa, melhor é dar perdão a quem perdeu...” (Zeca Baleiro).

 

“... Enquanto estou viva e cheia de graça talvez ainda faça um monte de gente feliz...” (Rita Lee)

  

“... E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar... Sem pedir licença, muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar” (Toquinho).

 

A boa música – assim como a poesia – diz mais e em menor número de palavras do que qualquer prosa. E o jogo acaba sempre numa resenha poética entre amigos. Você, que me leu até aqui, por exemplo, que bandeira levaria para a arquibancada?

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Os papa-figos e a nação do desassossego

Entre calçadas, escolas e quintais, vivi quase todas as traquinagens e safadezas de um curioso e impulsivo representante daquilo que o poeta paraibano Jessier Quirino chama de nação do desassossego.

Recuperei-me bem dos primeiros anos em que me botavam para dormir sob a ameaça de boi da cara preta ou de prisão num quartel, se não marchasse direito com minha cabeça de papel. A canoa quase virou, eu não sabia remar, mas ainda estou por aqui vendo meus netos crescerem.

 

Existe um malassombro, porém, que mexeu comigo e com toda uma geração de desobedientes: o papa-figo (contração de "papa fígados"), também chamado de “homem do saco” ou "velho do saco", que os mais letrados teimam em tratar como lenda do folclore brasileiro. Descobri mais tarde que a versão portuguesa "papa figos", uma ave, inspirou o rótulo de um belo vinho, bem mais palatável que o papa-figo tupiniquim.

 

Voltemos à suposta lenda do folclore brasileiro. Lenda coisa nenhuma! Lenda é boitatá, boto cor-de-rosa, caipora, curupira, lobisomem, mula-sem-cabeça, negrinho do pastoreio, saci pererê, essas coisas. O papa-figo, não. É concreto, assustador, dentro da cabeça de quem sobreviveu à sua fome. 

 

Para o antropólogo e historiador potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898 – 1986), em sua obra Geografia dos Mitos Brasileiros (1947), “O papa-figo é como o lobisomem da cidade, que não muda de forma, sendo alto e magro... é um velho sujo, vestido de farrapos, com um saco ou sem ele, ocupando-se em raptar crianças para comer-lhes o fígado ou vendê-lo aos leprosos ricos...”

 

Ainda segundo Cascudo, “...em outras regiões é muito pálido, esquálido, com barba sempre por fazer. Sai à noite, às tardes ou ao crepúsculo. Aproveita as saídas das escolas, os jardins onde as amas se distraem com os namorados, os parques assombrados. Atrai as crianças com disfarces ou mostrando brinquedos, dando falsos recados ou prometendo levá-las para um local onde há muita coisa bonita...

 

Diziam que o papa-figo, após comer o fígado dessas criaturas indefesas, deixava ao lado dos corpos uma certa quantia para as despesas com o enterro dos restos mortais e para ajudar a família enlutada. Não seria de todo mau, portanto.

 

Mas existe quem garanta que toda essa conversa surgiu em meados do século XX devido a um surto da Doença de Chagas no Nordeste. Para enfrentar o flagelo sanitário, técnicos do governo federal teriam sido deslocados para as comunidades onde havia muitos enfermos. Como a punção do fígado era procedimento de rotina na necropsia dos mortos, aí começou o disse-me-disse.

 

Ilustração: Umor 

Olhe... Sei não, viu?! Pergunte a qualquer sobrevivente daquela época se esse cão dos infernos é real ou não. Duvido que negue e diga que se trata apenas de uma lenda que atormentava as cabecinhas fantasiosas da molecada desobediente aos pais e apressada em descobrir os cantos e encantos do mundo. 

 

Ultimamente, aliás, tenho visto muito papa-figo solto por aí, a degustar com azeite, orégano e sal o fígado de um rebanho inocente marcado a ferro e brasa para sofrer. Só mudou um pouco o jeitão de vestir-se e de camuflar intenções, ocultando fatos para proteger algum capataz ou mentindo ao lidar com um abominável gado novo que rumina no pasto. E sem deixar dinheiro para o enterro.

 

Tem papa-figo que tentou esconder-se no anonimato, operando como membro de um conselho paralelo à margem da pasta responsável pela saúde do rebanho de mais de 200 milhões de cabeças. Andou sugerindo inclusive minuta de decreto para que se mudasse a bula de remédios com ineficácia comprovada no tratamento de uma peste que ainda ameaça de extinção boa parte do plantel.

 

Outro fez de tudo para retardar o processo de compra de vacinas com visões conspiratórias e anticientíficas que comprometiam a imunização coletiva e a superação da peste. Pior, quis terceirizar a culpa pelo seu fracasso invocando o lugar-comum dos covardes: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. 

 

Teve ainda aquele que pressionava pela compra de um imunizante da Índia – onde a vaca é sagrada, mas o país é o maior exportador de carne vermelha do mundo –, via contrato com uma empresa “de fachada” que quase embolsa alguns milhões de dólares pagos antecipadamente. Se não fosse a intervenção de um vaqueiro assustado, para quem a decência ainda constitui valor a ser preservado entre os animais, teria gente rindo da gente até agora.

 

Houve até um papa-figo apeado de importante cargo executivo por corrupção e lavagem de dinheiro, esquema envolvendo a contratação de hospitais de campanha, compra de respiradores e medicamentos para estancar a peste que já dizimou nada menos que 615.000 cabeças.

 

O mundo praticamente acabou durante quase dois anos mas, aos poucos, os sobreviventes saem de cavernas para explorar novas possibilidades. E se frustram quando percebem que foi duro ter caminhado tanto em vão, que a engrenagem já sente a ferrugem. 

 

Com a chegada de novas eleições ano que vem, os papa-figos de sempre (e suas crias) já se movem à espreita de novos garrotes e novilhas, no desassossego de uma nação que marcha de chocalho para o brejo. Ou, quem sabe, para o matadouro.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Que trambolho, hein?!

