Sei de ouvir falar que, há muito tempo, o poeta Manuel Bandeira (1886 – 1968) teria sentenciado que “Tu pisavas os astros distraída”, de Orestes Barbosa (1893 – 1966), era o verso mais bonito de nossa língua, numa visão bem mais ampla do que a própria MPB.
Antes que os puristas (em literatura e em música) argumentem que existem diferenças entre a poesia e a letra de uma canção, digo que, para um simples curioso como eu, poetas e compositores fazem praticamente a mesma coisa. Isto é, pintam quadros com os mesmos pincéis e tintas, ainda que usem telas de material diferente.
Trovadores. Anônimo alemão (séc. XIV) |
Sei de ouvir falar também que os antigos trovadores foram artistas da nobreza do período medieval. E a própria origem deles se conecta com a música, pois, como poetas-cantores, compunham poesias e melodias para se acompanharem ao alaúde (instrumento de cordas).
Portanto, letra de música é poesia e poesia é letra de música. A depender da melodia, um poema pode virar uma bela canção, como fez o compositor Fagner ao musicar “Fanatismo”, soneto da poetisa portuguesa Florbela Espanca (“Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida, meus olhos andam cegos de te ver…”). No álbum (“Traduzir-se”), de 1981, ele musicou ainda o poema de Ferreira Gullar que titulou a obra (“…Uma parte de mim pesa e pondera, outra parte delira…”).
O mesmo Fagner que, no início da carreira, viu-se envolvido num episódio meio nebuloso, no caso de “Canteiros” (“Quando penso em você, fecho os olhos de saudade...”), que possui estrofe “inspirada” no poema “Marcha”, de Cecília Meireles. Questões de autoria à parte, ali nasceu uma das canções mais populares da segunda metade do século passado.
Quanto à sentença proferida por Bandeira, porém, considero-a tão polêmica quanto escolher entre Cartola e Nelson Cavaquinho quem era o melhor dos dois. O primeiro triscou o céu quando confidenciou à sua musa: "... Queixo-me às rosas...Mas que bobagem, as rosas não falam. Simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti..." O segundo não ficou para trás quando fez chover metáforas na Mangueira: "Tire o teu sorriso do caminho que eu quero passar com minha dor...".
É controverso também escolher entre Chico Buarque e Caetano Veloso. O primeiro foi poeticamente cirúrgico quando escreveu: “... Se na bagunça do teu coração, meu sangue errou de veia e se perdeu...”, além de definir o mais brasileiro dos sentimentos de maneira esplêndida: "...Saudade é o revés de um parto, é arrumar o quarto do filho que já morreu...".
Já Caetano resplandeceu quando compôs “Luz do sol, que a folha traga e traduz em verde novo em folha, em graça, em vida, em força, em luz...” E já havia dito, no começo de sua jornada, do tamanho de sua alma ao confessar: “Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer... Meu coração vagabundo quer guardar o mundo em mim”.
Voltemos a Bandeira. Óbvio que apenas expôs seu ponto de vista. Ele conhecia a obra de outros contemporâneos geniais, como Caymmi, Lupicínio, Tom e Vinicius, mas optou pelo verso de “Chão de estrelas”. Lamenta-se apenas porque nos deixou em 1968, quando brotava uma safra de ótima cepa, como os já citados Cartola e Nelson, Chico e Caetano.
Depois da partida do autor de "Vou-me embora pra Pasárgada", choveu bastante em nossa horta. Posso escalar um timaço, em ordem meramente alfabética: Alceu; Aldir, Belchior, Djavan e Erasmo; Fagner, Gil e Milton, Paulinho, Raul e Roberto.
Escalo outro capaz de entrar em campo com a mesma pegada poética: Cazuza; Gonzaguinha, Luiz Melodia, Marisa e Oswaldo; Nando e os Renatos (Russo e Teixeira); Rita, Toquinho e Zeca Baleiro.
Imagina-se que, numa partida entre os dois timaços, os torcedores vibrariam na arquibancada, mas sem o menor risco de guerra entre eles. O jogo estaria menos para futebol e mais para frescobol, “o único esporte com espírito esportivo, sem disputa, vencidos ou vencedores”, como dizia o genial cartunista, dramaturgo, escritor e poeta Millôr Fernandes (1923 – 2012).
Os mais entusiasmados teriam nas mãos bandeiras estampando versos extraídos do fundo da alma desses artesãos de palavras que (en)cantam, como:
“... O passado é uma roupa que não nos serve mais...” (Belchior).
“... Cada um de nós compõe a sua história, cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz...” (Renato Teixeira).
“... Porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos. E sonhos não envelhecem...” (Milton Nascimento).
“... É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...” (Renato Russo).
“... Porque metade de mim é o que grito, mas a outra metade é silêncio..." (Oswaldo Montenegro).
“Se a gente falasse menos, talvez compreendesse mais...” (Luiz Melodia).
"...Viver é todo o sacrifício feito em seu nome..." (Djavan).
“Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar...” (Paulinho da Viola).
“... Melhor é dar razão a quem perdoa, melhor é dar perdão a quem perdeu...” (Zeca Baleiro).
“... Enquanto estou viva e cheia de graça talvez ainda faça um monte de gente feliz...” (Rita Lee)
“... E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar... Sem pedir licença, muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar” (Toquinho).
A boa música – assim como a poesia – diz mais e em menor número de palavras do que qualquer prosa. E o jogo acaba sempre numa resenha poética entre amigos. Você, que me leu até aqui, por exemplo, que bandeira levaria para a arquibancada?