De uma hora para a outra, tive que me adaptar a novas formas de consumo, socialização e trabalho doméstico. Com as restrições impostas pela pandemia, as caminhadas, que antes eram feitas no calçadão da orla, migraram para a esteira da sala de ginástica do prédio. 

Manter-se sedentário seria o pior dos mundos. Disseram-me que atividades físicas melhoram o sistema imunológico, além de ajudar na gestão de doenças crônicas que se herdam ou se adquirem com o passar dos anos, caso se tenha a sorte de chegar ao último terço da estrada.

 

Mas a sala de ginástica do prédio também acabou interditada. Os moradores, muitos deles desde a entrega das chaves, envelheceram e engordaram. Mesmo assim, ninguém questionou a medida, embora soubessem que o crescimento coletivo da massa corporal não foi previsto nos cálculos estruturais dos alicerces. 

 

Eu e meu vizinho de andar, Jorge Bola Sete – apelido dado por alguns invejosos porque já está na sexta relação conjugal “estável” –, fazíamos ginástica e reflexões diárias sobre o festival de besteiras que ainda assolam a República desde os tempos do saudoso Stanislaw Ponte Preta. Com o fechamento da sala, cada um passou a suar dentro do próprio apartamento, tentando conter os estragos causados pela engorda em confinamento.

 

Uma tarde o encontrei apressadíssimo, descendo as escadas – o elevador tinha virado território de perdigotos –, de boné e óculos embaçados pela máscara:

– E aí, Jorjão, tudo em paz? – perguntei.

– Tudo. E com você?

– Por aí, escapando da peste e chacoalhando a gordura pra ver se dilui e desce.

– Chato, né, a sala continua fechada.

– Ainda bem! Melhor não arriscar...

 

Dias depois, Jorge Bola Sete me telefonou:

– Rapaz… O gringo, do 8º andar, alugou um container que virá cheio lá dos Estados Unidos. São móveis de tudo que é tipo, além do enxoval da neta, que nasce já.

– É mesmo? 

– Vai sobrar espaço no container e vou pedir um equipamento para ginástica, uma esteira ergométrica ou coisa assim. Quer aproveitar? Ele ofereceu...

 

Ainda quis convencer minha mulher a adaptarmos um dos três quartos de nosso esconderijo para servir de sala de vídeo, leitura e ginástica, mas desconfiei de que ela me daria um “não” daqueles definitivos, sob o argumento de que quer manter pelo menos dois quartos disponíveis para filhos e netos.

– Muito obrigado… Não tenho onde colocar – declinei.

– Tudo bem. Se mudar de ideia, me avise.

 

Não deram três semanas e Jorge Bola Sete me procurou de novo. A esteira chegara. Descreveu-a com a crueldade de certos amigos nessas ocasiões: alta tecnologia, silenciosa, baixo consumo de energia, monitoramento de pressão arterial e batimentos cardíacos, relatórios de performance aeróbica, essas coisas. 

– Passa lá em casa amanhã, bem cedinho. Eu e Ana vamos estrear.

 


De olho, inclusive, na tapioca e no cuscuz de minha vizinha, topei e fui lá. Os dois, com fones de ouvido e roupas coladas ao corpo feito embalagens a vácuo, estavam entusiasmados e ansiosos com o novo brinquedo. Ele então liga a TV e o home theater, ativa o bluetooth e coloca a máquina pra funcionar. Parecia um porta-aviões zarpando.

 

Ana aguardava a sua vez, fazendo alongamento e, imagino, numa confabulação telepática com o maridão. Luzes piscavam no painel, números surgiam, ouviam-se uns apitinhos esquisitos, tudo muito colorido, sonoro, quase uma nave de filmes de ficção científica.

 

Quarenta e cinco minutos depois, Jorge Bola Sete desembarca encharcado, toalha no pescoço e toma um copo d’água de um gole só. Ana limpa o excesso de batom com o dedo mindinho, escala o deck, agarra-se à barra e começa tudo de novo. 

 

Eu via aquilo e tinha a sensação de que, a qualquer momento, o troço sairia deslizando pela sala como um patinete gigante, chegaria à varanda, alçaria voo e pousaria intacto nas imediações da feira de artesanato da Pajuçara. No final, eu estava mortinho de cansaço e de fome só de assistir. 

 

Em menos de um mês, encontro o casal na garagem do prédio. Examino-o de cima a baixo à procura de uma possível redução de peso. Não percebo qualquer mudança significativa e, curioso, brinco:

– E aí, como vai a ginástica com a “gringa”?

– Nem me fale! – antecipa-se Ana – Acabamos de doar a esteira ao cara do 5º andar, aquele bancário metido a cronista. Estava virando cabide de roupa suja.

– Como assim? Doar um equipamento poderoso daqueles?

 

Nisso, toca o celular de Ana, que dá uma olhada na tela e alerta: 

– É ele!

– Não atenda, não atenda! – diz o marido – O cara me ligou ontem umas cinco vezes...

 

Em seguida, toca o celular de Jorge Bola Sete. Era ele, de novo. Segunda ligação do dia e não eram nem oito da manhã. E meu amigo me implora, quase de joelhos: 

– Atende aí, por favor. Diz que esqueci meu celular no seu apartamento, anteontem.

– O que houve, vocês brigaram? 

– Nada... Mas, vai que ele resolve devolver aquele trambolho!

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Sobre dar e receber presentes

potlatch é uma festa religiosa ainda hoje praticada por algumas tribos indígenas canadenses e norte-americanas. Depois de um banquete de carne de foca e salmão, acontece o ponto alto: uma pessoa que está sendo homenageada renuncia a todos os seus bens materiais, inclusive dinheiro, pedras preciosas, taças, mantas etc., distribuindo-os entre parentes e amigos. A expectativa de quem está sendo objeto da homenagem é, mais adiante, também receber presentes daqueles para os quais está doando seus bens, num troca-troca sem fim.

Com a influência de negociantes europeus que chegaram ao continente americano no decorrer do tempo, esses eventos passaram a ser mais frequentes, surgindo uma verdadeira guerra de poder entre algumas tribos. Algumas vezes, os bens foram simplesmente destruídos ou queimados após a cerimônia, embora a história nada registre acerca de sexo, drogas e rock’n roll para justificar a bagunça, se é que você está pensando nisso.

 

No começo do século XIX, os governos do Canadá e dos Estados Unidos proibiram o potlatch por considerá-lo uma perda estúpida de recursos muitas vezes escassos. Entretanto, com a compreensão antropológica do significado desse ritual, a restrição foi baixada na metade do século seguinte.

 

O vício milenar entre os humanos de dar e receber presentes enraizou-se a partir da mercantilização de sentimentos. No caso brasileiro, temos diferentes eventos festivos estimulando isso, como aniversários, batizados, dia dos namorados, das mães, dos pais, das crianças, amigo secreto etc. E quem não vê muito sentido no troca-troca, acaba sendo visto como um animal esquisito, antissocial.

 

A coisa anda tão séria por aqui que, se você for a uma festa de aniversário de uma criança sem levar presente, o risco de reprimenda em público é enorme. Compreensível, nesse caso, tratando-se de um ser inocente que ainda não se dá conta de que tem gente correndo atrás do caminhão de lixo em busca de restos de comida ou em filas a pedir ossos na porta dos açougues.

 

Pois bem. Um amigo meu se dizia frustrado porque nunca pôde presentear parentes. Era órfão e filho único. No entanto, casou-se, nasceram os filhos, e agora se queixa de que, no Dia dos Pais, os presentes são sempre os mesmos: cuecas e meias. Diz não se incomodar tanto, mas que os mimos seriam mais apropriados se fossem para a uma centopeia com três ou quatro bundas.

 

Pondera também que, no Natal, filhos de modo geral costumam dar tênis ou sapatos. Diz ainda que se o pai usa sapatos de cadarços, esteja certo de que vêm aí mocassins. Se usa tênis para as caminhadas por recomendação do cardiologista, ganhará um par próprio para jogar futebol. Pior, na cor amarelo-limão ou laranja-cenoura, incompatível com seu jeito de ser, adepto da invisibilidade social. Quanto ao tamanho, tanto faz: sapatos ou tênis deslizarão dos pés ou irão mastigar um dos pares de meias que ganhou justamente no último Dia dos Pais

 

“Se não gostou, pode trocar”, dirá o filhão responsável pelo presente. Pode acreditar, diz meu amigo: é alta a probabilidade de ouvir na loja que se tratava do último par daquele modelo. E se descobre na vitrine um par bem a seu gosto e decide fazer a troca, terá que pagar o dobro do que gastaria e se estivesse de fato precisando de calçados. “Pode ser no cartão de crédito”, vai ponderar o vendedor, como se isso reduzisse a despesa desnecessária. Melhor desistir de tudo e evitar o pico de pressão arterial, diz ele.

 

Se é aniversário, o pai ganha camisas que nunca lhe servem. Folgadas ou apertadas, brancas ou berrantes, lisas ou estampadas. Até aquela, digamos, "psicodélica", como se dizia no final dos anos 70, quando o pai ainda era um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Isto é, todas serão fortes candidatas ao mofo das gavetas sem naftalina, junto a outras que, constrangido, deixou de doar porque foram presentes em anos anteriores. 

 


Ilustração: Dedé Dwight 

Certo dia virá o convite do filho para uma feijoada e a velha companheira de viagem, com a mais pura das intenções, irá propor ao maridão:
– Querido, veste aquela camisa que você ganhou de nosso filho.

– Eu não me sinto muito bem... 

– Mas fica tão bonita em você... Ele vai adorar!


Ao chegar, enquanto o pai mata a sede com a primeira cervejinha, o filho se aproxima e, segurando o riso, compara-o com aquilo que lhe resta na memória da figura paterna (nem lembra que a camisa fora presente dele mesmo):

– Véi, tá se achando, né? Tá parecendo uma toalha de mesa de pizzaria. Vai aonde, depois?

– Lugar nenhum. Por quê?

– Sei lá! Seja sincero: você andou fumando alguma coisa estragada?

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Pequenos inventos, grandes mudanças

A gente não percebe, mas algumas pequenas invenções mudaram de forma radical a vida dos seres humanos. E quase tudo deriva do ócio em suas múltiplas formas de prostração e moleza. Para o poeta Mário Quintana, “a preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda”. 

 


Mas não vou falar sobre a roda – presente em quase todos os avanços da inteligência humana, da tecelagem até os motores mais complexos –, que não pode ser vista como uma pequena invenção. Longe disso. Há alguns milênios, desde que se percebeu que ela servia para alguma coisa, a humanidade já deu milhões de giros até os dias de hoje, chegando a criar uma rede de comunicação instantânea que conecta os pontos mais remotos da Terra e que meus netos acham que sempre existiu.

 

A ideia é refletir sobre pequenos inventos, simples como a sandália de dedo, que mudaram o mundo. Ícone do bem-estar, desconheço quem nunca teve (ou não tenha) pelo menos um par. Apenas sola e correias a proteger os pés e amaciar os passos, porém cobiçada até por filhotes de cachorro. Só mesmo um inseto pré-histórico tenaz e resistente desde a origem do universo lamentou a sua criação: a barata, que usa os cantos para se proteger daquela arma letal, em sua visão.

 

E o que dizer do guarda-chuva? Existe coisa mais prática, antiga e moderna ao mesmo tempo? Embora seja objeto bastante útil, sobretudo nos dias em que o chuvisco da manhã pode trazer dor de cabeça pro resto do dia, foi feito para ser esquecido no táxi, no banco da praça ou na entrada da padaria. Convive bem com a ingratidão, percebe-se.

 

E da caneta esferográfica, corresponsável pela maioria dos deslizes humanos quando se deixa levar por mãos inescrupulosas? Quem, como eu, quando criança sujou as mãos com uma Parker, sabe do prazer que deu o aparecimento de uma bolinha de aço na ponta de uma esferográfica, distribuindo a tinta suavemente sobre o papel, feito desodorante do tipo roll-on (sem o risco de puxar um pelinho desprevenido).  

 

Já havia experimentado outra sensação agradável quando lidei pela primeira vez com o apontador de lápis grafite, em substituição à faca ou à lâmina de barbear, que costumavam se aproveitar de minha pouca habilidade com instrumentos cortantes para produzir lacerações nos dedos. Quem não gostou da mudança, desconfio, foi o fabricante de Merthiolate

 

O palito de fósforo também me impressiona desde que me entendo por gente. Infalível, não aquele feito de papelão, mas o de madeira, com o cabeção na ponta. Cheguei a pensar que surgiu antes da descoberta do fogo no período neolítico. Mas os arqueólogos revelaram que a fogueira começou mesmo a partir do atrito entre dois pedaços de madeira, depois entre pedras, e, convenhamos, faz bem mais sentido.

 

Louvo também a mudança trazida pelo cortador de unhas, embora não tenha ocorrido ao seu inventor torná-lo um pouco mais funcional, pelo menos em relação aos pés de barrigudos como eu. A dificuldade diz respeito ao comprimento e a curvatura necessária ao cabo. Precisava, além disso, trazer junto um periscópio.

 

A dentadura é outra pequena invenção que, sem trocadilho, me deixou de queixo caído. Na meninice, flagrei uma de minhas tias sem a peça, ao acordar do cochilo depois do almoço. Foi duro ver aquela boca murcha segurando o riso para não dar vexame. Só quando a chapa foi colocada no devido lugar desapareceu dentro de minha cabeça a visão do inferno que se formava.

 

Mas de todos esses pequenos inventos, glorifico de pé a guilhotina de papel, que para mim contém atributos quase terapêuticos. Penso até que me poupa de distribuir murros ou bater com a cabeça na parede. Quer saber como?

 

Arrume duas caixas de papelão. Numa, coloque papéis velhos e deixe a outra vazia. Corte os papéis em pedacinhos, atentando que lascas muito pequenas podem dificultar o processo. A cada uma, concentre-se num problema ou desafeto que lhe incomoda. Depois, jogue a respectiva lasca na caixa vazia, a ser transformada em cemitério de seus pensamentos impublicáveis. 

 

Mesmo avesso a redes sociais, noto ainda assim que se cobra dos usuários uma tal de “lacração”, gíria que define aqueles que "mandam bem", "arrasam", ao postarem comentários polêmicos buscando apoio de seguidores. E se tocam em questões sensíveis para alguns ou demarcam territórios ideológicos, religiosos e futebolísticos, provocam reações de quem pensa diferente. Essa sucessão de revides alternados acaba criando um manicômio virtual estarrecedor.

 

Para escapar disso, prefiro o método da guilhotina de papel, que batizei de "lascação", onde mágoas e rancores podem ser reciclados de modo reservado ouvindo-se apenas o meu próprio ranger de dentes, sem despertar a fúria dos “inimigos”. 

  

Enfim, são tantos pequenos inventos a mudarem a vida da gente, todo dia, que desafio meus leitores e leitoras a refletirem sobre o tema. Sem “lacração”, por favor!

 

Li outro dia que o grande compositor Herivelto Martins – autor de clássicos como “Ave Maria no Morro”, “Cabelos Brancos”, “Atiraste uma pedra”, “Caminhemos” e “Segredo” – introduziu o apito no samba nos anos 40. Parece fácil, não é? Depois de inventado.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Juramento de Almirante

Há meio século, boa parte dos brasileiros esperava a edição de domingo do Jornal Nacional, da TV Globo, para conferir o resultado da Loteria Esportiva, com a participação de uma zebrinha falante de olhos e boca móveis criada pelo cartunista Borjalo. Em 1971, com a estreia, do programa “Fantástico  o show da vida”, a mascote migrou para a revista eletrônica.

Borjalo inspirou-se no jogo do bicho, invenção de João Batista Viana Drummond, o Barão de Drummond (1825–1897), para levantar fundos destinados ao custeio do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, que lhe pertencia. Essa antiga bolsa de apostas logo seria encampada para práticas ilícitas que ainda hoje enriquecem algumas famílias.

 

O jogo incluiu 25 animais (bichos), mas não a zebra, parente africana de nosso resignado jegue, este com séculos de serviços prestados ao povo brasileiro. Quando o resultado era negativo aos olhos do apostador, dizia-se ter "dado zebra". Daí à adaptação para placar esportivo imprevisto foi um pulo. E quando saía o resultado da Loteria Esportiva, a cada escore inesperado a bichinha debochava com sua voz esganiçada: “Olha eu aí... Zeeebra!”.

 

Lembrei-me dela porque a associava à decepção semanal dos falidos e mal pagos (no sentido do descompasso entre dívidas e salários) que viam na Loteca a oportunidade de escaparem da asfixia, recobrando o fôlego e a própria razão de seguir adiante com um aporte extra que, infelizmente, nunca chegava. O jogo sempre foi o penúltimo recurso dos desesperados.

 

Meu pai era dos que dormiam frustrados nas noites de domingo. Para ele, em condições normais de trabalho, temperatura e pressão, sem os 13 pontos na Loteca era impossível sair do atoleiro em que caíra junto com a mulher e os nove filhos. Ainda assim, toda segunda-feira amanhecia disposto, fingia-se de forte e partia para mais um round de uma luta inglória.  

 

Dois anos depois do final da peleja (no show da vida, ninguém disse que o resultado seria justo!), conheci Almirante. Nada a ver, registre-se, com a mais alta patente das forças navais. Apenas o apelido de um ajudante-de-serviço na Carteira de Crédito Agrícola e Industrial da Agência do Banco do Brasil em Maceió, quando ali cheguei, em 1974, como menor aprendiz. 

 

Logo aprendi que a expressão "bancário apertado" era pleonasmo. No caso dele, aliás, parecia navegar em mar revolto, cercado de peixões famintos (agiotas, bancos e alguns raros colegas de trabalho mais afortunados). Nada diferente daquilo que tinha visto em minha própria casa.

 

Mas toda semana um sopro de esperança agitava as velas do barco de Almirante: a fé nos 13 pontos na Loteca. Na segunda-feira, a desilusão reaparecia impiedosa em sua carranca. Restava esperar a próxima aposta, ruminando palavras num resmungo só. 

 

O gerente da agência, um distinto e respeitado cidadão na casa dos 60 anos de idade, de pouquíssima conversa (não se sabia se tinha dentes ou não, dado que nunca fora visto sorrindo!), personificava o establishment, o patrão bem-sucedido, o chefe dos chefes, admirado por autoridades civis, militares e eclesiásticas.  

 

Quase todo dia, circulava pela Carteira (3º andar do então recém-construído prédio da Rua do Livramento, 120), traçando uma orientação aqui, dando uma ordem acolá etc. Pouco depois, arrastava-se com seus passos curtos até o elevador, marchando em direção ao imponente gabinete no 5º andar onde, dentre outras figuras da elite alagoana, recebia os herdeiros do baronato do ciclo da cana-de-açúcar do Brasil Colonial entre os séculos XVI e XVIII.

 

Numa quinta-feira, último dia para realizar a aposta semanal na Loteca, um gaiato (cujo nome não vem ao caso) que trabalhava ao lado de Almirante, ao perceber que o gerente da agência acabara de chegar, quis ser ouvido pelos colegas mais próximos:

– Almirante, se você cravar os 13 pontos, sozinho, qual será a primeira coisa que vai fazer? 

 

Ilustração: Umor

Debruçado sobre recortes de jornais e revistas com palpites e prognósticos, lápis na orelha, óculos na ponta do nariz, Almirante foi de uma inesquecível sinceridade:
– Juro que vou lá no 5º andar dar uma cagada bem na mesa do gerente!

 

O chefão, que passava despercebido por ele, deu-lhe três tapinhas carinhosas no ombro e esboçou um sorriso ainda incapaz de revelar a existência de arcada dentária:

– O que eu lhe fiz, meu caro? – quis saber.

– Nada, nada... Foi sem querer! – gaguejou o apostador, desculpando-se pela resposta incompatível com as gravatas e os sapatos engraxados no ambiente. 

– E como você pretende se limpar? – provocou de novo o gaiato que iniciara o deus-nos-acuda.

 

 

Almirante pode até ter pensado nas cortinas de linho do gabinete do 5º andar, que escondiam a vista maravilhosa da praia da Avenida, mas preferiu o silêncio. Quando o gerente se foi, aí sim, levantou-se e partiu com tudo para cima do gaiato:

– Você não vale nada! Como é que faz uma coisa dessas comigo!?

 

Nisso, chegava outro engraçadinho, curioso com as gargalhadas:

– O que tá acontecendo aqui?

– Nada! Nada! Deu zebra... – resumiu o apostador, passando a régua no episódio, que poderia feder ainda mais para o seu lado na época do milagre econômico para as famílias de sempre, óbvio. 

 

Como a maioria dos brasileiros, Almirante nunca conseguiu acertar os 13 pontos na Loteria Esportiva. Nem cumprir seu juramento memorável, em nome, inclusive, dos falidos e mal pagos daquele tempo.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Tarô da Ponta Grossa

"Em um dia bom, chego a fazer R$ 500,00. Mas tenho que tirar R$ 170,00 só pra gasolina", lamenta um amigo meu, motorista de aplicativo. Esta semana a Petrobras anunciou que a vida dele fica mais dura a partir de agora, quando o preço do combustível sobe 7%.

Ex-bancário, 60 anos, ele é bastante conhecido em hotéis e pousadas nos arredores do Pavilhão do Artesanato, na praia de Sete Coqueiros, em Maceió, onde faz ponto na rua Jangadeiros Alagoanos, no bairro de Pajuçara.

Com a queda do fluxo turístico durante a fase mais aguda da pandemia, viu diminuírem os passeios com interessados em conhecer os 300 km do litoral alagoano, pródigo em praias, lagoas, dunas, além da oferta de uma gastronomia de endoidecer os despreocupados com a circunferência abdominal.

 

No auge do isolamento, quase nada a fazer, viciou-se na internet. Agora, diz que o excesso de informações que recebe lhe deixa desorientado, com a sensação de que está perdendo tudo aquilo que aprendeu até aqui. 

 

Tento acalmá-lo, argumentando que essa sensação não é só dele. Digo que todos nós consumimos informações em demasia, o que impacta em maior ou menor escala a doidice de cada um. Não por outro motivo, aliás, psiquiatras e psicólogos andam com a agenda apertada até para vídeoconsultas de 20 minutos. E as farmácias seguem velozes e furiosas, encorpando suas carteiras de hipocondríacos fiéis.

 

Fiz questão de lembrá-lo de que, “em excesso, até água de pote faz mal!”, como dizia Zé do Cavaquinho (1911–1981), compositor e instrumentista virtuoso, boêmio, contador de histórias que viveu na cidade de Viçosa, na Zona da Mata alagoana, dono do bar “Trovador Berrante”, parada frequente do lendário Teotônio Vilela (1917–1983), o Senador das “Diretas Já”.

 

De tanto receber mensagens sem saber o que de fato é importante ou inadiável (só depois constata que a maioria não passa de lixo), ele suspeita de que a parte do cérebro responsável por suas escolhas começa a vacilar feio. 

 

E diz não saber onde estava com a cabeça quando abriu uma delas, nem mesmo como o seu e-mail fora parar nas mãos da remetente. Talvez descoberto no cartão que distribui com clientes, ressaltando que podem acioná-lo a qualquer hora do dia ou da noite.

 

Vi o teor da mensagem e concordo com a preocupação dele:

 

“Olá, …! 

Você está sentindo as forças ao seu redor nos últimos tempos?

Grandes mudanças estão acontecendo e você poderá até mesmo alcançar a vida que sonha. 

Meus poderes mediúnicos permitem colocar o dedo em suas áreas de bloqueio, naquilo que impede que você avance nesse momento.

Mas as cartas são os maiores mensageiros do seu destino!

Sim, o Tarô de Marselha pode lhe dar todas as respostas que você procura há semanas.  

Basta me pedir e eu direi tudo, sem nada pedir em troca.

Não se surpreenda com minha generosidade! 

Seus guias me encarregaram de conduzir você ao seu destino em segurança, e levo o pedido deles muito a sério...

Você está tão perto do objetivo!

Diga: Sim, eu quero acessar minha leitura do Tarô de Marselha!

Carinhosamente,

...”

 


Criado no século XV, o Tarô de Marselha é um dos mais conhecidos baralhos, possuindo elementos medievais em sua simbologia. Praticado no mundo inteiro, inclusive num velho casarão na Ponta Grossa, antigo bairro da capital alagoana às margens da lagoa Mundaú, é composto por 78 peças, cada qual com desenho e significado diferentes. O objetivo é descobrir como encarar o desconhecido de todos os viventes (no geral, de videntes também!): o futuro.


No dia seguinte, ele me procura um tanto misterioso. Acho até que, por trás do risinho enigmático, havia oculta a intenção de fazer uma visita ao estabelecimento para conhecer o jogo de forma mais profunda. 

 

Longe de mim ser desmancha-prazeres, mas em nome de nossa antiga amizade, peço-lhe que releia a mensagem em voz alta e noto que ele se engasga no ponto em que se cogita "colocar o dedo em suas áreas de bloqueio”. 


Bate então a dúvida se está lidando com uma taróloga cartomante ou uma amante tarada da Ponta Grossa: “Eu, hein?! Prefiro deixar certas áreas preservadas”, conclui.

 

E me deixa falando sozinho. Foi atender a uma nova chamada pelo aplicativo, agora que as coisas estão voltando à rotina e, a todo minuto, alguém põe o dedo na ferida, dispondo novas cartas sobre a mesa. Desta vez é a Petrobras.


quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Noites atormentadas

Minha querida, você sabe do tanto de amor e de carinho que lhe devoto, apesar do meu jeitão mineiro de ser. Relutei mas preciso confessar algo um bocado sério. Não é propriamente um pecado, nem arroubos juvenis, quando temos ímpetos e atitudes incontroláveis. Mas, por favor, seja discreta, não espalhe por aí, sobretudo com pessoas fora do nosso círculo de amizade. A verdade é que estou me sentindo cansado e meio maluco (a modéstia me impede de me sentir totalmente). 

 

Procuro na internet um manual do usuário para me orientar quanto ao que fazer para retardar esse famigerado processo de decadência. Deve haver em algum lugar instruções sobre o uso de ar-condicionado na penúltima estação da vida, com suas implicações sobre os ranzinzas como eu em aceitar os sinais de velhice.

 

Aquele aparelho odioso que você tanto aprecia e que foi instalado em nosso quarto pode nos trazer problemas. Tome nota: reumatismos, dor-de-ouvido (“dodovil”, segundo o João Bosco), entrevados musculares, dor nos quartos e até síndrome do pânico. Tudo bem, ainda se questiona o caso da síndrome, mas com perspectivas de comprovação científica, segundo os fabricantes de ansiolíticos. 

 

Digo isso porque, depois de certa idade (ou idade incerta), de médico e de louco todo mineiro tem um pouco. Aquele vento frio e cortante no meu rosto, no meio da noite, me dá a impressão de que alguém me empurrou do alto do Pico da Bandeira, na Serra do Caparaó, com os pés colados num par de patins. 

 

Aliás, saiba que depois que você insistiu em usar o ar-condicionado, falando da propriedade sonoterápica daquele trem, mal acordo e já confiro o que me resta de cabeça, tronco e membros, vendo se não falta nada, se existe algo torto, quebrado, ou mesmo necessitando de lubrificação.

 

Mês passado deu defeito no controle remoto quando borrifei de álcool o que não devia, a pretexto de limpar. Você ficou danada (prometi consertá-lo quando fosse ao centro da cidade) mas, enquanto isso, voltou a usar o ventilador velho e barulhento. Por um instante, até acalentei a esperança de que poderia melhorar a qualidade da insônia. 

 

Não mudou muita coisa em termos de tortura qualificada da velhice, esse castigo social e biológico de que ninguém escapa a não ser pela morte. Apenas a sensação é diferente: agora, além de mouco, parece que fui sequestrado e amarrado, nuzinho como vim ao mundo, preso ao guard rail da BR-262. Bate um frio medonho na espinha que não tem quem suporte. Só não entrego os pontos porque "a vida é feita de poucas certezas e de muito dar-se um jeito", como disse Guimarães Rosa.

 

Pior de tudo nessas últimas semanas tem sido aquela gata cabulosa que você arranjou para morar com a gente. A noite toda arranhando a porta, querendo entrar no nosso quarto, sabe-se lá com que intenções. E agora, minha querida, enquanto arranha, ela reclama sem parar. Um rosnado choroso, arrastado e chato. Vai-se ver arranjou algum cheque pré-datado meu, vencido, e agora quer o dinheiro na marra, com atitudes de amante de miliciano.

 




Enquanto angelicalmente você repousa, quem sabe lembrando de nossos ilícitos carnais e etílicos cometidos no passado, travo uma luta inglória com essa gata sem-vergonha, correndo atrás dela e ameaçando-a de boas palmadas. Quando não aguento mais, sento-me no sofá para recuperar o fôlego, ela me encara com aquele olhar gateado e penetrante e desanda a miar toda carente e dengosa. Tô vendo a hora perder a cabeça!

 

A esta altura (diferente de mim, ela ainda possui pelo menos seis vidas, após engolir aquele curimatã-pacu cheio de espinhas que caiu de meu garfo), a luta é grande, mas não sou de arriar. Tá pesado porque me levanto da cama pronto pra dormir de novo, você acredita? A safada quer acabar comigo! E me dá medo só de pensar em propor a você um “ou ela ou eu” quando vejo você alisando o rabo (dela, bem entendido!) enquanto assiste TV na sala. 

 

Para não pôr em risco aquilo que Deus juntou há mais de 40 anos, estou adotando um cachorro advogado (uns, ainda que humanos, enquadram-se nesse conceito), genuinamente canino, para negociar uma saída amistosa para as minhas diferenças com sua amiguinha. Estou seguro de que vai saber agir com cautela e sobriedade, evitando uivos e latidos durante a madrugada. Exceto, óbvio, em caso de legítima defesa contra eventual assédio.

 

Se isso não me livrar dessas noites atormentadas, terei que procurar outro local para curtir o último estágio de minha rabugice onde possa dormir sem ar-condicionado ou ventilador. E sem uma gata por perto querendo de mim o que já não posso oferecer. 

 

Talvez um asilo com o piso bem limpinho e cheiroso, onde eu possa me deitar em paz só pra ouvir o rangido nos ganchos dos punhos da rede. Fui...


quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Tudo ainda é possível!

Lembro-me de um antigo cartum, acho que publicado em O Pasquim, onde um pintor espanhol com olhos e sorriso de puro prazer se via diante de um imenso jardim com tela sobre cavalete, tintas e pincéis. Na legenda, a dimensão do desafio: “Gosto muito deste instante onde tudo ainda é possível!”. 

Ilustração: Umor

Para quem não sabe, o cartum era muito utilizado por jornais e revistas, no século passado, para sintetizar com alguns traços um ponto de vista, estimulando a reflexão e provocando riso sobre um tema qualquer da atualidade. É parecido com a charge, mas não retrata personagens conhecidos nem é ácido, irônico, com o comportamento humano e seus deslizes. 

 

São raros os momentos em que nos deparamos, tal como o pintor, com essa situação onde é possível construir o que queremos, mesmo sem trazer à cena nossas cicatrizes ou feridas abertas. Afirmar que “tudo é possível”, na maioria das vezes, não passa de profissão de fé.

 

Há quem goste de frases feitas do tipo “viva o presente, pois o futuro ainda não existe e o passado já passou”. Como se pudesse matar a sede de anteontem com uma gota d’água. Nem com gatos funciona assim, dado que têm medo de água morna por conta de algum banho quente ou gelado que vivenciaram. 

 

É difícil ater-se somente ao que se vê ou faz em determinado momento, sem recorrer à memória. É natural o sobrevoo sobre o passado para adoçar ou salgar narrativas, transformando fatos históricos naquilo que poderia ter acontecido e não aconteceu.

 


Não caio no lugar-comum de dizer que uma mentira bem contada tem o condão de se tornar verdade. Isso é outra coisa, típica de gente falsa, sem caráter. Não falo da mentira cruel, vil, que prejudica aos outros. Aceito apenas aquela que arredonda as quinas de um caso banal temperando-o com um pouco de humor, drama e pimenta, arte na qual Ariano Suassuna “é” mestre. 

 

Também não quero que acreditem totalmente naquilo que acabo de escrever e tomem como sentenças definitivas. Vira e mexe discordo até de mim mesmo porque ser intransigente com o que se pensa é coisa de doido. Noutras palavras, minha versão matutina sobre algo não bate necessariamente com a vespertina e não vejo nisso incoerência alguma. É caminhando que os sapatos e os calos se entendem.

 

Vejam vocês como é a vida! Um dia me contaram que eu nasci no país do futuro – tropical, abençoado e bonito por natureza! – e que esse futuro não tardaria a chegar. Se chegou, ninguém sabe, ninguém viu. Reservo-me o direito, portanto, de escarafunchar as possíveis causas disso e tentar arrancar o mal pela raiz.

 

Retrocedo então a bobina do filme (ok, isso não existe mais!) até 26 de janeiro de 1500, e o que vejo? O navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzon desembarcando na enseada de Suape, Cabo de Santo Agostinho, litoral sul pernambucano. Três meses antes de Pedro Álvares Cabral aportar no litoral sul baiano.

 

Noto que a Espanha não reivindica para si a descoberta de Pindorama, registrada por Pinzon e por outros cronistas historiadores como Pietro Martire d’Ánghiera. A contragosto, imagino, respeitará o Tratado de Tordesilhas, assinado com Portugal em 1494, que dividia entre as duas Coroas as terras “descobertas e por descobrir” fora da Europa.

 

Algo me diz que será melhor para todos, colonizadores e nativos colonizáveis, se, como citado no início do texto, diante da fartura de recursos disponíveis e em nome da Coroa espanhola, Pinzon declarar, em alto e bom som: “Gosto muito deste instante onde tudo ainda é possível!”. 

 

Quando decido puxar conversa sobre o assunto com Pinzon e o cacique tupi anfitrião, depois de uma caneca de cauim com ensopado de xaréu, a luz apaga – vem de longe o risco de apagões! , o filme embaça e a noite esfria. Pegamos no sono em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo.

 

Ao acordar, cinco séculos depois, percebo que os espanhóis foram os primeiros europeus a se estabelecerem no território dos atuais Estados Unidos, em 1492. A diferença de oito anos para Pindorama não condiz com a disparidade civilizatória entre as duas nações, nem com um exército de desesperados que, hoje, procura dar cores dignas à vida ainda que longe daqui. 

 

Dizem que escrever é pintar com palavras. O que faço não é pintura. Só esboço de minhas fantasias, feito um cartum, para provocar a reflexão de vocês diante da paisagem que se apresenta a nossas retinas fatigadas de tanta mentira, tanta força bruta. 

 

E se me disserem "viva o presente, pois o futuro ainda não existe e o passado, já passou", eu vos direi, no entanto, plagiando Belchior, que enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer "não” a tudo isso que está aí, digamos. E "sim" à luta que segue, ao sentimento que não pode parar.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Oi, Garnisé, tudo bem?

Depois de várias semanas na roça sem rede wi-fi, Serjão voltava à capital, onde responderia a algumas mensagens recebidas. Minutos depois, um velho amigo retorna: “... Que maravilha receber sinais de vida seus! Espero continuar merecendo um quarto do carinho que lhe dedico”.


Serjão retoma a conversa dizendo que, dentre as qualidades do amigo, admirava a concisão, a ironia e a rapidez de suas respostas. Que persegue isso, mas nem sempre alcança. E que aquela curta e singela mensagem deixa-o apreensivo.

 

Resolve interpretá-la melhor tal como se examinam as cores na Carta de Munsell, ferramenta utilizada na agronomia para identificar tons de solo comparando amostras. Queria posicionar-se pelo menos uma oitava acima na escala de avaliação do amigo. 

 

Adquire então um invento de um baiano tido como revolucionário, com o formato de um acarajé, utilizado para decodificar textos das mais inusitadas origens. Dizem que a Pedra de Roseta, descoberta por Champollion, é fichinha perto dele! 

 

O troço possui um corte longitudinal parecido com o das maquinetas de cartões, mas com leitor de código de barras, onde é inserida a mensagem. Piscam algumas luzinhas e escutam-se sons do meteorismo intestinal enquanto a leitura é processada. O resultado sai impresso num guardanapo, em esmerada caligrafia de contador das antigas, bico-de-pena à base de dendê. 

 

A mensagem do amigo foi assim decodificada: “Ô, seu fresco, cadê você, que nunca mais deu notícias?” Passado o susto, repete o processo e recebe outro tiro: “Você tá vivo, seu esculhambado?” Pensou: vai que é defeito de fabricação. E tenta mais uma vez, o que só ratifica a sentença: “Ô corno, fi-de-rapariga, onde tu andas?" 

 

Com o cabeção latejando de tanta cerveja na noite anterior, Serjão mastiga e engole o invento como se fosse o último tira-gosto do boteco, antes que o dendê reutilizado engordurasse a imagem nada boa que tinha de si mesmo.

 

Típico caso de autoestima no solado dos sapatos, diriam os especialistas em caraminholas, ele dá razão ao amigo conciso, mordaz e veloz nas respostas. É desleixado mesmo! Acha até que merece ser adjetivado de forma mais cruel, impiedosa.

 

Certo é que, vez por outra, Serjão é tomado por períodos estranhos, como se fosse pareado via bluetooth à tábua de marés da praia das Dunas, em Massarandupió, única oficialmente reservada à prática de naturismo na Bahia, seja lá o que isso signifique.


Tem semanas que jura que o universo está contra ele e submerge. Noutras, põe-se contra o mundo inteiro com a coragem e a esperança daquele rebelde chinês que encarou tanques de guerra nos protestos na Praça da Paz Celestial, em Pequim, em 1989. 

 

Tal como as correntes marítimas, Serjão oscila quando é lua cheia ou nova. Ultimamente, porém, anda seguro de que o seu destino é viver na roça, onde os bichos e as plantas lhe parecem mais íntegros e racionais do que as pessoas que vê por aí. O que mais quer agora é convencer sua musa inspiradora a se aposentar e juntarem os travesseiros no meio do mato. 


Ele já havia me contado que, desde moleque, ostenta o título de pioneiro do bullying. A primeira criatura a zoar com suas sardas foi a professora do primeiro ano: “Nossa, como você é bonitinho... Parece um ovinho de tico-tico...” 


Pronto! Ficou tácito que todos poderiam bulir com seus predicados estéticos, inclusive um par de orelhas que se tivesse brotado nas costas faria dele um anjo. 


Ilustração: álbum de família.

Garnisé”,  “Cagada de mosca”, “Banana madura” e “Enferrujado”, foram alguns dos apelidos que teve que aturar até o fim do primeiro grau. Aliás, a professora do último ano ainda tentou aliviar chamando-o de "Enferrujadinho". Dona de divinas tetas, ele até se animou achando que ela queria conferir a pinta do ovinho de tico-tico. Não deu.

Contou também que aquilo que aconteceu na escola nem foi o pior. Em São Paulo, no bairro operário onde morava, as tecelagens cediam casas para trabalhadores como seu pai, a maioria imigrantes espanhóis, portugueses e italianos. Acabavam todos se encontrando na mercearia, na farmácia, na igreja, no mercado ou na festa de rua.

 

Quando dava de cara com outro moleque, conseguia inibir a provocação franzindo a testa, as sobrancelhas e cerrando os punhos. Terríveis eram os encontros fortuitos, em locais públicos, como aconteceu certa vez numa sorveteria, quando ouviu de um amiguinho: “Oi, Garnisé, tudo bem?”

 

Quis quebrar a cabeça dele com o boleador de sorvetes ou a pedra que segurava a porta, tanto mais depois que sua mãe, diante de todo mundo, achou de indagar: “Nossa, filho, esse é seu apelido?” 

Quase aos prantos, tenta responder de forma objetiva e contundente, mas o que sai só macula a sua fama de menino sabido, bom de briga: “E o apelido dele, sabe qual é? Cocô...” 

 


Aos 66 anos, entre livros, bichos e plantas, Serjão não precisa mais ser conciso, rápido e mordaz em suas respostas. Vive
um dia por dia como escolheu viver, nada mais. Feito um garnisé no tempo dos quintais.